sábado, 8 de setembro de 2012

"Linguagem com Queda de Ícaro" - poema





Linguagem com Queda de Ícaro

Quanto ao sofrimento, sempre equivocados
os Velhos Mestres; como sua obsessão por simetria
e perspectiva acabava por espalhar as personagens
pelos cantos da cena, quando as pessoas em verdade
atraem-se, agrupam-se no desejo e repulsa
guiados por hormônios, coágulos
de carne, os iates e os cruzeiros costeiam a praia
demasiado próximos pois o humano exige-se
visto e cobiçado em sua alegria, nem sempre o sol
incide nas pernas a desaparecerem n´água, mas na moeda
esquecida n´areia, na garrafa de vodca vazia, na rata prenhe
entre os arbustos; como pareciam inscientes
que linguagem e visão
entremeiam-se, emaranham-se, embaraçam-se
para criar importância e hierarquia, esquecendo uns
e enaltecendo outros, ainda que tenham sido lançados
ao mar à sua revelia, à margem; na “Paisagem com Queda
de Ícaro”, por exemplo, que hoje sequer sabemos se deveras
saiu do pincel de Brueghel: como nossos olhos
caem sobre o semeador e a caravela e mal
quiçá notássemos o menino sem o anúncio
espetáculo do título, ou talvez o tomássemos
por um mergulhador feliz; tantos corpos
foram lançados ao mar sem
que merecessem mitos; quando eu,
em carnadura datada, contemplo sempre a criatura
poucas vezes mencionada, quase ao centro
da pintura, um pastor, talvez, ou alguma
espécie de peregrino que elegera por companhia
para si tão-só a alimária – porventura leal
porque seu desejo é ditado pelas estações,
ali sozinho e quase encoberto pelo semeador, e digo:
eis-me,
em ânsia expectante, obviamente olhando na direção
errada, e contudo à espera de algo fabuloso, um menino
despencando dos céus, mas nunca em meus braços.



Ricardo Domeneck, 2012. Publicado originalmente na Eutomia - Revista de Literatura e Linguística.

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