"Detenhamo-nos, mais um instante, na aranha. O que acontece nos fios da teia? Acontecem moscas, outras aranhas, as catástrofes que rasgam os fios. E, no centro da teia, acontecimento inalcançável teicamente, acontece a própria aranha secretadora da teia e dona da teia, livre de deslocar-se ao longo dos fios para devorar moscas, copular com outras aranhas, combater outras aranhas e consertar estragos introduzidos na teia por catástrofes. Podemos, então, distinguir, basicamente, as seguintes modalidades ontológicas, as seguintes formas do Ser: mosca, outra aranha, catástrofe destruidora, e, com toda a sua problemática teica, a própria aranha. A aranha civilizada, no sentido ocidental do termo, tenderá a menosprezar a diferença entre mosca e outra aranha, considerando a outra aranha como uma espécie de mosca; ela tenderá a explicar as catástrofes destruidoras da teia como sendo supermoscas que não podem ser suportadas pela teia (provisoriamente, já que a teia cresce e se fortifica e acabará suportando moscas de todo tamanho); enfim, tenderá a considerar o mundo metateico como um reservatório, um vir-a-ser de moscas. A aranha materialista ensinará que a mosca é a tese e a própria aranha a antítese do processo dialético que se desenvolve nos fios da teia, tendo sido alcançada a última síntese quando a própria aranha tiver devorado todas as moscas. A aranha hegeliana afirmará que a aranha pressupõe a mosca e que o processo dialético é uma progressiva aranhanização do mundo-mosca, portanto fenomenal, e que, consequentemente, o devorar da mosca equivale à realização da mosca. A mosca devorada como mosca realizada: eis a última síntese, a total realização, por aranhanização, das moscas. A aranha heideggeriana considerará a mosca a ser devorada como a condição (Bedingung) da situação aranhal, e o cadáver da mosca já chupada como testemunha (Zeug) da passagem da aranha pelo mundo mosca!… Estes três tipos de especulação ocidental, e outros semelhantes, são caracterizados por um aranhismo extremo, já que aceitam a teia como fundamento da realidade sem discutir a própria teia. O aranhismo é inevitável para as aranhas, mas a discussão da teia é aranhamente possível. Essa discussão torna viável uma visão mais apropriada não somente da mosca, mas da própria aranha."
Vilém Flusser, A Dúvida
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