Carlos Drummond de Andrade, na página da FLIP 2012.
A edição de 2012 da Festa Literária Internacional de Paraty homenageia um dos grandes poetas brasileiros do século XX, Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987). Por ocasião, os cento e dez anos de seu nascimento. É certamente uma alegria ver, uma vez mais, um poeta no centro das homenagens daquele que se tornou o mais conhecido festival literário do país. É a quarta vez, num festival que chega este ano a sua décima edição: Vinícius de Moraes (1913 - 1980) foi o homenageado em 2003 – a primeira; Manuel Bandeira (1886 - 1968), em 2009; o escritor múltiplo (poeta, prosador, ensaísta e dramaturgo) Oswald de Andrade (1890 - 1954), em 2011; e agora, o itabirano. Se levarmos em consideração que, entre os outros seis homenageados – João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, Machado de Assis e Gilberto Freyre –, o último foi um grande sociólogo e pensador, temos uma curadoria razoavelmente equilibrada na importância dada à prosa e à poesia brasileiras - ao menos às já canonizadas. Estou ciente de que Machado e Rosa também escreveram poesia, mas ninguém há de insinuar que foi, sequer de longe, por suas produções poéticas que eles foram homenageados ou são hoje reverenciados. Quanto à decisão de homenagear apenas autores mortos, se ela denuncia a velha necrofilia crítica brasileira, isto já seria outra discussão, à qual não pretendo dedicar este artigo.
Ora, ninguém aqui é ingênuo; todos já estamos cansados de artigos nos quais a organização da FLIP recebe, justamente ou não, as contumazes acusações de ser mera vitrine comercial das grandes editoras do País. Ao mesmo tempo, ninguém realmente espera que as tendas da Festa se encham e seus copos de champagne se esvaziem, apinhando a programação com poetas. A festa dedica-se, obvia e compreensivelmente, aos produtores de prosa do País e do mundo - pois isto vende. Para tal, precisa ainda de suas celebridades. Desde que tenham qualidade literária, não há motivos para nos enfezarmos demais com os curadores. Imagino que o curador da edição deste ano, o jornalista Miguel Conde, esteja orgulhoso de poder trazer à festa brasileira o francês J.M.G. Le Clézio, galardoado com o Nobel em 2008; o inglês Ian Mcwean; o americano Jonathan Franzen, estrela da cena literária norte-americana e mundial; o espanhol Enrique Vila-Matas; e, por que não?, mesmo o sírio Adonis, um dos mais famosos poetas contemporâneos, candidato sério ao Nobel há vários anos.
Mesmo assim, não me parece absurdo observar de perto a seleção de autores feita pela curadoria, justamente na edição de um evento que tem como homenageado o grande poeta Carlos Drummond de Andrade. Afinal de contas, ainda que também tenha escrito prosa, ninguém há de insinuar que foi por suas crônicas que o mineiro tornou-se o gigante literário que nós hoje reverenciamos.
Foi com isso em mente que visitei esta noite a página oficial da FLIP 2012. Dos 40 escritores listados, pude contar 10 poetas – se tomarmos os nomes do chileno Alejandro Zambra e da escocesa Jackie Kay, que também escrevem poesia, ainda que pareçam estar claramente entre os convidados por seu trabalho em prosa. Voltamos uma vez mais ao problema: até que ponto o aspecto comercial deveria condicionar a seleção de um festival que se quer literário?
Se é papel de um festival como a FLIP reverter ou intervir num problema que tem, como base, complexas questões socioeconômicas, seria uma discussão larguíssima. É claro que tudo nos levaria, por exemplo, a uma discussão sobre os problemas educacionais brasileiros - isentando talvez a festa. No entanto, na discussão toda entraria certamente um debate sobre o financiamento do festival, quanto dinheiro público ali jorra e, portanto, quais suas responsabilidades socioculturais. Não tenho acesso a estas informações. Na página do festival, encontramos os logos da Lei de Incentivo à Cultura; do BNDES; da Secretaria de Cultura do Governo do Rio de Janeiro; e ainda da Petrobras.
Talvez seja utópico, idealista, ou apenas pouco realista esperar que a edição de 2012 da Festa Literária Internacional de Paraty, que homenageia o poeta Carlos Drummond de Andrade, tenha uma seleção mais equilibrada entre poetas e prosadores. Será realmente pouco convidar 10 poetas entre 40 escritores?
Confesso haver outras questões que me incomodam mais na seleção, ou me levam a questionamentos que complicam ainda mais a discussão. Uma delas: dos 7 poetas brasileiros convidados (ou quase todos os poetas, se excetuarmos Adonis, Zambra e Kay), apenas 1 tem menos de 50 anos. Apenas 3, menos de 60. A festa dá, em geral, espaço a escritores jovens. Conheço vários poetas de minha geração que já participaram de eventos anteriores. Este ano, entre os 30 "prosadores", pelo menos 7 são razoavelmente jovens, com menos de 40 anos.
A foto de Drummond usada na página da festa para a homenagem é, naturalmente, do Drummond que se tornou canônico em nossas mentes: o ancião, certamente já passados seus 80 anos. Trata-se de um fenônemo cultural, forte no Brasil. Mesmo que muitos dos mais famosos poemas – dos mais famosos poetas – tenham sido, com frequência, escritos quando estavam na casa dos 20 ou 30 anos, espera-se ainda do poeta algo como uma manifestação de sabedoria, talvez remanescente dos tempos em que os poetas da comunidade eram realmente os anciãos, que carregavam na mente e boca a história oral da tribo.
Mas pensemos no caso específico de Drummond: diz a História literária brasileira que o poeta tornou-se já bastante conhecido na cena poética nacional com a publicação do poema "No meio do caminho" na Revista de Antropofagia, em 1928. O poeta tinha 26 anos. Quando publicou seu primeiro livro, Alguma poesia (1930), tinha 28. O livro contém clássicos como "Poema de sete faces", "Quadrilha" e o próprio "No meio do caminho". Até completar 40 anos, publicaria os livros Brejo das almas (1934, com 32 anos), Sentimento do mundo (1940) e José (1942), com alguns de seus poemas mais famosos. Por muito tempo, parte do establishment literário nacional sequer considerava poesia o que o mineiro fazia. Se pensarmos na conferência de Mario de Andrade em 1942 como marco do triunfo institucional do Modernismo de 22 no establishment, tornando centrais no debate seus autores, seria correto pensar que apenas a partir daí o poeta Drummond teria sido considerado digno de participar de um festival de porte nacional e internacional no País?
Estou ciente de que tal meditação coloca grande pressão sobre os poetas jovens brasileiros, os que não foram jamais convidados para participar da FLIP, ou até mesmo sobre os mais velhos que foram convidados em anos anteriores ou neste. Para alguns, isso é querer compará-los a Drummond. Ou seja: dentre os poetas em atividade hoje no País, na casa dos 20 ou 30 anos, haveria algum que teria a importância que Drummond teve aos 20/30 anos? Não seria aconselhável se apressar na resposta. Pois temos que nos lembrar que o próprio Drummond teve por muito tempo sua obra considerada nos termos, tão frequentes ainda hoje, da famosa "mas isso não é poesia". Em todos os tempos, sempre houve cinquentões bradando que os mais jovens são péssimos poetas, apesar da História quase invariavelmente prová-los equivocados.
Mas, então, em que momento muda-se de opinião sobre a obra de um poeta? Gertrude Stein, em sua famosa conferência Composition as explanation, escreveu que "No one is ahead of his time, it is only that the particular variety of creating his time is the one that his contemporaries who also are creating their own time refuse to accept. And they refuse to accept it for a very simple reason and that is that they do not have to accept it for any reason". Ela continua:
"For a very long time everybody refuses and then almost without a pause almost everybody accepts. In the history of the refused in the arts and literature the rapidity of the change is always startling. Now the only difficulty with the volte-face concerning the arts is this. When the acceptance comes, by that acceptance the thing created becomes a classic. It is a natural phenomena a rather extraordinary natural phenomena that a thing accepted becomes a classic. And what is the characteristic quality of a classic. The characteristic quality of a classic is that it is beautiful. Now of course it is perfectly true that a more or less first rate work of art is beautiful but the trouble is that when that first rate work of art becomes a classic because it is accepted the only thing that is important from then on to the majority of the acceptors the enormous majority, the most intelligent majority of the acceptors is that it is so wonderfully beautiful. Of course it is wonderfully beautiful, only when it is still a thing irritating annoying stimulating then all quality of beauty is denied to it."
Perdoem-me a longuíssima citação, especialmente quando ela mais complica que aclara a discussão. Pois, aqui, seríamos obrigados a discutir nossa noção contemporânea de classicismo e modernidade, e quando esta última começa; questionar noções de linearidade histórica e evolução nas artes; entrar no ninho de vespas que é o debate sobre diacronia e sincronia; alguns se refeririam a Baudelaire, enquanto outros questionariam se este é mesmo o início de nossa modernidade, e não Rimbaud, ou Mallarmé, ou, a partir do interessantíssimo debate ao qual as traduções de Heine feitas por André Vallias poderiam ter-nos levado, mas não o fizeram por nossa preguiça, se foi o alemão; alguém, justamente, lembraria da querelle des anciens et des modernes, entre os literatos franceses do século XVII; ou será que Catulo já não teria sido moderno em alguma acepção do termo (teríamos então que voltar à raiz da palavra); ou, ainda, se não terá sido Calímaco, ao dizer que o modelo homérico ja não fazia sentido em seu tempo - século III antes da Era Comum – quem não instaurou a primeira querelle em suas disputas com Apolônio de Rodes. A questão é mais que complexa, talvez insolúvel.
Eu vou ensaiar uma minúscula contribuição à discussão, sobre o momento em que a aceitação de um autor torna-se clara e começa a estabelecer-se:
A geração que escolhe desperdiçar seus poetas, certamente os desperdiçaria até o fim, não houvesse um fator decisivo: os leitores mais jovens, aqueles que nascem em um mundo no qual tais obras são já fatos. São estes leitores que se sentem mais livres dos entrincheiramentos críticos engessados, aqueles decidindo a recepção de uma obra. Duvido que muitos dos leitores que viram "No meio do caminho" como uma perversão do que deveria ser a poesia (ou seja, aquilo que aprenderam a ver como poesia), tenham realmente mudado de opinião antes de morrerem. Foram muito provavelmente alguns poucos críticos e leitores da idade de Drummond, apoiados mais tarde por aqueles que nasceram após a criação de sua obra, que aos poucos impuseram sua percepção sobre tais poemas.
Assim como, para persarmos num exemplo recente, foram leitores mais jovens que começaram a transformar a recepção crítica das obras de autores como Hilda Hilst e Roberto Piva. Como são poetas e leitores mais jovens os que buscam hoje chamar a atenção para a qualidade da poesia de Leonardo Fróes.
Dessarte, eu perguntaria: se você está entre aqueles que consideram todos os poetas jovens brasileiros péssimos autores, e que o que fazem não é poesia, você tem certeza que as gerações nascendo hoje, ou em 10 anos, ou em 20 anos, não ridicularizarão nossa época por desperdiçar os poetas produzindo agora, na casa dos 20 e 30 anos? Podemos estar realmente certos de que nossa época será lembrada por sua prosa, não por sua poesia?
Talvez tenhamos nos afastado bastante da discussão inicial, sobre a seleção dos autores da FLIP 2012. Mas não demasiado. Pois o próprio curador desta edição, na página dedicada à homenagem a Drummond, comenta: "Embora hoje seja considerado um clássico, por muito tempo Drummond recebeu críticas duras de pessoas para as quais o que ele escrevia não merecia nem mesmo ser chamado de poesia."
Seria realmente muito, esperar que o curador de um festival do porte da FLIP se mostrasse consciente de autores que estejam talvez hoje, neste exato momento, questionando o dilema entre o moderno e o eterno, propondo desafios ao "que ainda hoje diversas pessoas consideram definidoras do que é uma boa poesia"?
Por fim, estas são questões est-É-ticas interessantes, que têm implicações políticas talvez distantes, mas não por isso menos importantes. Não é obrigação dos curadores responder por completo a uma questão que se forma a partir de problemas socioculturais e, portanto, inescapavelmente econômicos nos nossos dias. Ou será?
Mas diante de outras questões políticas muito mais sérias ao contemplar a seleção de autores deste ano, tudo isto chega a parecer, a mim mesmo, picuinha. Quantos poetas e quantos prosadores estão entre os autores da FLIP 2012? Não é exatamente uma aberração.
Aberração verdadeira e gritante é a façanha dos curadores ao terem, entre os 40 autores, conseguido convidar apenas 5 mulheres. É a esta questão que pretendo dedicar o próximo artigo, seguindo depois para uma avaliação da porcentagem de autores vindos de fora dos âmbitos culturais europeu e norte-americano.
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5 comentários:
Muito legal, Ricardo gostei bastante do texto. Mas vou tocar num ponto que você não tocou.
É muita ousadia dizer que tal ou tal poeta realmente vai representar uma geração. Já acho muita ousadia fazer isso em mesas de bar, imagine então declarar isso num poster de evento desse porte.
Deve haver poucas pessoas com sapiência o suficiente pra fazer isso bem e igualmente poucos sem certezas, mas com coragem pra se expor defendendo poetas não-consagrados.
Eu ainda não consegui perceber se quem elege o cânone do futuro são esses ou aqueles.
O que acha?
acho que a discussão toda vai de encontro ao que penso sobre a flip: http://youtu.be/iWV1TNLc2hM
isoladamente, a feira/festa não se sustenta. poderia ser sempre mais.
mas há dois anos, pude notar também uma onda paralela (ainda que institucionalizada), de eventos, discussões, mesas redondas e saraus que ocorrem em paraty e que não têm uma ligação direta com a programação 'oficial'.
muito se deve ao interesse de jornais como a folha de s.paulo, o instituto moreira salles e algumas editoras que buscam também seu lugar junto aos holofotes. ferreira gullar e outros já participaram de eventos promovidos por essas instituições (a maioria deles, gratuitos).
fora desse contexto de auto-promoção, a off flip é uma das poucas iniciativas que verdadeiramente abre espaço para novos poetas e prosadores.
antes isso do que não ter amor nenhum.
abraços!
Muito boa a tua lucidez neste debate. A FLIP é a Coca-Cola. Ainda bem existem outras feiras literárias que conseguem bagunçar a cena e assim afogar os blefes e revelar aqueles que por não pertencerem ao grande mercado editorial acabam ficando de fora de Paraty.
E pra polemizar, deixo uma que ouvi hoje: Os melhores escritores nunca foram publicados.
E viva Bob Dylan, que hoje é aniversário do poeta.
FLIP é o som do meu vômito quando estou de ressaca.
Penso um pouco que um problema neste tipo de discussão é que os "canonizadores" esperam o peso de uma poesia que só se constrói com o tempo, sobre os ombros dos mais jovens. E o que está fora disso, é mau autor, ou inciante, talvez, "homenageador" do C-Â-N-O-N-E.
Um outro problema é o FUTURO. São certos autores consagrados, aí seja de crítica ou de criticados, e acreditam LITERALMENTE na vidência, então proclamam Rimbaudzinho(o menino e sua obra...). Só que não sei se Rimbaud escreveu algo sobre ler palmas no meio da rua, ou trazer seu homem em 3 dias.
Pra terminar, tinha que reproduzir isto:
"E pra polemizar, deixo uma que ouvi hoje: Os melhores escritores nunca foram publicados."
"FLIP é o som do meu vômito quando estou de ressaca."
(GABRIEL PARDAL)
HAHAHAHAHAAHHA, D+
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