quarta-feira, 2 de maio de 2012

A poesia perante o genocídio: três poemas de Heimrad Bäcker

Esta tarde, o poeta André Vallias postou numa das redes sociais um artigo da revista Jacket2, que discute a poesia do austríaco Heimrad Bäcker (1925 - 2003). O pequeno artigo chama-se "Poetic representations of the Holocaust". Trouxe-me à mente as "traduções / anotações" que fiz de três poemas visuais/textuais de Heimrad Bäcker em 2008, para a Modo de Usar & Co., que reproduzo abaixo. Como estamos vivendo a situação atual em que o Governo de Dilma Rousseff mostra-se disposto a colocar-se às portas de cometer genocídio no Brasil, que será a consequência do ecocídio causado pela construção inconstitucional da hidrelétrica em Belo Monte, quis trazer a questão a este espaço, no mesmo espírito de "I have nothing to say / so I let others say it / and that´s poetry / as I need it". É assustador ver o Governo da ex-guerrilheira assumir caráter desenvolvimentista irresponsável, como o da Ditadura Militar. Não se pode esquecer, neste caso específico, que Belo Monte foi idealizada pela Ditadura. Se a alguém parecer exagero o uso da palavra "genocídio" neste contexto, reproduzo aqui as palavras do poeta Pádua Fernandes:

"A Convenção da ONU para a prevenção e a repressão do crime de genocídio foi celebrada em 1948 e o Brasil dela participa desde 1952. A lei federal nº 2889, que tipifica o crime, é de 1956: 


Art. 1º 
Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: 
a) matar membros do grupo; 
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; 
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; 
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; 
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo; 


Não consigo entender porque ela jaz quase inaplicada enquanto a matança de índios permanece firme no Brasil, sob ou sobre este governo que vê o meio-ambiente como ameaça à sustentabilidade." - Pádua Fernandes, in O Palco e o Mundo, 19 de abril de 2012.

A postagem abaixo, com os poemas de Heimrad Bäcker, poderia levar-nos a várias questões: a possibilidade de representação do horror em linguagem poética, assim como a capacidade horripilante que o humano possui de racionalizar o horror. Não estou dedilhando oxímoros. O impensável teve papel fundamental no sucesso do plano de extermínio nazista, já que a grande maioria das vítimas entregou-se nas mãos dos algozes, mesmo quando ouviam as assustadoras histórias ("boatos") das matanças, pois era-lhes simplesmente impensável que outros seres humanos fossem capazes do que o foram, tão eficiente e energicamente, os nazistas e seus colaboradores internacionais (na França - pesquise "Vélodrome d´Hiver / 1942" -, na Áustria, na Hungria, etc ). Hannah Arendt já escreveu sobre isso de forma tocante e inteligente. É difícil não pensar aqui na última proposição de Wittgenstein no Tractatus (para o austríaco, não há diferença entre o impensável e o indizível): "Sobre o que não se pode falar, deve-se calar" (Wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen). Abaixo, vemos como Heimrad Bäcker lidou com o dilema.


Heimrad Bäcker (1925 - 2003) 
por Ricardo Domeneck 
para a Modo de Usar & Co. 
11 de maio de 2008


Heimrad Bäcker nasceu em Viena, Áustria. Estudou filosofia, sociologia e filologia germânica. Mudou-se mais tarde para Linz, onde passou a lecionar. Iniciou um trabalho de pesquisa histórica nos arquivos nazistas austríacos na década de 50. Começa a publicar seus textos na década seguinte e, entre 1968 e 1992, foi editor da revista neue texte, mais tarde transformada em editora, dedicada à literatura experimental. O poeta morreu em Linz, em 2003.

A Modo de Usar & Co. apresenta 3 poemas visuais de Heimrad Bäcker, da década de 80, criados em sua pesquisa histórica sobre o extermínio de judeus pelos nazistas. Sua escolha é pelo silêncio pessoal de respeito e a apresentação de documentos que gritam por si mesmos. Os três poemas são chamados de "epitáfios".

Ontem, 10 de maio de 2008, completaram-se 75 anos da noite em que livros foram queimados numa grande fogueira em Berlim, na Bebelplatz, na frente da Universidade Humboldt. O tom da "comemoração" e memorial do evento aqui na Alemanha tomou, em alguns aspectos e em meio ao vozerio de boas intenções, o sussurro do eufemismo e da banalização espetacular, encabeçados pela epígrafe repetida inúmeras vezes neste contexto: a declaração do poeta judeu Heinrich Heine (1797 - 1856), que foi impedido em seu tempo de exercer a profissão que escolhera por ser judeu e morreu no exílio, banido por seu ativismo político, de que "wo man Bücher verbrennt, verbrennt man auch am Ende Menschen", ou seja, "onde se queimam livros, acabarão por queimar por fim também pessoas." Os poemas de Heimrad Bäcker trazem de forma clara à consciência política e poética esta causalidade expressa na frase de Heine, que se fez verdadeiramente histórica na Alemanha nazista. Outra data se faz importante neste contexto, que apresenta os trabalhos de um poeta austríaco: em 2008 completam-se os 60 anos da anexação da Áustria pelo Terceiro Reich de Hitler, anexação que foi celebrada pela grande parte dos austríacos da época, prontos para colaborar com o projeto nazista. Após a guerra, o período 1938 - 1945 foi relegado ao eufemismo dos chamados "anos alemães". Esta hipocrisia seria fortemente combatida por poetas e escritores austríacos do pós-guerra, como Thomas Bernhard, Ingeborg Bachmann, H.C. Artmann e Heimrad Bäcker.


epitáfio (1) – 1989

documentos da história dos judeus de frankfurt (1933-1945), capítulos I 1 – XIV 15.

Nota do tradutor: A expressão "nach dem osten nach dem osten" ao final deste primeiro poema pode ser traduzida como "para o leste para o leste".





epitáfio (2) – 1989

texto rotativo com abreviações dos nomes dos campos de concentração alemães de dachau, sachsenhausen, buchenwald, mauthausen, etc. (usadas para comunicação interna)





epitáfio (3) – 1986

plano ferroviário nr. 587 da direção geral da ostbahn (ferrovia do leste), do dia 15 de setembro de 1942: “trem especial para migrantes”


Notas: Sedziszow, Szydlowiec e Kosienice são cidades do interior da Polônia. O campo de extermínio de Treblinka é o mais conhecido dos quatro campos de extermínio da chamada “Operação Reinhard”, nome dado pelos nazistas para o programa de extermínio dos judeus poloneses. Treblinka foi o destino da grande maioria dos judeus do Gueto de Varsóvia. Entre julho de 1942 e setembro de 1943, cerca de 750.000 judeus foram assassinados no campo. Em agosto de 1943, cerca de 1.500 prisioneiros judeus iniciaram uma revolta. Tomando armas de pequeno porte e querosene, conseguiram incendiar a maior parte dos prédios do campo. Alguns soldados nazistas foram mortos na revolta, mas ao fim apenas algumas dezenas dos prisioneiros sobreviveram. O extermínio estava muito próximo de ser completado, mas após a revolta o campo de Treblinka tornou-se inoperável. O campo foi oficialmente fechado em novembro de 1943, após o fuzilamento do último grupo de prisioneiros (cerca de 40 meninas). O diretor do campo de extermínio de Treblinka, o austríaco Franz Stangl, fugiu para o Brasil, onde viveu por quase duas décadas usando seu nome verdadeiro e até mesmo registrado oficialmente no Consulado da Áustria em São Paulo, onde viveu. Só seria extraditado em 1967 e condenado pelo assassinato de milhares de homens, mulheres e crianças, assassinatos sobre os quais comentou de forma leviana: “Eu apenas fiz meu trabalho.”





9228 de sedziszow para treblinka

9229 trem vazio

9230 de szydlowiec para treblinka

9231 trem vazio

9232 de szydlowiec para treblinka

9233 trem vazio

9234 de kosienice para treblinka

9235 trem vazio



tradução e notas de Ricardo Domeneck

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