quarta-feira, 30 de março de 2011

Pequeno diário madrilenho, com notas sobre Córdova e Berlim, povoadas de poetas e poemas.

§ - CÓRDOVA, ainda.

Antes de partir para Madri, depois das apresentações no festival, passei o dia perambulando por Córdova, lendo, escrevendo. A grande experiência, no entanto, ocorreu indoors, ou throughdoors talvez devesse dizer, dentro da Mesquita-Catedral. Em poucos prédios tive tal susto maravilhado, esta espécie de soco est-É-tico.





Posso mencionar dois outros prédios onde tive esta experiência, no sentido mais preciso da palavra "experiência", este soco est-é-tico, cada um à sua maneira distinta: a Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto, aquela igreja-útero de Antônio Francisco Lisboa, e o Judisches Museum (Museu Judaico) aqui em Berlim, aquele "vazio espaçoso" de Daniel Libeskind.

Ali na Mesquita-Catedral seria possível e o mais apropriado dos locais para discutirmos a historicidade da arte, a historicidade flexível da criação artística. É um local onde me parece tomar forma o casamento intrínseco e inseparável, que uns veem como dualidade, de transcendência e imanência. Não sei explicar de outra maneira.

Ali se entende como era ético o minimalismo de João Cabral de Melo Neto quando este diz no famoso "A Palo Seco", de Quaderna (1960):


A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,

as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.



Murilo Mendes, por sua vez, escreveria em "Córdova", do livro Tempo espanhol (1959):


Toda nervo e osso, contida
Em labirintos de cal
E em pátios de vida secreta,

Córdova áspera e clássica
Alimentada de África.



Fora da mesquita-catedral, caminhei um pouco, sentei-me diante das Muralhas dos Reis Cristãos (Murallas de los Reyes Cristianos) e comecei um poema, tentando dar conta daquele soco. Não consegui, mas quero seguir trabalhando nele.


§


MADRI, então.


Cheguei a Madri com tudo isso na cabeça. Fiquei hospedado na casa da poeta espanhola Ajo, minha querida, que pratica um minimalismo-soco todo ético e prático à sua própria maneira, ainda que muito diferente do de Cabral. Veja abaixo um dos poemas de Ajo em tradução minha e no original:


Fechaduras de cinzas,
cicatrizes com zíper
e lágrimas de alumínio,
embrulhado em algodão
carrego o que me falta.


Cerrojos de ceniza,
cicatrizes con cremallera
y lágrimas de hojalata,
envuelto en algodones
llevo lo que me falta.



Visitei algumas livrarias e fiquei namorando milhares de livros que queria muuuuito poder trazer da Espanha para a Alemanha, mas não podia comprar muita coisa. Além de algumas antologias de poesia medieval espanhola (os estupendos poetas árabes, judeus e occitanos da península), queria encontrar o romance Tadeys, do argentino Osvaldo Lamborghini (1940 - 1985), mas não consegui encontrá-lo em qualquer livraria. Como estava na Espanha, achei por bem ler um espanhol e acabei comprando um romance do Enrique Vila-Matas, a quem ainda não tinha lido. Não sabia qual, e acabei optando por Bartleby Y Compañía (2001), pois (sendo bem sincero) era curto e eu sabia que mesmo que acabasse não gostando do trabalho ou estilo de Vila-Matas, o livro seria ao menos entertaining. É que confesso que as resenhas e artigos que tinha visto pela imprensa e blogosfera brasileiras nos últimos tempos me tinham dado uma certa canseira. Mas, ora, sabemos que nós escritores e poetas a-do-ra-mos ler historinhas de vida sobre outros escritores e poetas, não é mesmo? Já comecei a ler e estou curtindo. Há passagens realmente memoráveis e muito bem-escritas, como quando ele relata sobre a escritora que acabara paralisada por culpa de Robbe-Grillet e Barthes. É muito elegante e divertidíssimo. Escrevo mais quando terminar.

Passei a tarde no Museu Rainha Sofia (Museo Reina Sofía), pois da última vez que estive em Madri, apresentando-me justamente no próprio Reina Sofía, não tive tempo de visitar as exposições, ocupado com passagens de som e preparativos para a performance. Havia uma exposição muito boa com curadoria de Georges Didi-Huberman chamada Atlas. ¿Como llevar el mundo a cuestas?, partindo da biblioteca-conceito de Aby Warburg para criar uma coleção de trabalhos entregues ao trabalho atlético de catalogar o mundo, uma ânsia taxinômica e taxidérmica, nominalista, não sei. Era bem boa.





Vi também uma pequena exposição do argentino Roberto Jacoby que me interessou muito. Não conhecia seu trabalho.





Vi ainda, é claro, as salas permanentes com Picasso e Dalí, os velhotes datados. Estas não me interessaram muito. Encontrei-me então com Ajo e fomos gravar minha entrevista para seu programa de rádio semanal, para o qual convida poetas, artistas e músicos para apresentarem suas canções favoritas e, é claro, dar uma canjinha do próprio trabalho. Li meu poema "Texto em que o poeta celebra o amante de vinte e cinco anos" na tradução de Cristian De Nápoli para o castelhano, e comentei as seguintes canções divescas:


"Sat in the lap", Kate Bush.
"Gloria", Patti Smith.
"Iceblink Luck", Cocteau Twins.
"Amor, meu grande amor", Ângela Ro Ro.
"Is this desire", PJ Harvey.
"Cowboys", Portishead, na voz da magnífica Beth Gibbons.


Ajo gravou também, na mesma ocasião, o programa que irá ao ar uma semana antes do meu, com o cantautor dominicano Alex Ferreira, muito simpático.





Saímos da gravação e fomos para a Libreria Buena Vida, onde ocorria a apresentação do primeiro romance do poeta Carlos Pardo, que conhecera em Berlim no ano passado, em um evento do Instituto Cervantes. Carlos Pardo, que nasceu em 1975, é um dos poetas mais respeitados de sua geração, também editor, crítico literário e organizador de eventos na capital espanhola. Já escrevi sobre ele aqui.


El retrato español
Carlos Pardo

Son periferia,
no vienen de muy lejos.
Abre el grupo
una mujer, terrosa
la barbilla
por una quemadura
-chándal,
cazadora de cuero-
con un surco de carne
enroscado a la oreja.
Esperan la apertura
del museo.
Vienen a reconocerse.

Los que son como yo
o son yo sobrellevan
cada uno
la carga del más próximo.
Nos deprimimos juntos.
Celebramos
el anhelo aplazado,
y si nuestro retrato suma invariablemente cero
y la lluvia de fondo natal nos anonada,
no querremos cumplirlo.

En el origen
una mesa ridícula.
Paredes amarillas
con recortes de prensa.
Al ritmo episcopal de los equinos
del paseo, un hombre inútil mezcla
amor e ideología.

Nosotros no
tenemos hogar.
Hacemos cola
bajo el apóstol pintor.
-Otro con tentaciones.
-Es el mismo.




Pardo estreia agora como prosador. A discussão foi interessante. Depois, reunido em roda com Pardo, a poeta madrilenha Sandra Santana e com o poeta e tradutor peruano Martín Rodríguez-Gaona, o romancista Andrés Barba, que conheci ali, virou para mim e começou a perguntar sobre uma "importante escritora brasileira" que havia ficado famosa apenas com seu diário. É que o romance de Carlos Pardo usa muitos elementos da literatura memorialística, e a conversa rodava por "autobiografia como gênero literário". Não conseguia pensar a quem ele se referia. Disse eu que os escritores brasileiros mais famosos por sua memorialística eram Joaquim Nabuco e Pedro Nava. Só fui perceber de quem ele falava quando ele mencionou que a autora havia sido traduzida por Elizabeth Bishop para o inglês: só podia se tratar de Helena Morley e seu Minha Vida de Menina (1942). Fiquei muito impressionado que esta escritora brasileira pipocasse em uma conversa na Espanha. Confessei não haver lido o livro, recomendei a eles Nabuco e Nava, e, como a discussão naquele momento havia guinado para autobiografismo fictício e ciladas da memória, que lessem Dom Casmurro, o que, de qualquer maneira, já deveriam ter feito.

Havia marcado de me encontrar ali com minha amiga, a já mencionada Sandra Santana, excelente poeta, historiadora literária, crítica e tradutora. Já traduzi poemas dela para a Modo de Usar & Co.. Sandra tem-se firmado como uma das personalidades poéticas e críticas mais importantes de sua geração, especialmente em Madri. A prestigiosa editora Acantilado acaba de lançar, numa bela edição, seu importante estudo crítico e histórico El laberinto de la palabra: Karl Kraus en la Viena de fin de siglo (Barcelona: Acantilado, 2011).





Ela me presenteou com um exemplar, quero muito lê-lo. Sandra já lidara com Karl Kraus antes, traduzindo e publicando em 2005 uma antologia de poemas do austríaco. No ano passado, Sandra ganhou um importante prêmio literário espanhol por sua tradução ao espanhol da obra poética completa do também austríaco Peter Handke. Nós dois compartilhamos o interesse e paixão pela poesia de outra austríaca, a maravilhosa Friederike Mayröcker.

A própria Sandra Santana é dona de uma das mais sutis e inteligentes vozes poéticas contemporâneas dentre as que tenho a sorte de conhecer. Leia abaixo um exemplo, em minha tradução e no original, texto de que gosto muitíssimo:



Rupturas dissimuladas sob uma carinha sorridente

Sempre detecto um gesto
de incredulidade
quando conversamos sobre os frágeis mecanismos
ocultos sob uma aparência infantil.

Como você não crê neles, derrubou-o
e me encarou triunfante
ao ver a superfície intacta apesar do impacto.

Imagine o que senti ao erguê-lo
e escutar esta peça solta em seu interior.


:


Rupturas disimuladas tras una carita sonriente
Sandra Santana

Siempre detecto un gesto
de incredulidad
cuando te hablo acerca de los frágiles mecanismos
ocultos tras una apariencia infantil.

Como no crees en ellos, lo dejaste
caer y me miraste victorioso
al ver su superficie intacta a pesar del impacto.

Imagina lo que sentí al recogerlo
y escuchar esa pieza suelta en su interior.




No dia seguinte, tomei café com meu amigo Alexander Ossia, revi Sandra Santana e visitei uma ótima exposição de vídeoarte na Caixa Forum, com trabalhos (muito, muito, muito bons) de Julian Rosefeldt ("Lonely Planet", 2006); Isaac Julien ("Fantôme Créole", 2005); Runa Islam ("Tuin", 1998); Kerry Tribe ("Double", 2001); Paul Chan ("1st Light", 2005); Omer Fast (Godville, 2005); Mungo Thomson ("New York, New York, New York, New York", 2004); e Ian Charlesworth ("John", 2005).





§ - BERLIM, agora.


Voltei a Berlim. Está friíssimo. Mas hoje é quarta-feira e pretendo me acabar de dançar (e beber para comemorar que tudo fora bem na Espanha) na nossa SHADE inc enquanto escuto o meu amigo (e homem lindo) Uli Buder, mais conhecido como Akia, discotecando.





Uli Buder é um dos músicos mais talentosos que tenho a sorte de conhecer, principalmente porque posso abusar do seu talento e colaborar com ele. Para a peça vídeo-textual que criei para a performance em Córdova, Uli foi responsável pela parte sonora. Acima, você pôde ver um vídeo da primeira vez que ele tocou ao vivo no meu evento das quartas-feiras, em 2009.





Quanto à peça para as Soledades, acho que só na semana que vem. É bom estar em casa, com as baterias recarregadas.


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4 comentários:

Anônimo disse...

Me suele gustar mucho lo que escribe Sandra Santana (pero no compartao el interés por Karl Kraus...;-)... aquí me parece sobre todo interesante el juego de implicaciones que nace del polisemico "dejar caer" (fallen lasse, aber auch beiläufig erwähnen)

Sehr schöner Text el de Carlos Pardo.

acriflor disse...

Hola Ricardo! Te vi en Soledades, y me gustó muchísimo lo que hiciste, es genial. No conocía tu trabajo, me sorprendiste mucho, estoy encantada de haberte conocido. Además me viene genial leerte, el año que viene me voy a vivir a Lisboa. Un placer; María.

Ricardo Domeneck disse...

Querida Anónima,
el poema de Sandra Santana tiene mismo implicaciones muy interesantes, es muy subtil y intelgente. Me encanta que te guste.

Querida María,
que bueno saber que la performance en Córdoba te interesó a punto que me busques en la Red. Gracias por estar ahí. No conozco Lisboa todavía, pero estoy invitado a hacer una performance en Lisboa el 22 de septiembre. abrazo,

Ricardo

acriflor disse...

Pues para el 22 de septiembre espero estar instalada allí; asi que espero poder verte en Lisboa. Un beso.

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