terça-feira, 2 de novembro de 2010

Alguns comentários pós-eleitorais, agora que os amigos baixaram talvez as armas da militância, à direita e à esquerda

Nos últimos meses, alguns amigos entregaram-se com paixão à militância política por seus candidatos à presidência, tanto à direita como à esquerda, ainda que tenha se tornado difícil, hoje em dia, aplicar esta velha dualidade como distinção absoluta. Se levarmos em conta as críticas que compareceram na campanha, em que acusações de "fascismo", "autoritarismo" ou "antidemocrático" eram aplicados de cada lado do debate, pareceria difícil. As alianças políticas estabelecidas por cada partido para garantir sua vitória e possível maioria no Congresso Nacional tornariam ainda mais impossível esta velha distinção. Mas sejamos práticos: ignorando, por ora, acusações de possíveis veleidades antidemocráticas de cada lado, o fato concreto de que o PT defende uma participação muito mais clara e massiva do Estado nas relações sócioeconômicas que influem no bem-estar da população, quando comparado ao laisser-faire massivo do PSDB, já nos serviria para distinguir de que lado balançavam os pezinhos dos candidatos sobre esta cerca, na qual pareciam em muitos momentos estarem de mãos dadas.

Nas conversas, discussões e tentativas de debate que tive com estes vários amigos, em geral particulares, às vezes públicas, fui percebendo como era praticamente impossível manter aquele desejo sincero, de todos, de um debate verdadeiro e amplo, simplesmente porque a militância exige, em tantos momentos de uma campanha difícil como esta, aquela defesa quase cega, a aceitação em bloco, impedindo que as limitações óbvias de cada partido pudessem ser discutidas de forma aberta, clara. Cada um dirá também que as estratégias assumidas pelo adversário impediram este debate adulto e sério. Não sei. Saio desta experiência com a impressão de que debate político não existe em tempo de eleição, quando tanto parece estar em jogo, e está, prestes a perder-se ou confirmar-se.

Além disso, o discurso apocalíptico de cada lado pareceu-me muito mais intenso nesta eleição. A tática populista do "messianismo político" parece ter cedido à estratégia da invectiva escatológica, ou (permitam-me o neologismo) de um "apocalipsismo político". O eco de "calipso" no neologismo traz à mente o caráter de religião de espetáculo presenciado nas últimas semanas. Não pareciam contar tanto as qualidades de cada candidato quanto afirmar o desastre político que a vitória do adversário significaria. E não duvido que cada um acreditava realmente neste apocalipse anunciado. Para os interesses políticos e principalmente econômicos dos eleitores de Serra (apenas a curto ou médio prazo, se tivessem visão política verdadeira), a vitória de Dilma Rousseff significa verdadeiramente uma catástrofe, como a vitória de Serra teria significado uma catástrofe para os interesses políticos dos adversários. Neste duelo para decidir quem tinha o maior Apocalipse, tomar uma decisão lúcida parecia realmente difícil, em especial em meio à histeria das últimas semanas, e da interferência canhestra de questões religiosas em um debate político. O episódio em que Joseph Ratzinger, o líder de um estado teocrático, tentou influir nas eleições de um estado democrático e oficialmente laico fica em nossa História como um momento de desrespeito a mais da Igreja Católica em solo brasileiro. Não estou diminuindo a importância da discussão da legalidade do aborto, mas buscar fazer com que isto defina a eleição do presidente da República, quando tantos fatores estavam em jogo, pareceu-me em alguns casos beirar o grotesco.

No entanto, se os discursos apocalípticos pareciam exagerados, tampouco cria eu ser prudente ignorá-los. E foi levando-os em conta, contabilizando estas possíveis catástrofes, que tomei minha decisão pessoal de qual candidato preferia ver na presidência da República, mesmo que tenha também tomado a decisão clara de não militar por tal candidato. Explicarei o porquê adiante. Para o revelar aqui, recorreria a uma paráfrase daquele capítulo de negativas do romance genial de Machado de Assis: pois, contabilizando os débitos da possível catástrofe política anunciada e alegada a cada lado da disputa presidencial, e o crédito das possibilidades de transformação social necessária no Brasil que cada um representava, ao chegar à tabela e resultado da conta encontrei Dilma Rousseff com um pequeno saldo. E é por isso que me alegrei, sem qualquer entusiasmo ingênuo, com sua vitória neste domingo. Tentarei elaborar um pouco sobre isso. O uso que vários amigos queridos meus fizeram da acusação de "fascista" e "antidemocrático", tanto para Lula ou Dilma, assim como para Serra, parecem-me exageradas, mesmo que o PT esteja realmente muitíssimo confortável no poder, e Serra me pareça um protótipo mal-acabado de brutamontes truculento e autoritário. A isso, restaria dizer: mostre-me o partido que algum dia deixou o poder de bom grado. O PSDB criou a emenda da reeleição para manter Fernando Henrique Cardoso no poder, emenda vilipendiada por Lula e pelo PT, aqueles que, na sua boa hora, a souberam usar. De qualquer forma, a disputa presidencial ocorreu em terreno democrático, e o discurso de bicho-papão hoje em dia não ajuda, nem convence. De qualquer forma, por mais temerário que seja afirmá-lo aqui, confesso que, ao levar sim a sério as possibilidades de catástrofe antidemocrática de cada candidato, pareceu-me mais importante manter a continuidade dos programas sociais que (alega-se e torço para que seja verdade) tiraram 30 milhões de brasileiros da pobreza extrema. Se foram criados no governo de FHC, parece claro que passaram a funcionar no de Lula. Para mim, isto foi o que mais pesou na balança de minha decisão pessoal. Que estes brasileiros tenham votado para defender seus interesses econômicos (mesmo que estes interesses econômicos envolvam uma bolsa do governo de míseras dezenas de reais) parece-me totalmente legítimo, ainda que figuras como Olavo de Carvalho e Ferreira Gullar (ou nanicos intelectuais como Reinaldo Azevedo), em meio a certa histeria religiosa e ideológica, tentassem fazer disso algo a se lamentar. Ora, a classe média e alta vêm agindo politicamente de acordo com seus interesses econômicos há séculos. E insisto dizer tudo isso sem a menor simpatia especial pelo PT.

Deixei o Brasil há cerca de uma década. Vivi entre a Alemanha e o Brasil nos anos 2000 a 2002, quando me mudei de forma definitiva para Berlim, voltando ao Brasil apenas para visitar meus pais ou resolver questões burocráticas. Em 2002, uma de minhas últimas ações como residente da República Federativa do Brasil foi votar em Luís Inácio Lula da Silva em sua primeira vitória eleitoral à presidência, e sair às ruas para comemorar. Lembro-me ainda de estar com amigos na Avenida Paulista, com aquele cheiro de mudança no ar. Estava entusiasmado. Oito anos depois, vivendo em Berlim, lendo homens e mulheres favoritos como Ludwig Wittgenstein e Hannah Arendt, confesso não encontrar em mim sequer sombra daquele brand tipicamente latino-americano de messianismo. O que resta é um desejo difuso de parúsia que se faz herança da minha educação religiosa como criança, pela qual sou tão grato, e pela leitura de outros seres prediletos e mestres eleitos, como Walter Benjamin. Contemplo hoje homens como Lula, FHC e Serra, ou mulheres como Dilma Rousseff e Marina Silva, com uma desconfiança e suspeita que são o que de melhor aprendi e herdei dos poetas anarquistas que me formaram, como os dadaístas germânicos.

Restaria, por fim, falar sobre aquela imposição est-É-tica de não militar. Como disse, muitos amigos meus militaram de forma ativa por um ou por outro candidato nesta eleição. Também testemunhei a maneira como muitos poetas tomaram partido, não posição, e defenderam claramente um ou outro candidato, mesmo entre aqueles que são tão adamant sobre a separação entre estética e ética.

A alguns isso parecerá uma contradição, vindo de alguém que insiste (ad nauseam, dirão alguns) na conjunção de ética e estética, fazendo meu joguinho gráfico constante na palavra est-É-tica, mas só me manifestei publicamente com amigos, em debates virtuais, quando parecia haver um abuso da linguagem no que se debatia na imprensa brasileira, distorcendo-a, como na maneira que o PT vinha usando o substantivo "mudança", ou na estratégia absurda do PSDB, de ferir a natureza laica do nosso Estado ao usar como usou suas alianças políticas com a Igreja Católica. Era este o limite imposto por minha crença inabalável na conjunção entre ética e estética. Ora, alguém poderá peguntar, por que "imposto"? Essa discussão toca no dilema que senti nestes últimos meses e ao qual já me referi aqui.

O que, eu passei a me perguntar, permitia a tantos poetas brasileiros, poetas que insistem na separação entre poesia e política, poetas que insistem na separação entre ética e estética, poetas que abraçam conceitos questionáveis como trans-historicidade e "poema pós-utópico", poetas que se assanham, atiçam e atacam a qualquer tentativa de leitura contextual de sua poesia, poetas que são inimigos da crítica sociológica, poetas que afirmam que a única obrigação do poeta é escrever poemas bons e bonitos, sem qualquer ligação obrigatória com seu tempo, o que, eu me perguntei, permitia a estes poetas tomarem partido tão claro, defenderem Dilma Rousseff ou José Serra com tanta paixão em seus blogs, em seus perfis no Facebook, no Orkut, etc, etc, etc. Não há contradição nisso, eu creio: pois é justamente sua crença na separação completa entre ética e estética que lhes permitiu esta imisção nos jogos de poder. Porque eles acreditam na separação, digamos, entre sua pessoa física e sua pessoa poética. Assim, eu imagino, eles criticariam poetas que escrevem para defender partidos, como um Maiakóvski ou Brecht o fizeram em vários momentos, mas talvez por misturarem sua poesia e sua política, não necessariamente por assumirem posições num possível governo, mesmo que seja a posição de defendê-lo textualmente.

Não estou de maneira alguma criticando os poetas que defenderam Dilma Rousseff ou José Serra abertamente apenas por fazê-lo. Há muitos amigos meus, extremamente próximos, que o fizeram. O que me chamou a atenção é quantos deles discordam, às vezes com veemência, de minha tentativa de conjugar poetica e formalmente a discussão ético-estética. Pois alguns destes amigos (e os que estão longe de serem amigos) sempre defendem com paixão o que chamaria de absenteísmo público do poeta nestes últimos 25 anos, como uma defesa da suposta independência política do poeta, sua neutralidade. É aí que me pergunto se não haveria certa contradição. Ao mesmo tempo, algumas pessoas me escreveram perguntando por que um poeta como eu, tão insistente na discussão das implicações políticas do trabalho formal e crítico, mantinha-me assiduamente fora da militância pelo PT ou pelo PSDB em meio à shit storm que foi esta eleição, como se houvesse aí uma contradição de minha parte. Pois reafirmo que foi minha crença na est-É-tica que me impôs a não-militância. No ensaio que estou escrevendo e que gostaria de haver terminado antes das eleições, trato das alianças sociopolíticas dos poetas, sua relação com o mecenato, seja privado ou governamental, e como estas alianças sociopolíticas podem influir em suas escolhas formais. Assim como as transformações formais da poesia dos últimos séculos estão ligadas às transformações do papel do poeta em sua comunidade, deflagradas por tantos cataclismos políticos, como a Revolução Francesa e a Revolução Russa, para mencionarmos dois de ligação clara com algumas transformações poéticas que se seguiram, dois momentos em que os poetas foram OBRIGADOS a mudarem suas alianças sociopolíticas, entre as classes ou grupos que estavam ou pareciam estar no poder. Nada glamouroso para os que ainda parecem ver o poeta como um ser entre o santo e o mítico, nas palavras daquele grão-desmistificador das nossas imposturas, João Cabral de Melo Neto. É por isso que não militei nem pretendo militar por qualquer candidato ou governo, por essa crença na conjunção entre ética e estética, pois me parece mais importante, politicamente, manter uma verdadeira independência para criticar e denunciar as "imposturas de linguagem" ocorridas nos últimos meses. Isso é, eu admito e entendo quem assim o veja, realmente complicado, questionável e segue sendo um dilema pessoal meu, algo que me incita à meditação nestes dias e que compartilho aqui com vocês. Eu acredito hoje que o poeta deveria ser oposição sempre, não importando quem está no Governo, e trata-se aqui de um parâmetro pessoal para mim mesmo, sem querer impor essa visão a outros poetas.

Há muitas outras coisas que gostaria de discutir, como a tentativa de interferência perpetrada por Joseph Ratzinger no debate político de um estado laico e democrático, ou sobre o fato de termos uma mulher como futura presidente, mas deixo isso tudo para outro momento. Devemos nos alegrar, porém, pelo fato de que as estratégias políticas questionáveis das últimas semanas não se fizeram valer.



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3 comentários:

Semín disse...

oi
talvez esta pergunta também implique politicamente, com a situação da PL 122 na boca do senso comum e na mandíbula dos legisladores. eu leio você aqui e na modo de usar e me vejo livre pra perguntar pra ti o que você pensa sobre a militância gay. eu tenho 18 anos e acho que ainda nem nasci, mas algumas coisas me parecem cheias de cacunchos e tão fatalmente tortas. sou gay (ridículo falar assim, parecendo reality show?)(não) mas não acho que pertenço ao grupo humano chamado os gays, tanto como o silas malafaia se refere, quanto os próprios militantes se definem. me desculpa este embaraço, na verdade quero falar com vc há um tempo já, sobre cocorosie! mas deixa que depois falo disso.

Ricardo Domeneck disse...

Caro Semín,

Seu comentário traz várias questões e uma pergunta específica. É difícil responder sua pergunta sem, de alguma forma, abordar estas questões que você menciona, como a PL122 e o pregador Silas Malafaia. Antes de responder, tive que ler um pouco sobre a PL122 e descobrir quem era Silas Malafaia, que eu, confesso, preferiria ter seguido desconhecendo.

Há um problema sério em toda e qualquer militância, seja ela a militância gay ou a militância por um partido político: ela impede a auto-crítica. Este é um problema sério, por exemplo, na comunidade gay de quase qualquer país. Falta auto-crítica. Agora, é necessário entender os motivos dessa militância, que leva a essa tentativa de identidade-em-massa, essa falta de luta pelo individual e pela diferença entre os próprios homossexuais, criando esta trincheira imaginária e nociva entre os heterossexuais (que não formam grupo homogêneo) e os homossexuais, que tampouco o formam. E o problema é que estas questões acabam relegadas a segundo plano ou ao futuro por parecer mais importante, neste estágio do debate (que eles chamariam de luta), assegurar certas liberdades e direitos civis que outras minorias, como os negros, já conquistaram em parte (em alguns poucos lugares), mas pelas quais ainda seguem lutando. O Brasil é um dos países com o maior índice de violência contra homossexuais. Ninguém fala sobre isso porque ninguém se importa. A maioria não está realmente preocupada se "viados, travecos e frutinhas" estão apanhando na rua ou sendo mortos. É por isso que, por mais que eu tenha muitas críticas à militância gay, sei que foram militantes que conquistaram algumas das poucas liberdades civis que hoje temos. Alguns estudos dizem que o Brasil pratica tanta violência contra homossexuais quanto países onde a homossexualidade é considerada crime, como Cuba e Irã, aliados do Governo atual do Brasil.

Qualquer pessoa teria vergonha de ir à televisão e defender o direito de discriminar pessoas negras ou do sexo feminino. Mas as pessoas ainda sentem que podem ir a TV para defender a discriminação contra pessoas homossexuais. Basta que você pense em quanta gente teria vergonha de contar uma piada racista, mas não teria o menor pudor em contar uma piada de "bicha".

Agora, existe uma questão muito complicada nesse debate. Como criar uma constituição que defenda a liberdade civil dos homossexuais, sem ferir a liberdade de culto dos cristãos que seguem um Livro Sagrado que condena a homossexualidade? A questão não é tão simples quanto qualquer lado do debate faz tentar parecer. É óbvio que nós precisamos de uma lei que defenda as liberdades civis dos homossexuais. Creio que a PL122 tenta estender aos cidadãos brasileiros homossexuais uma proteção que (ao menos oficialmente) tenta-se dar aos cidadãos brasileiros de ascendência negra. Muita gente que eu conheço diz que o Brasil está ficando politicamente correto demais... mas são pessoas que não sentem na pele o que é ser discriminado por sua cor de pele ou sua orientação sexual. Eu ouço críticas a estas leis de liberdade civil sempre vindo de HOMENS BRANCOS HETEROSSEXUAIS.


(CONTINUA)

Ricardo Domeneck disse...

SEGUNDA PARTE:

Não se pode esperar, no entanto, que os cristãos preguem práticas sexuais que seu Livro Sagrado proíbe. O que eles precisam entender é que a lei não pede a eles que preguem de seus púlpitos que a homossexualidade não é pecado, nem podemos esperar que o façam. Eu, pelo menos, não espero, pois isso poderia se tornar a complicada questão de liberdade civil sexual VERSUS liberdade civil religiosa, e desse vespeiro não se sai mais. É perda de tempo e energia processar um religioso porque ele pregou de seu púlpito que a homossexualidade é pecado. Mas não é perda de tempo e se deve processar aquele que o insulta na rua, aquele que tira seu emprego por causa de seus "ademanes", aquele tenta transformar cidadãos legítimos como qualquer outro em cidadãos de segunda classe, sejam por sua cor de pele ou orientação sexual, como os nazistas fizeram com os alemães que eram TAMBÈM judeus antes de exterminá-los. O extermínio nazista começou assim: privando cidadãos de seus direitos políticos e suas liberdades civis. É por isso que temos que lutar para defendê-las. Com respeito à liberdade religiosa dos heterossexuais, mas com firmeza por aquilo que nos pertence tanto quanto a eles.

Espero ter respondido sua pergunta. E se posso te dar um conselho, lembre-se: se você vive em um lugar onde as pessoas te agridem por sua orientação sexual, nunca se esqueça de que o mundo é grande, há outros como você (é muito fácil sentir-se sozinho quando se tem 18 anos e se é homossexual) e você é dono do seu destino.

abraço

Ricardo

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