Ela, aos trinta e três
Ela imaginara tudo bem diferente.
Ainda este Volkswagen enferrujado.
Certa vez, quase casou-se com um padeiro.
Antes, costumava ler Hesse, depois, Handke.
Agora ela prefere resolver charadas na cama.
De homens, não tolera abusos.
Por anos foi trotskista, mas à sua maneira.
Jamais tocou num cupom de racionamento.
Quando pensa no Camboja, passa mal.
Seu último namorado, o acadêmico, gostava de apanhar.
Vestidos de batique esverdeados, largos demais para ela.
Parasitas nas plantas à janela.
Na verdade, queria pintar, ou emigrar.
Sua tese, Luta de classes em Ulm, 1500
a 1512, e suas marcas no cancioneiro:
bolsas, começos, e uma maleta cheia de notas.
De vez em quando, a avó manda-lhe dinheiro.
Danças acanhadas no banheiro, caretas,
horas de hidratante ao espelho.
Ela diz: pelo menos não morrerei de fome.
Quando chora, fica com cara de dezenove.
Hans Magnus Enzensberger, tradução de Ricardo Domeneck.
Nota 1, do título:
É possível, em alemão, ter substantivos derivados de numerais, para indicar a idade de alguém: die Dreiunddreißigjährige poderia ser traduzido como "a mulher de trinta e três anos", longo e explicativo demais. Optei por "ela, aos trinta e três", já que Enzensberger insiste em deixar claro o gênero da personagem no título.
Nota 2, do verso "Insetos nas plantas à janela":
Blattläuse são insetos específicos, conhecidos em português como afídios, pulgões ou piolhos-das-plantas, e Zimmerlinde é uma planta do gênero Sparmannia, da família das Malvaceae. Não consegui encontrar nome popular em português. Para evitar um verso como "Afídios na Sparmannia" ou mesmo "Pulgões na Sparmannia" (como a planta é chamada nas páginas de botânica que visitei), optei pela generalização questionável de "Insetos nas plantas à janela". Sugestões são bem-vindas.
Abaixo, outra opção, dentro do que eu costumava chamar de transcontextualização, apesar de, hoje em dia, ter desenvolvido pavor alérgico ao prefixo trans para tais abstrações. Uma contextualização, digamos.
Ela, aos trinta e três
Ela havia imaginado tudo bem diferente.
Ainda com este Fusca enferrujado.
Uma vez, quase casou-se com um padeiro.
Antes, costumava ler Clarice, depois, Cabral.
Agora ela prefere resolver charadas na cama.
Dos homens, não tolera abusos.
Por anos foi petista, mas à sua maneira.
Nunca recortou cupons de desconto em jornais.
Quando pensa no Afeganistão, passa mal.
Seu último namorado, o intelectual, gostava de apanhar.
Vestidos de batique esverdeados, largos demais para ela.
Pulgões nas folhas da samambaia.
Na verdade, queria pintar, ou emigrar.
Sua tese, Conflitos religiosos no Nordeste, 1889
a 1930, e suas marcas na música popular:
bolsas, começos, e uma gaveta cheia de notas.
De vez em quando, sua vó manda-lhe dinheiro.
Danças acanhadas no banheiro, caretinhas,
horas de hidratante ao espelho.
Ela diz: pelo menos não morrerei de fome.
Quando chora, fica com cara de dezenove.
Hans Magnus Enzensberger, contextualização de Ricardo Domeneck.
§ - Nota, do verso "Antes, costumava ler Clarice, depois, Cabral":
O desafio é conseguir encontrar equivalentes com o maior número de implicações comuns possíveis. Creio que o par "Hesse/Handke" (fiz questão de manter o jogo inicial das consoantes iguais) encontra algumas implicações/insinuações comuns em "Clarice/Cabral", mesmo que não a da diferença geracional. Após considerar a possibilidade "Graciliano/Gullar", que salvaria no entanto apenas o jogo visual-sonoro das consoantes iniciais e as diferenças geracionais, optei pelo jogo usado acima.
§ - Nota 2, do verso "Nunca recortou cupons de desconto em jornais"
No verso "Jamais tocou num cupom de racionamento", o alemão refere-se à luta por sobrevivência na Alemanha no período imediato ao fim da Segunda Guerra, quando muito dependia dos cupons de racionamento para conseguir comida. Recomendo os filmes Germania anno zero (1948), de Roberto Rossellini, e Die Ehe der Maria Braun (1978), de Rainer Werner Fassbinder, para visualizar algo do período. Como minha ideia de contextualização refere-se não só à geografia cultural mas ao momento histórico, verti o verso como "Nunca recortou cupons de desconto em jornais".
§ Nota 3 - Trotskista/Petista
Verter "Trotzkistin" por "petista" é escolha pessoal e, dessarte, questionável, como aliás praticamente tudo o que escrevo aqui, diga-se de passagem. Não pensem, porém, que eu esteja equivalendo politicamente as duas "filiações".
O original em alemão de Hans Magnus Enzensberger, o maior poeta público da Alemanha, em minha opinião, ainda em vida:
Die Dreiunddreißigjährige
Hans Magnus Enzensberger
Sie hat sich das alles ganz anders vorgestellt.
Immer diese verrosteten Volkswagen.
Einmal hätte sie fast einen Bäcker geheiratet.
Erst hat sie Hesse gelesen, dann Handke.
Jetzt löst sie öfter Silbenrätsel im Bett.
Von Männern läßt sie sich nichts gefallen.
Jahrelang war sie Trotzkistin, aber auf ihre Art.
Sie hat nie eine Brotmarke in der Hand gehabt.
Wenn sie an Kambodscha denkt, wird ihr ganz schlecht.
Ihr letzter Freund, der Professor, wollte immer verhaut werden.
Grünliche Batik-Kleider, die ihr zu weit sind.
Blattläuse auf der Zimmerlinde.
Eigentlich wollte sie malen, oder auswandern.
Ihre Dissertation, Klassenkämpfe in Ulm, 1500
bis 1512, und ihre Spuren im Volkslied:
Stipendien, Anfänge und ein Koffer voller Notizen.
Manchmal schickt ihr die Großmutter Geld.
Zaghafte Tänze im Badezimmer, kleine Grimassen,
stundenlang Gurkenmilch vor dem Spiegel.
Sie sagt: Ich werde schon nicht verhungern.
Wenn sie weint, sieht sie aus wie neunzehn.
in Die Furie des Verschwindens (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986).
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2 comentários:
Hey, Ricardo. Legal. Só achei curioso você contextualizar Handke com Cabral. Abraços de Frisco!
Pablo.
Gostei muito da contextualização. Eu li esse poema qd foi publicado no caderno prosa, do globo, traduzido por vc e fiquei com ele na cabeça. A contextualização ajudou bastante. Legal o trabalho!
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