terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Dois poemas recentes de Philippe Wollney

O poeta pernambucano Philippe Wollney


Não conheço Philippe Wollney pessoalmente. Descobri seu trabalho no ano passado, quando vi seu nome entre os convidados do Festival Internacional de Poesia do Recife, do qual eu havia participado no ano anterior. Tento me manter informado sobre o que está sendo publicado no Brasil, responsabilidade de editor e crítico, e pesquisei sobre seu trabalho. Em correspondência esparsa com o poeta pernambucano, preparei uma postagem para a Modo de Usar & Co. e venho seguindo suas publicações.


Vídeo baseado em texto de Philippe Wollney

Philippe Wollney nasceu na cidade de Goiana, Pernambuco, em 1987. Lançou o livro Poemas de um eu cretino (2014) e publica trabalhos ainda pelo selo Porta Aberta. Pelo que pude ver e ler até o momento, parece-me um autor com clara formação na tradição oral de Pernambuco, bastante ativo na cena cultural de sua cidade, e com um talento claro para a vocalização e a performance. Gosto muito dos poemas abaixo, e recomendo localizar o pernambucano em seus radares. Espalho aqui as boas novas, natas nos 80.


DOIS POEMAS RECENTES DE PHILIPPE WOLLNEY (Goiana - PE, 1987)


[o que aconteceu conosco]

o que aconteceu conosco

que neste inverno
o que nos tira o frio
são as fagulhas de nosso inferno

o que aconteceu conosco

o sarcasmo de nossos olhares
transmutado
na tragédia do zodíaco a dois

o que aconteceu conosco

a manhã sorridente de papel celofane
dasanuviado
a sobra apenas dos caninos

o que aconteceu conosco

abraços carregados nos dentes
afagos nas cáries
e um delicado carinho de barbárie

o que aconteceu conosco

brotoejas de anêmonas no pescoço
trocando colares
de dedos e dentes de crianças

o que aconteceu conosco

tórax essa caixa de muambas
coração do paraguai
um futuro made in china

o que aconteceu conosco

o reduto do vinho, o umbigo
parada obrigatória
da língua na chaga no ventre

o que aconteceu conosco

assovios de encantar serpente
da cobra
a pele morta do dia aparente

o que aconteceu conosco

o que se abria em lábios
do beijo
o sobejo de uma carne que não se digere

o que aconteceu conosco

pés que tilintam são ecos
em um salão vago
e uma sinfonia de calos e vida encravada

o que aconteceu conosco

que de morno os nossos nomes
o mofo
e a fome de pastores tangendo o rebanho

o que aconteceu conosco
o que aconteceu com nós
com os nós

§

[quando eu disse, eu te amo]

quando eu disse, eu te amo
já haviam se passado quatro anos
que se estouravam cravos
e se cravavam unhas roídas
em meus cabelos secos.

quando eu disse, eu te amo
todos os livros de nosso poema
já estavam com as bordas das páginas
cheias de tártaros
e flores de café em nossas leituras.

quando eu disse, eu te amo
os discos haviam perdido suas capas
todas as faixas eram chamadas pelos primeiros versos
e não havia mais autoria
todas eram nossas.

quando eu disse, eu te amo
o bojo do violão no canto da sala
já havia servido de bandeja para cerveja
assento para nossa filha
e assistiu todas as minhas falhas.

quando eu disse, eu te amo
resolvi mudar todos os quadros da sala
plantei agrião na pia
e interditei a geladeira para servir de jardim
para alecrins, erva-doce e coentro.

quando eu disse, eu te amo
finalmente compreendi porque geraldo azevedo é foda
e sua música penteou meus lábios
e revirou a tábua de marés de meu coração.

quando eu disse, eu te amo
não me senti melhor, nem pior
nem tão pouco dizendo algo de especial
apenas me senti pequeno e inundado
por um segredo que quase esqueci.

quando eu disse, eu te amo
criaturas abissais dos mares frios de meu peito
fizeram vanguarda em meu desespero
tomaram absinto e se habituaram
a sentimentos profundos.

quando eu disse, eu te amo
mais uma criança velava seus pais
mais pais velavam seus filhos
e se retomava o habito de criar
presos políticos.

quando eu disse, eu te amo
havia me tornado angústia e espera
como os quadros do chirico
e escondi embaixo do lençol vermelho
a antologia de poemas de brecht.

quando eu disse, eu te amo
aquele cão dos infernos zombeteiro
passou a mão em minha bunda
e me deu uma rasteira.
- a vida não é literatura, porra!

quando eu disse, eu te amo
de minha boca fez-se espuma
e como animal em cólera
mordi o próprio rabo
e dormi lambendo ossos.

quando eu disse, eu te amo
havia chegado tão tarde
que o bonde do desejo
já havia passado há dias
e por outros 23 dias, queimava a parada,
e plantei bredos no asfalto.

quando eu disse, eu te amo
o tempo havia fechado
e por mais que quiséssemos
os nossos tênis não secaram atrás da geladeira
- nos tornamos pés frios.

quando eu disse, eu te amo
a barra havia ficado pesada
nas mochilas não cabiam todos os livros
e por mais que precisássemos carregar
móveis e eletrodomésticos
comemos pão frio, lendo manoel de barros.

quando eu disse, eu te amo
já não adiantava chorar pelo leite derramado
ou pelo aumento dos alugueis
compramos uma barraca de acampe
um colchão de ar
e seja o que deus quiser nos arrecifes da vida.

quando eu disse, eu te amo
minhas palavras precisavam de fiador
e de um seguro contra perdas e danos
e todas as minhas senhas de e-mail e dos bancos
estavam apregoadas na porta da geladeira.

quando eu disse, eu te amo
tenha dito tarde demais
com um amor demais
para um eu em menos.

quando eu disse, eu te amo
eu disse.

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