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segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

No centenário de João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector

Estou trabalhando em algo para a Deutsche Welle com o centenário de Clarice Lispector em mente, e conversei durante o fim de semana com o escritor e tradutor alemão Oliver Precht, que além de ter vertido trabalhos de Oswald de Andrade e Eduardo Viveiros de Castro para o alemão, tem também trabalhado muito com textos de Clarice Lispector, em especial "O ovo e a galinha" e "Mineirinho", sobre os quais escreveu um texto muito interessante que pode ser lido na edição de dezembro da prestigiosa revista de arte alemã Texte zur Kunst.

Quando estou escrevendo sobre algo, minha cabeça viaja associativamente para vários ângulos da questão. Esta manhã estava a pensar sobre os paralelos interessantes entre dois centenários ilustres neste Ano de Nossa Senhora da Virulência 2020: o de João Cabral de Melo Neto e o de Clarice Lispector. São dois dos maiores escritores nossos do pós-guerra, talvez os mais influentes. São escritores da mesma geração, por vezes agrupados com João Guimarães Rosa na chamada Terceira Geração Modernista (que difere e coexistiu com o Grupo de 45, seu antípoda). 

João Cabral de Melo Neto estreou em 1942, com Pedra do Sono. Clarice Lispector estreou em 1943, com Perto do Coração Selvagem. João Guimarães Rosa, em 1946, com Sagarana. Se pensarmos antoniocandidamente, considerando a estreia de um autor e portanto sua inserção no diálogo republicano como determinantes geracionais e históricas, teríamos que pensar ainda em José Paulo Paes, que estreia em 1947 com O aluno, e decidir o que fazer com Dante Milano e Joaquim Cardozo, autores mais velhos que têm publicações pela primeira vez também em 1947. Perdoem-me, alguns já sabem que tenho dessas obsessões historiográficas. As histórias que nos contamos muitas vezes nos determinam.

Mas retornemos aos centenariantes: Cabral e Clarice. Como é raro pensarmos nos dois juntos! Mas há vários paralelos com diferenças determinantes. Ora, não terão se cruzado na Recife de sua infância? Talvez sim, talvez não. Afinal, um deles era um menino da elite econômica de Pernambuco e neto de senhores de engenho; a outra era uma menina imigrante pobre. Os dois fariam do Rio de Janeiro sua casa, e ali morreriam. Os dois passariam longos anos fora do Brasil, envolvidos com a diplomacia brasileira, Cabral como diplomata ele mesmo, Clarice casada com o diplomata Maury Gurgel Valente.

Na obra de Cabral, Clarice comparece em um poema conhecido:

CONTAM DE CLARICE LISPECTOR
João Cabral de Melo Neto 

Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.

Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.

Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?

[extraído do livro Agrestes (1981/1985)]

Sabemos que Cabral apreciava muito o trabalho de Clarice, e tentou convencê-la a permitir que ele estreasse sua tipografia d'O Livro Inconsútil em Barcelona com um trabalho dela, à época uma peça intitulada 'O coro dos anjos', mas que só seria publicada no livro A legião estrangeira em 1964 com o novo título “A pecadora queimada e os anjos harmoniosos”. Clarice recusou o convite.

Cabral entraria para nossa história como o poeta objetivo, seco, antilírico e anti-psicologizante. O menino rico também se tornaria o exemplo do autor engajado nas questões socioeconômicas do seu tempo. Clarice, por sua vez, seria lida como a autora das profundidades psicológicas (eu mesmo já cheguei a dizer que foi ela, com Machado de Assis e Nelson Rodrigues, que inventou nossa 'alma', não nos vendo como meros joguetes justamente daquelas forças socioeconômicas), a escritora de potência mística. 

Em seu texto para a revista Texte zur Kunst, Oliver Precht questiona justamente essa visão de Clarice Lispector como autora 'apolítica', a partir especialmente de um texto como "Mineirinho". E, ora, João Cabral de Melo Neto não é o autor daquela gigantesca pérola de profundidade psicológica e mesmo potência mística que é o poema “Uma faca só lâmina"?

Nos nossos dias de horríveis balas perdidas, não sei o quanto nos ajuda, salva ou exorta, pensar nas balas que comparecem em trabalhos de João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Mas elas estão lá.

*

"Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

– João Cabral de Melo Neto, Uma faca só lâmina, excerto.

*

"Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.

Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos."

– Clarice Lispector, "Mineirinho", excerto.


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quarta-feira, 30 de março de 2011

Pequeno diário madrilenho, com notas sobre Córdova e Berlim, povoadas de poetas e poemas.

§ - CÓRDOVA, ainda.

Antes de partir para Madri, depois das apresentações no festival, passei o dia perambulando por Córdova, lendo, escrevendo. A grande experiência, no entanto, ocorreu indoors, ou throughdoors talvez devesse dizer, dentro da Mesquita-Catedral. Em poucos prédios tive tal susto maravilhado, esta espécie de soco est-É-tico.





Posso mencionar dois outros prédios onde tive esta experiência, no sentido mais preciso da palavra "experiência", este soco est-é-tico, cada um à sua maneira distinta: a Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto, aquela igreja-útero de Antônio Francisco Lisboa, e o Judisches Museum (Museu Judaico) aqui em Berlim, aquele "vazio espaçoso" de Daniel Libeskind.

Ali na Mesquita-Catedral seria possível e o mais apropriado dos locais para discutirmos a historicidade da arte, a historicidade flexível da criação artística. É um local onde me parece tomar forma o casamento intrínseco e inseparável, que uns veem como dualidade, de transcendência e imanência. Não sei explicar de outra maneira.

Ali se entende como era ético o minimalismo de João Cabral de Melo Neto quando este diz no famoso "A Palo Seco", de Quaderna (1960):


A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,

as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.



Murilo Mendes, por sua vez, escreveria em "Córdova", do livro Tempo espanhol (1959):


Toda nervo e osso, contida
Em labirintos de cal
E em pátios de vida secreta,

Córdova áspera e clássica
Alimentada de África.



Fora da mesquita-catedral, caminhei um pouco, sentei-me diante das Muralhas dos Reis Cristãos (Murallas de los Reyes Cristianos) e comecei um poema, tentando dar conta daquele soco. Não consegui, mas quero seguir trabalhando nele.


§


MADRI, então.


Cheguei a Madri com tudo isso na cabeça. Fiquei hospedado na casa da poeta espanhola Ajo, minha querida, que pratica um minimalismo-soco todo ético e prático à sua própria maneira, ainda que muito diferente do de Cabral. Veja abaixo um dos poemas de Ajo em tradução minha e no original:


Fechaduras de cinzas,
cicatrizes com zíper
e lágrimas de alumínio,
embrulhado em algodão
carrego o que me falta.


Cerrojos de ceniza,
cicatrizes con cremallera
y lágrimas de hojalata,
envuelto en algodones
llevo lo que me falta.



Visitei algumas livrarias e fiquei namorando milhares de livros que queria muuuuito poder trazer da Espanha para a Alemanha, mas não podia comprar muita coisa. Além de algumas antologias de poesia medieval espanhola (os estupendos poetas árabes, judeus e occitanos da península), queria encontrar o romance Tadeys, do argentino Osvaldo Lamborghini (1940 - 1985), mas não consegui encontrá-lo em qualquer livraria. Como estava na Espanha, achei por bem ler um espanhol e acabei comprando um romance do Enrique Vila-Matas, a quem ainda não tinha lido. Não sabia qual, e acabei optando por Bartleby Y Compañía (2001), pois (sendo bem sincero) era curto e eu sabia que mesmo que acabasse não gostando do trabalho ou estilo de Vila-Matas, o livro seria ao menos entertaining. É que confesso que as resenhas e artigos que tinha visto pela imprensa e blogosfera brasileiras nos últimos tempos me tinham dado uma certa canseira. Mas, ora, sabemos que nós escritores e poetas a-do-ra-mos ler historinhas de vida sobre outros escritores e poetas, não é mesmo? Já comecei a ler e estou curtindo. Há passagens realmente memoráveis e muito bem-escritas, como quando ele relata sobre a escritora que acabara paralisada por culpa de Robbe-Grillet e Barthes. É muito elegante e divertidíssimo. Escrevo mais quando terminar.

Passei a tarde no Museu Rainha Sofia (Museo Reina Sofía), pois da última vez que estive em Madri, apresentando-me justamente no próprio Reina Sofía, não tive tempo de visitar as exposições, ocupado com passagens de som e preparativos para a performance. Havia uma exposição muito boa com curadoria de Georges Didi-Huberman chamada Atlas. ¿Como llevar el mundo a cuestas?, partindo da biblioteca-conceito de Aby Warburg para criar uma coleção de trabalhos entregues ao trabalho atlético de catalogar o mundo, uma ânsia taxinômica e taxidérmica, nominalista, não sei. Era bem boa.





Vi também uma pequena exposição do argentino Roberto Jacoby que me interessou muito. Não conhecia seu trabalho.





Vi ainda, é claro, as salas permanentes com Picasso e Dalí, os velhotes datados. Estas não me interessaram muito. Encontrei-me então com Ajo e fomos gravar minha entrevista para seu programa de rádio semanal, para o qual convida poetas, artistas e músicos para apresentarem suas canções favoritas e, é claro, dar uma canjinha do próprio trabalho. Li meu poema "Texto em que o poeta celebra o amante de vinte e cinco anos" na tradução de Cristian De Nápoli para o castelhano, e comentei as seguintes canções divescas:


"Sat in the lap", Kate Bush.
"Gloria", Patti Smith.
"Iceblink Luck", Cocteau Twins.
"Amor, meu grande amor", Ângela Ro Ro.
"Is this desire", PJ Harvey.
"Cowboys", Portishead, na voz da magnífica Beth Gibbons.


Ajo gravou também, na mesma ocasião, o programa que irá ao ar uma semana antes do meu, com o cantautor dominicano Alex Ferreira, muito simpático.





Saímos da gravação e fomos para a Libreria Buena Vida, onde ocorria a apresentação do primeiro romance do poeta Carlos Pardo, que conhecera em Berlim no ano passado, em um evento do Instituto Cervantes. Carlos Pardo, que nasceu em 1975, é um dos poetas mais respeitados de sua geração, também editor, crítico literário e organizador de eventos na capital espanhola. Já escrevi sobre ele aqui.


El retrato español
Carlos Pardo

Son periferia,
no vienen de muy lejos.
Abre el grupo
una mujer, terrosa
la barbilla
por una quemadura
-chándal,
cazadora de cuero-
con un surco de carne
enroscado a la oreja.
Esperan la apertura
del museo.
Vienen a reconocerse.

Los que son como yo
o son yo sobrellevan
cada uno
la carga del más próximo.
Nos deprimimos juntos.
Celebramos
el anhelo aplazado,
y si nuestro retrato suma invariablemente cero
y la lluvia de fondo natal nos anonada,
no querremos cumplirlo.

En el origen
una mesa ridícula.
Paredes amarillas
con recortes de prensa.
Al ritmo episcopal de los equinos
del paseo, un hombre inútil mezcla
amor e ideología.

Nosotros no
tenemos hogar.
Hacemos cola
bajo el apóstol pintor.
-Otro con tentaciones.
-Es el mismo.




Pardo estreia agora como prosador. A discussão foi interessante. Depois, reunido em roda com Pardo, a poeta madrilenha Sandra Santana e com o poeta e tradutor peruano Martín Rodríguez-Gaona, o romancista Andrés Barba, que conheci ali, virou para mim e começou a perguntar sobre uma "importante escritora brasileira" que havia ficado famosa apenas com seu diário. É que o romance de Carlos Pardo usa muitos elementos da literatura memorialística, e a conversa rodava por "autobiografia como gênero literário". Não conseguia pensar a quem ele se referia. Disse eu que os escritores brasileiros mais famosos por sua memorialística eram Joaquim Nabuco e Pedro Nava. Só fui perceber de quem ele falava quando ele mencionou que a autora havia sido traduzida por Elizabeth Bishop para o inglês: só podia se tratar de Helena Morley e seu Minha Vida de Menina (1942). Fiquei muito impressionado que esta escritora brasileira pipocasse em uma conversa na Espanha. Confessei não haver lido o livro, recomendei a eles Nabuco e Nava, e, como a discussão naquele momento havia guinado para autobiografismo fictício e ciladas da memória, que lessem Dom Casmurro, o que, de qualquer maneira, já deveriam ter feito.

Havia marcado de me encontrar ali com minha amiga, a já mencionada Sandra Santana, excelente poeta, historiadora literária, crítica e tradutora. Já traduzi poemas dela para a Modo de Usar & Co.. Sandra tem-se firmado como uma das personalidades poéticas e críticas mais importantes de sua geração, especialmente em Madri. A prestigiosa editora Acantilado acaba de lançar, numa bela edição, seu importante estudo crítico e histórico El laberinto de la palabra: Karl Kraus en la Viena de fin de siglo (Barcelona: Acantilado, 2011).





Ela me presenteou com um exemplar, quero muito lê-lo. Sandra já lidara com Karl Kraus antes, traduzindo e publicando em 2005 uma antologia de poemas do austríaco. No ano passado, Sandra ganhou um importante prêmio literário espanhol por sua tradução ao espanhol da obra poética completa do também austríaco Peter Handke. Nós dois compartilhamos o interesse e paixão pela poesia de outra austríaca, a maravilhosa Friederike Mayröcker.

A própria Sandra Santana é dona de uma das mais sutis e inteligentes vozes poéticas contemporâneas dentre as que tenho a sorte de conhecer. Leia abaixo um exemplo, em minha tradução e no original, texto de que gosto muitíssimo:



Rupturas dissimuladas sob uma carinha sorridente

Sempre detecto um gesto
de incredulidade
quando conversamos sobre os frágeis mecanismos
ocultos sob uma aparência infantil.

Como você não crê neles, derrubou-o
e me encarou triunfante
ao ver a superfície intacta apesar do impacto.

Imagine o que senti ao erguê-lo
e escutar esta peça solta em seu interior.


:


Rupturas disimuladas tras una carita sonriente
Sandra Santana

Siempre detecto un gesto
de incredulidad
cuando te hablo acerca de los frágiles mecanismos
ocultos tras una apariencia infantil.

Como no crees en ellos, lo dejaste
caer y me miraste victorioso
al ver su superficie intacta a pesar del impacto.

Imagina lo que sentí al recogerlo
y escuchar esa pieza suelta en su interior.




No dia seguinte, tomei café com meu amigo Alexander Ossia, revi Sandra Santana e visitei uma ótima exposição de vídeoarte na Caixa Forum, com trabalhos (muito, muito, muito bons) de Julian Rosefeldt ("Lonely Planet", 2006); Isaac Julien ("Fantôme Créole", 2005); Runa Islam ("Tuin", 1998); Kerry Tribe ("Double", 2001); Paul Chan ("1st Light", 2005); Omer Fast (Godville, 2005); Mungo Thomson ("New York, New York, New York, New York", 2004); e Ian Charlesworth ("John", 2005).





§ - BERLIM, agora.


Voltei a Berlim. Está friíssimo. Mas hoje é quarta-feira e pretendo me acabar de dançar (e beber para comemorar que tudo fora bem na Espanha) na nossa SHADE inc enquanto escuto o meu amigo (e homem lindo) Uli Buder, mais conhecido como Akia, discotecando.





Uli Buder é um dos músicos mais talentosos que tenho a sorte de conhecer, principalmente porque posso abusar do seu talento e colaborar com ele. Para a peça vídeo-textual que criei para a performance em Córdova, Uli foi responsável pela parte sonora. Acima, você pôde ver um vídeo da primeira vez que ele tocou ao vivo no meu evento das quartas-feiras, em 2009.





Quanto à peça para as Soledades, acho que só na semana que vem. É bom estar em casa, com as baterias recarregadas.


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sábado, 19 de junho de 2010

Monumento ao ibuprofeno e outros irmãos químicos



Após os excessos de ontem à noite, nada melhor que litros de água e uma bela dieta de ibuprofeno, na falta de minha querida aspirina. Não é apenas a dor de cabeça cabralina que me assola, mas também aquela deliciosa garganta que decide tornar dolorosa a mera tentativa de engolir uma sopa. Senti vontade de reler aquele poema brilhante do João Cabral, "Num monumento à aspirina", do livro A Educação pela Pedra (1966).

Num Monumento à Aspirina
João Cabral de Melo Neto

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.



Enquanto isso, vou também escutando o novo álbum dos nerds britânicos Chemical Brothers. Eu já estava achando que seu trabalho estagnara, depois dos dois últimos álbuns sofríveis, mas este Further (2010), com oito faixas e vídeos, mostra que os master nerds de álbuns inovadores para a música pop como Exit Planet Dust (1995) e Dig Your Own Hole (1997) ainda estão em plena capacidade de fazer dançar. Comento e mostro o vídeo para o primeiro single, além da minha faixa favorita no álbum, chamada "Escape velocity", com 12 minutos, na plataforma digital de nossa SHADE inc, assinando como Kate Boss, meu codinome de DJ. Mostro aqui o primeiro single e vídeo oficial, para a faixa "Swoon".



"Swoon", do álbum Further (2010), dos Chemical Brothers.


Agora acho que vou tomar mais um ibuprofeno, querido irmão químico.

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