segunda-feira, 8 de abril de 2019

Canonizações e esquecimentos



Pedro Xisto - ZEN (1966)


Se me perguntassem hoje quais poetas têm sido tristemente ignorados pelos porteiros do cânone, a lista seria longa. As culpas, não tão longas: o eixo Rio-SP cuidou de umas, nossa historiografia por escolas e estilos típicos de época cuidou de outras. Unidas, eram incontornáveis. E há questões puramente político-ideológicas.

Conversava com André Capilé sobre o caso de Zila Mamede. Sua residência e ação na Paraíba a mantiveram afastada dos gerentes sudestinos. Mas lembramo-nos então de Hilda Hilst. Apesar de paulista, sua poesia era lírica, fora da gaveta organizada para a tipiquez das neovanguardas.


Zila Mamede (Paraíba, 1928–1985)


Bois dormindo
Zila Mamede

A paz dos bois dormindo era tamanha
(mas grave era a tristeza de seu sono)
e tanto era o silêncio da campina
que se ouvia nascerem açucenas.

No sono os bois seguiam tangerinos 
que abandonando relhos e chicotes
tangiam-nos serenos com as cantigas
aboiadeiras e um bastão de lírios.

Os bois assim dormindo caminhavam
destino não de bois mas de meninos
libertos que vadiassem chão de feno;

e ausentes de limites e porteiras
arquitetassem sonhos (sem currais)
nessa paz outonal de bois dormindo.

*

A questão é complicada, engloba muitos fatores. Apesar de suas contribuições majestosas ao experimentalismo poético do período, Pedro Xisto, Lygia Pape (que escreveu sim poemas), Edgard Braga, Affonso Ávila, Neide Sá, Wlademir Dias-Pino e Mário Chamie são raramente citados. Além da exclusão de Arnaldo Xavier, que traz então ainda a dimensão racial da conversa. O caldo só engrossa.



Lygia Pape


Outro caso é o de Adão Ventura. Sua poesia deveria ter sido abraçada pela década de 90 com sua ênfase no geométrico e no seco. Mas eram tempos de despolitização poética e trazer a discussão racial para o trabalho garantia o exílio do autor fora das “Grandes Questões Universais”. Parece-me o mesmo caso de Paulo Colina.

*

Forja
Paulo Colina

entre uma calmaria
          e outra
do mar de nossas peles
me bastaria amor cantar o fogo
que somos na nascente
          de suas coxas

mas há essa dor de outros tempos
e corpos
essa rosa dos ventos sem norte
na memória sitiada da noite

embora o gesto possa ser
no mais todo ternura
o poema continua um quilombo
          no coração

*

Não se trata portanto de substituir uma tipicidade poética por outra em determinado período. Não ignoremos nem o experimentalismo das décadas de 50/60, nem a belíssima poesia lírica produzida então. Há hora para tudo, já disse o Eclesiastes. Nossa poesia é mais rica do que se vê.

*

de ‘A Fala entre Parêntesis’
Max Martins

Das florestas de Blake aos topos da Ásia
quem, da confusão entre chão e carne
com seu púbis, seu discurso e chamas, QUEM
DEFENDE TEU ROSTO DESTE SUDÁRIO INFERNAL?

Teu nome é Não em cio e som farpados
sinuoso grafito gravado no muro
mudo, contra o tempo Arfa
noturno, o olho do astro na memória

Este é o meu céu: numa bandeira turva
Incendeia seus últimos signos
Te insinua às sombras (que estão nos antros

e subsistem ao gráfico parêntesis:
Flechas ferindo-se no espelho. Reflexos
                   Dança indefinida

*

Não sei quanto a vocês, mas não consigo viver nem só de Augusto de Campos nem só de Adélia Prado. Dou sim graças ao Logos, a Exu, a Vāc, a Mercúrio, à coruja de Minerva e ao diabo de quatro pela existência dos dois. E de Pedro Xisto e Zila Mamede. Ana Cristina Cesar e Leonardo Fróes. Maria Ângela Alvim e Waly Salomão.

*

de “Solar de Juca Dantas”

Tarde já. Os fruitos e as crianças possuíam,
Nas primaveras frustras que então passei a ser,
Um sabor de saudade no mendigo que hoje sou,
A despeito de transunto de velhas glórias
E humanas lidas. E da caspa em desuso
Que pontilha de grisalho meus ombros chovendo,
Dando ao título de doutor de Sião
Este ar deficitário de despesa,
Que busca, na ausência de terras e de teres,
E na paciência com que suporto outros coronéis,
O sentido de sua própria escravidão.
Deste mundo não sou. E nem lhe temo a noite.
A noite com suas lenternas e seus ladrões,
Terramotos e valhacoutos.
Temo sim o dia que dela nasce,
E com ele a burra de dinheiro, agasalhada e fiel,
Cheia dos terrores noturnos de ontem,
Contendo, ensimesmadas, as mesmas manhãs,
Plásticas e portáteis de hoje,
E em que se enfeixam, de uma só vez,
O gado, a servidão de passagem, a infância,
O luto, a vida e o direito de chorar.

— Dantas Motta, in ‘Elegias do País das Gerais’ (1961)

*

Cecília Meireles — a fabulosa SALVE! SALVE! — cumpriu, creio, a função de ‘token’ feminino do Modernismo. Ela talvez seja a maior. Mas quem pensamos que somos para ignorar Henriqueta Lisboa e Adalgisa Nery? Ou, antes delas, Francisca Júlia? E, depois delas, Marly de Oliveira?

*

Frutescência
Henriqueta Lisboa

Em solidão amadurece
a fruta arrebatada ao galho
antes que o sol amanhecesse.

Antes que os ventos a embalassem
ao murmurinho do arvoredo.
Antes que a lua a visitasse
de seus mundos altos e quedos.
Antes que as chuvas lhe tocassem
a tênue cútis a desejo.
Antes que o pássaro libasse
do palpitar de sua seiva
o sumo, no primeiro enlace.

Na solidão se experimenta
a fruta de ácido premida.

Mas ao longo de sua essência
já sem raiz e cerne e caule
perdura, por milagre, a senha.

Então na sombra ela adivinha
o sol que a transfigura em sol
a suaves pinceladas lentas.
E ouve o segredo desses bosques
em que se calaram os ventos.
E sonha invisíveis orvalhos
junto à epiderme calcinada.
E concebe a imagem da lua
dentro de sua própria alvura.
E aceita o pássaro sem pouso
que a ensina, doce, a ser mais doce.

*


Arnaldo Xavier


Que estruturas seguem invisibilizando o trabalho de poetas como Adão Ventura, Paulo Colina e Arnaldo Xavier, já mortos? Ou os vivos Miriam Alves e Sebastião Nunes? Porque eram e são negros, ou tratam da existência negra no Brasil? As duas questões? 

Arnaldo Xavier, Abelardo Rodrigues, Oswaldo de Camargo e Paulo Colina 
(fotografia de Norma Santos, Revista Afinal, 13.01.1987)


São Pálido
Arnaldo Xavier

um dia no rio
tietê correu sangue
como correu no rio volga
como correu nos esgotos de varsóvia como correu nos vales de áfricas
(e suas veias
borbulhavam gemidos)
lá pras bandas de são miguel paulista

correu sangue
e o sangue foi confundido com leite
e as mamadeiras percorreram os corpos deitados
sobre os trilhos
enquanto as locomotivas
não vinham (cheias
de vidas)
sangue confundido

com leite
no vice-versa de putas cabras que amamentavam a radial leste de a
feto

*

Fumaça
Miriam Alves

Estou a toque de máquina
corro, louca, voo, suo
a fumaça sou eu

Estou a toque de nada
vivo, ando
como a comida envenenada
e o comido sou eu

estou a toque de selva
os ferros torcidos, sacudidos
dentro de uma marmita
e a marmita sou eu

Nego, mas vivo dizendo
Sim
a tudo que me dói na cabeça
e o doido sou eu

Paro, mas estou sempre correndo
doem as pernas, os pés
e este corpo é o meu

Amanhã me encontra acordada
como a noite deixou
e o insone sou eu

Indago, mas não estou escutando
a pergunta anda solta
e ninguém explicou
que a resposta sou eu

*

Por que não lemos, no Sul e Sudeste, o paraense Max Martins, o pernambucano Carlos Pena Filho, a paraibana Zila Mamede e o potiguar Moacy Cirne?



Leia os poemas longos “Memórias do boi Serapião” e “Guia prático da cidade do Recife”, de Carlos Pena Filho, na ‘Modo de Usar & Co.:

E descubra a obra de Moacy Cirne:
http://revistamododeusar.blogspot.com/2014/01/moacy-cirne-1943-2014.html

*

Não há respostas simples. É um emaranhado de coisas. Afinal de contas, até pouco tempo estavam soterrados os paulistas Roberto Piva e Hilda Hilst. O paulista Orlando Parolini continua soterrado. Ainda não ocuparam seus lugares devidos as obras do fluminense Leonardo Fróes, da mineira Laís Corrêa de Araújo e do capixaba Sérgio Blank.


O império das formigas
Leonardo Fróes

O império das formigas. A vaca
olha de longe o efêmero passante.
Os passarinhos atravessam
a estrada estreita, quieta e sinuosa
que segue o rio pelo vale.
O silêncio aglutina as criaturas
e os menores ruídos.
Vê-se a proliferação das espécies
nos menores meandros.
Mundos inimagináveis se criam.
Mundos desaparecem
nas bocadas da vaca no capim generoso.

*

Sangue Corsário (1980)
curta de Carlos Reichenbach com o poeta Orlando Parolini


Descrição da Praça da República para a amada que mora no interior
Orlando Parolini

os lagos de tão rasos
não permitem afogamentos:
se temos fomes
não há que nos alimente
– os peixes
vivem
(de excrementos)

os pombos não nos pertencem
roubá-los será inútil por enquanto
e que valem os pombos para a fome de uma geração inteira?

sedentos
a sede aplacaremos com coca-cola
no bar mais próximo

algumas pontes o contacto estabelecem
entre o vazio e o vazio
sugerindo paisagens que não vivemos

ao meio-dia
se debruçarmos sobre as ferragens
esperando a volta para os estábulos de ar condicionado
nos chamarão de pederastas

estátuas há
que olham para as árvores
contemplando as estátuas

no grande parque infantil
de arame rodeado
crianças são treinadas
como cães de apartamento
a beber nas horas certas
urinar nos w.c.
sem sujar o uniforme

na parte mais baixa se repararmos
sem muita preocupação
agências de turismo aveludadas
casas bancárias de velhas tradições
restaurantes e cafés
lojas de créditos
rodeiam o que mais se salienta no local:

o mictório público
moralmente dividido
para homens e senhoras
não importa a condição

*

E o que fazer com aquele esquisitíssimo jovem suicida gaúcho, sobrinho do presidente João Goulart, chamado Henrique do Valle? E aquele outro sulista esquisito, o sr. Manoel Carlos Karam? Só desperdiçamos. E se for necessário repensar nossa visão de literatura para não perdermos Stela do Patrocínio mais do que já perdemos, ora, que se repense.

*

Pois, apesar de gritarmos tanto contra a falta de atenção do público, feche os olhos e responda: por que você odeia e é condescendente com os poetas realmente populares, como Cora Coralina e Mário Quintana? E os popularíssimos vivos?

Leia, sem antolhos e biquinho-de-adorno o que Cora Coralina é capaz de fazer em seus melhores momentos. Quem pensamos que somos para ser condescendentes com esta mulher, que nos melhores momentos demonstra precisão localista de sua linguagem. Ela faz o que quer fazer, meus filhos. Não finge viver em Nova Iorque. Nem em Berlim. Que bom ser assim a poesia moderna brasileira: com a potência cosmopolita-viajante de um Murilo Mendes e a força localista-ficante de uma Cora Coralina.



Todas as vidas
Cora Coralina

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço.
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo.
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
Enxerto de terra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada.
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera
das obscuras.



Decidimos que não seria relevante para nossas conversas a poesia de Gerardo Mello Mourão porque sua poesia não seria esteticamente relevante? Por questões políticas da sua atuação em determinados momentos históricos? Porque era cearense? São realmente bem informadas nossas decisões? Essas são as questões que chamei de puramente político-ideológicas. As obras de Rachel de Queiroz e Adonias Filho realmente tornaram-se esteticamente menos relevantes, ou a posição destes e outros intelectuais antigetulistas durante o Golpe de 1964 os torna imperdoáveis?

*

[Estou e não me respondo]
Maria Ângela Alvim

Estou e não me respondo.
Assisto. Em mim se decide
um inútil afã e se some
a vida que me preside.

E passo, ainda... Meu nome
há muito não coincide
comigo se estar se consome
e tantas vezes me elide.

Me move o tempo mais frio
de tanto pranto afogado
num quase mito de mim.

Vou morando em desvario
quase em sonho inaugurado
para um começo, meu fim.

*

Historiograficamente: o que fazer com Lúcio Cardoso, nascido em 1912, prosador e poeta difícil de encaixar em nossos periodismos? Sua poesia não se alinha espirtiualmente ao misticismo de manifestação imagético de Murilo Mendes e Jorge de Lima? Seu romance Crônica da casa assassinada (1959) não está entre os catataus geniais do modernismo nacional?


A casa do solteiro
Lúcio Cardoso

A casa do solteiro é alta e de paredes de angústia,
muros escorrem como verdes contornos
e colunas de mármore frio guardam seus limites.
Há quatro anjos sentados no teto solene e casto
e com luzes vermelhas, entre ciprestes,
sondam os anjos – guardiões – os fundamentos
que se apóiam com gemidos nos porões e adegas,
no rio escuro e na água morta
de correntes que foram vencidas – despedaçadas.
A casa do solteiro é cor de chama,
de silêncio aflito e aurora sem contemplação.
São pedras de crime e de agonia,
são negras pedras de delírio e de remorso.
São duras estacas de alumínio e febre,
são traves de cristais e de luxúria.
Há um descampado em torno: nostálgicos,
cemitérios se evaporam no crepúsculo
e ruínas de azul e ópio cintilam,
entre guitarras e navalhas abandonadas.
Há flores quentes e de carne, flores mesmas,
cor de whisky, de pêssegos feridos, e raízes
quentes de sofrimento e decomposição.
A casa do solteiro é o sol posto,
quando perdemos a fé e o amor se foi,
o começo da noite quando não há horizonte,
a quilha partida e a lança sem gume.
A casa do solteiro se abre como a música,
é triste e macia, fechada como a do príncipe,
fechada, entre janelas longas de ferro,
enquanto lá fora o vento ruge e há relâmpagos.
Não há vertigem, e nem espaço, e nem sossego,
tudo sucede como se morrêssemos aos poucos,
os móveis andam, e nos olhares estranhos,
como róseos desmaios e garras de ultraje.
Se não fossem tão lúcidos, morreriam de cólera,
abraçando manequins de aço, corpos de rampas
em madrugadas de rompimento e viagens.
Esqueceriam as malas – e iriam muito altos,
olhando as hortas onde cresce o mato que assassina.
E estão quietas: jogam as cartas verdes
e suspiram impossíveis paisagens de mar.
Quatro anjos grandes velam no alto do telhado,
com quatro rosas voltadas para o mar,
a mais escura é que os guia. Rosas frias,
de pétalas aguçadas e de mortal traição.
A casa do solteiro é que eles elegeram,
ilha, jangada no silêncio do céu,
vasto navio abandonado e cheio de tormenta,
escândalo e aflição – a casa do solteiro flutua
e é como uma vasta cortina de sangue e maldição,
chorando as tardes, os corpos, o coração perdido,
tudo – neste silêncio único onde existe
como uma grande alma sozinha batendo
na infindável noite que não se acaba
e nem se acabará NUNCA,
A CASA DO SOLTEIRO.



Quanto a Manoel de Barros, este poeta nascido em 1916, a que geração pertence? Tem que pertencer a uma geração ou escola para adentrar nossa história literária? Três anos mais novo do que Vinicius de Moraes e quatro mais velho do que João Cabral de Melo Neto, publicando desde a década de 1930, já era importante antes da década de 1990 ou passou a ser bom quando descoberto em escala nacional? 


Tratado geral das grandezas do ínfimo
Manoel de Barros

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

*

E o problema engloba a prosa. Apesar da FLIP 2018 com ênfase em Hilda Hilst ter lançado luz nacional sobre o mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke, vi pouca movimentação para resgatá-lo. Eu ainda não consegui ler. Difícil de achar. Mas consegui ler o paraense Haroldo Maranhão.

Leia um conto de Haroldo Maranhão na ‘Modo de Usar & Co.’

*

Me assusta ver o trabalho de mulheres como Patrícia Galvão, Henriqueta Lisboa, Zila Mamede, Laís Corrêa de Araújo, Neide Sá, Elisabeth Veiga, Mariajosé de Carvalho e Marly de Oliveira ignorados em escala nacional. Quando vão descobrir e defender ‘A Suave Pantera’ (1962)? É lindo aquilo. Lindo.


Com tanto furor interno,
quem a livra, quem a livra
de ser o seu próprio inferno,
de, pelo fogo da ira,
consumir-se estando quieta,
de acabrunhar-se sozinha.
Nem se diria uma fera!
Nem se diria rainha!
As patas pisando o chão
têm uma dura leveza,
os pelos brilhando de ônix,
- de si mesma prisioneira –
caminha de um lado a outro
como pelo mundo inteiro.
Há esmeraldas de silêncio
nos seus olhares acesos.

(Marly de Oliveira, ‘A suave pantera’)


*

Quando serão espalhados para as escolas e bibliotecas os livros ‘Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul’ (1970) e ‘A cor da pele’ (1981), de Adão Ventura?


Limite
Adão Ventura

e quando a palavra
apodrece
num corredor
de sílabas ininteligíveis.

e quando a palavra
mofa
num canto-cárcere
do cansaço diário.

e quanto a palavra
assume o fosco
ou o incolor da hipocrisia.

e quando a palavra
é fuga
em sua própria armadilha.

e quando a palavra
é furada
em sua própria efígie.

a palavra
sem vestimenta,
nua,
desincorporada.

*

E há os vivos, esses vivos, essa gentinha incômoda que insiste em não se encaixar na visão do que se quer ou se convenciona chamar de ESCRITA CONTEMPORÂNEA, esse povo arredio que compartilha nosso oxigênio e se recusa a fazer o TÍPICO DO TEMPO, essa mania de vivos.


Algias
Elisabeth Veiga

Elegia 1

Já repeti o antigo encantamento
e só o cimento respondeu,
rastro de cinzas de maçã vencida,
desvestígio de gosto,
estanque julho que moeu vindimas
e deixou no espaço seu vinagre branco.
Onde havia um deus
os dias emboloram nuvens
de estrita agonia antepassada
que se olha no espelho
antes do adeus.
Inexiste, não soa, o que havia
fixou-se atrás da mente:
fim estalado de fotografia.
É agosto seco. É hoje e nunca houve.

Alergia 2

Já repeti o velho encantamento
e o antigo deus Xipanto não azarou
na minha gleba de piche solferina.
Peguei o convescote, as sandálias murchas
e mudei de travesseiro lírico,
para afinar meu sambão em outros infernos.

*

Ah, os vivos. Sua mania de mudar. Seus nomes esdrúxulos. Seus poemas de doidos e bruxas. Alguns chamam-se Leonardo Fróes, Lu Menezes e Alberto da Costa e Silva. Outros chamam-se Edimilson de Almeida Pereira, Adélia Prado e Olga Savary. Esses doidos, Augusto de Campos, Veronica Stigger e André Capilé. Não se domam, não se encaixam, Horácio Costa, Lívia Natália e Ismar Tirelli Neto. Falam, gritam, esperneiam, Tatiana Pequeno, Everardo Norões e Jomard Muniz de Britto. São incômodos, contra isso e aquilo, Érica Zíngano, Érico Nogueira e Marcus Fabiano Gonçalves. Estão no Sul e chamam-se Josely Vianna Baptista e Eliane Marques. Estão no norte e chamam-se Diego Vinhas e Philippe Wollney. Há quem nem more no país, como Eduardo Jorge e Ederval Fernandes. Uns estão na academia, outros no boteco. Eu os saúdo, ainda que sejam por vezes tão irritantes. Seus necessários insuportáveis. Suas greves diárias, sua recusa a produzir produtos vendáveis. 

*

Aniversários
Horácio Costa

Vinte Anos Depois é um romance de Alexandre Dumas
duas décadas não são nada
é a média de vida do homem primitivo  do escravo romano
é a idade de um cão muito muito velho
é a média de glória de um artista maior
o tempo sem celulite de uma cortesã
o lapso de procriação depois do casamento
quatro ou cinco mandatos políticos   o auge de um Império
vinte anos levou a Constantino reformar Bizâncio
vinte anos fizeram a fortuna de Frick Morgan e Du Pont
vinte anos entre a apresentação no Templo e a crucificação
vinte anos é a matéria dos memorialistas
vinte anos e o povo se cansa da Revolução
vinte anos depois Odette está casada e Marcel morto
a roda o computador pessoal a moda das perucas brancas se
popularizam em não mais de vinte anos
Quéfren e Miquerinos construíram suas pirâmides em vinte
curtos anos
vinte anos depois o cadáver está frio olvidadíssimo
vinte anos de exercício e o êxtase desce ao asceta
nada nada são duas décadas vinte vezes nada
a ponte nova entre aqui e ali está congestionada hoje
a então chamada ponte do futuro já não serve mais
agora quando estás nela também estás aqui
tinhas o cabelo solto tinhas a rédea solta
soltas tinhas as palavras
há vinte anos
entre aqui e ali

*

A prosa de Márcia Denser. A poesia de Ronaldo Brito. A prosa e a poesia de Regina Célia Colônia. Talvez não façam o que você quer que façam. Mas são seus contemporâneos. Esses. Outros. Fazendo o que fazem.


rehab
André Capilé

uma assombrosa selva, o teu sinteco;
onde o cupim não rói mais os jornais
do dia, e sim mantém a arara em pé.

faz bem você deixar coisas de fora.
largue a marola do vinagre agora —
o enguiço está nas malhas do alheado.

pula pra dentro de uma vez, pois é
a chance das janelas serem limpas.
enquanto criam domésticas traças,
as camisolas não vão mais quarar

no sol mais alto. a possessão da peste,
nenhuma fauna vai mascar peçonhas.

há sempre um meio, ao meio do caminho.

serpentes não se mordem sem motivo,
embora o inferno mofe com lembranças.


Descubra por si mesmo se são relevantes. Leia-os. Não espero que todos concordem, por exemplo, que todos os nomes acima são relevantes. Espero apenas que tenhamos opiniões informadas. Para isso, é preciso ler para além do cânone e dos cadernos ilustrados. Alguns não têm perfis nas redes sociais. Sumirão por isso? Talvez outros tenham, mas vocês detestem suas ideias políticas. Sumirão, mesmo que sejam bons, talvez dentre os melhores? Ou você prefere o medíocre que defende as mesmas ideias que você? Todas essas, creio, são questões importantes.


O cutelo
Dirceu Villa

São ossos. E às vezes, a banha amarela nos ossos;
e às vezes, o sangue vermelho nas unhas.
São porcos, ou são as cabeças dos porcos,
penduram num gancho as cabeças,
ou a cara de estúpida morte dos porcos
no vidro embaçado do açougue.
Ou o branco, mas branco embebido de rosa,
o sangue no sonho de tripas,
sonha o açougueiro: que empunha um cutelo.
E o branco avental que se banha
ou que bebe, o sangue que salta dos nervos
num abraço com ossos, onde vibra o cutelo,
e como brilha o cutelo que corta:
é essa a virtude do aço no punho, que sobe,
ou a ameaça na roda vazia que o prende
no espaço do açougue, visível aos olhos,
anúncio de corte. Ou espeta seu fio numa pedra,
e o único olho vazio se concentra, à espera da carne.
São cortes na pedra lanhada de sangue,
ou fendas, de onde a morte o espreita,
açougueiro no sonho vermelho, acariciando
o fio afiado, o sorriso sutil do cutelo,
que corta. E então o cutelo é outra coisa:
nem porcos, nem nervos, nem ossos,
nem mesmo o açougueiro que o sonha,
mas parte extensiva do braço que o vibra,
e parte indelével do que ele mutila,
o fio afiado, o sorriso sutil do cutelo, que corta.


Que país grande! Que mundo grande sem porteiras! Tanta gente viva e morta estendendo as mãos para construir. Garimpe. Vá além dos cadernos de cultura dos jornais. Há muita coisa na ‘Modo de Usar e Co.’. Há outros trabalhando em revistas vivas agora. Sua vida será melhor. Porque, como escreveu William Carlos Williams:

It is difficult
to get the news from poems
 yet men die miserably every day
 for lack
of what is found there.

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