sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Dois poemas recentes de Luísa Nóbrega


Luísa Nóbrega, “ventríloquo ou talvez tudo já tenha sido dito” - 2012, 
ação em que passou 21 dias em silêncio, se comunicando apenas por faixas pré gravadas em um gravador digital


Descobri o trabalho de Luísa Nóbrega (São Paulo, 1984), graças a Érica Zíngano, que preparou para a Modo de Usar & Co. uma postagem sobre a poeta paulista, com o artigo "Mercúrio em Conjunção com o Ascendente", publicado em agosto deste ano. Foi uma descoberta para mim, que não conhecia seu trabalho em performance ou textual. Gosto muito de ambos. Temos alguns pontos de contato, a obsessão pelo corpo, a recusa a escapar dele, pela consciência da impossibilidade.

"gorge", de Luísa Nóbrega



Compartilho com vocês. Poesia nata nos 80.


DOIS POEMAS RECENTES DE LUÍSA NÓBREGA (São Paulo, 1984)

meu salto engancha
em escadas rolantes
derrapa, enfático
sobre pisos úmidos

quase sempre
 mantenho o equilíbrio
- o difícil é que eu queria tentar
algo de vidro


chaleira, leiteira
tem que poder ir no fogo
tenho respostas-reflexo
de modo que não chega
a haver tombo


não rolei da escada
graças à risonha destreza
dos meus dedos mindinhos


faz a conta:
o que de mim se conserva?

.

para não ter um filho esmagado
Inga, da Bielorússia
ergueu um carro vermelho
de uma tonelada.

estourou as fibras musculares.
será que o vidro é impossível?

.

meu caso é menos dramático
não há garotos soterrados
a resgatar

.

vez ou outra arremesso a testa
contra um muro de tijolos

(será que é muito complicado
caminhar para trás?)

§

tive a prova definitiva da existência de deus


marcas de sisal nos antebraços que não esticam nunca.

qualquer outro teria passado indiferente:
eu paro, por falta do que fazer.

.

o cotovelo dele não vira ao contrário, como o meu.
parece um monstro sem cabeça, mas é só um sujeito
algo franzino
com o pescoço apoiado no espaldar de madeira.

tem resignação de uma cabeça aplainada
que espera a guilhotina.

.

dois nós firmes nas extremidades da corda esticada
perturbada de quando em quando
por pequenos, nítidos socos.

tudo é mórbido. essa é minha última grade ou portão.

.

os pés dianteiros são morcegos que esvoaçam.
esticam e encolhem num movimento irregular/ atordoado
como se alguém sacudisse escandalosamente
um livro de salmos.

ah, esses mamíferos cegos de radar infalível –
sua precisão é insuportável.

.

agacho atrás de uma moita para não fazer xixi nas calças.
enquanto minhas coxas se molham
cantarolo uma ode

- qualquer coisa que esgarce a oposição entre
carne mortificada x
espírito eterno e sublime.


não dá muito certo, mas sinto uma espécie de alívio.
anacrônico, não faz mal.

.

não espero salvação. a gente não se livra de um susto assim tão fácil.

.

por falta de milagres, faz tempo que eu não durmo –
quisera ter a convicção grosseira dos santos.

.

mas entenda:
é imprescindível que haja uma grade ou portão fechado.
duas colunas. um gancho.
qualquer coisa capaz de suportar dignamente
esses nós paralelos intermináveis.

.

de olhos fechados
o grunhido cheio de muco de um
penitente


nenhum céu adiante
nem mesmo inventado

.
.
.


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