sábado, 13 de abril de 2019

Em transe com a poesia de João Vário


João Vário (Cabo Verde, 1937–2007)


Foi totalmente por acaso que descobri a existência do cabo-verdiano João Vário (1937–2007) e sua poesia sem paralelos. Estou totalmente absorto por seu trabalho. Faz-se urgente a edição de sua poesia no Brasil.

Nascido em Mindelo, na ilha de São Vicente, a 7 de Junho de 1937, João Vário foi o principal pseudônimo de João Manuel Varela, que também assinava certos textos como Timóteo Tio Tiofe e Geuzim Té Didial. Ele foi poeta, escritor, neurocientista, cientista e professor. Estudou medicina nas universidades de Coimbra e de Lisboa e doutorou-se na universidade de Antuérpia, na Bélgica, onde foi pesquisador e professor de neuropatologia e neurobiologia. Retornou à Mindelo natal após aposentar-se, e aí morreu a 7 de Agosto de 2007.

Descobri seu trabalho ao topar com a capa da reedição de seus Exemplos pela editora portuguesa Tinta-da-China, que vem fazendo um ótimo trabalho de recuperação de poetas da língua, como há pouco tempo na edição dos Poemas quotidianos de António Reis.

O volume Exemplos de João Vário reúne os volumes Exemplo Geral (1966), Exemplo Relativo (1968), Exemplo Dúbio (1975), Exemplo Próprio (1980), Exemplo Precário (1981), Exemplo Maior (1985), Exemplo Restreint (1989), Exemplo Irréversible (1989), e Exemplo Coevo (1998). Tente conseguir um exemplar. Eu estou caçando o meu. Abaixo, alguns excertos vários de Vário. Poeta gigante da língua.




EXCERTOS DOS EXEMPLOS DE JOÃO VÁRIO

Mas hemos de acrescentar o hino ao hino,
o signo ao signo, a mó à mó
como o pão se gasta para atenuar
a vetustez do mundo. Ah dizemos bem.
Não há expectativa que invente
a medida para esta bebida
entre foice e erva, entre a multidão e o desdém,
e, contudo, a vocação
bebe onde o mundo não quer
nem predissera, porque bebe deus
e parte de seu caos, essa parte
que escapa à causalidade e à profecia.

*

E todas as coisas jazendo sobre o pavor da boca,
hoje finitas ou nossas, amanhã paralelas ao cordeiro
de deus, magníficas,
como sabemos soprar sobre estas achas enquanto velhas,
todas estas coisas que chegam e não sabem como partir,
como sabemos nós evitar o azedar do leite,
ah todas estas fábulas mesmo com o galo molhado
este pão ou este galho com o seu esperma,
tal como não sabemos como a cabeça tocará o pó,
se de leste, de oeste, se lentamente ou
despedaçando-se, rápida, sobre o passado de Édipo,
e vimos os mesmos dias mas sem os mesmos óbolos,
fugindo de tectos malignos ou de areias vis,
e, porque vamos perdendo este dom da terra,
não há melhor fidelidade em toda esta prova
qua a que vem com a simples veemência,
a desdita de ficar com a boca de outrem,
impassível entre duas chegadas,
mudando a pele dos joelhos
ou deixando o sexo abrir
essa angústia divina, esse sarcófago bento.
Somos, por certo, o que esperam as coisas todas:
nem isto nem aquilo, apenas as melhores trevas.

*

Homem de pouca fé, por que temes o peso dos teus passos?

Vamos pela vida arrastando essas noções
de nação, de cultura, de civilizações
- coisas estranhas, sem dúvida, à índole do mundo,
da fraternidade ou da natureza,
porém coisas talvez da ordem das coisas,
das fábulas ordinárias,
mas será que somos disto ou daquilo, que a verdade é essa,
que não escutamos senão de dois ouvidos
e há um país para a leitura
dos nossos mitos próprios
e que a alma não acende além do madeiro recebido
as parábolas que o auxílio sugere
e as volvem, quando deus morre, melhor árbitro do mundo?

*

Sabe-se que os homens são fracos, volúveis,
que esta terra é pequena e molesta,
e o bem e o mal apenas são esse tédio das euménides,
porque, em verdade, os justos não se revoltam,
as musas são imperturbáveis
e não pode haver Sodomas e Gomorras indefinidamente,
porque o homem olha e é Deus que se faz estátua.
Tal, se nos interrogamos sobre o sentido do desvelo
ou da violência, como ele as duas metades
do nosso corpo separa, dando metade
às nossas camas e a outra metade distribuindo
por estranhos como moeda pobre ou erva de Constantinopla,
o fundo tocamos de tal imprevidência e a abundância
que a vida reduz a essa conta divina: o âmago irreconhecível,
a casa, a mulher e tal dom da imaterialidade, da decifração.

Homem de pouca fé, por que temes o peso dos teus passos?

*

Da morte nos ficou esse dom de a pensarmos
como coisa sua, coisa por que a pensamos
e acaso não a exprime, porque a
designamos.
Bizarro não é, pois, estar morto, mas lograr
que o tempo em si consigo não aja,
e erga a mão como quem sabe que a mão é
nossa
e não exprime
o que ambos exprimem,
uma, por mão, outro, por tempo que
aprende,
exprimem e juram em redor da mesa.
Para o que há sido o modo, a qualidade
de uma infinita aparição
ou o que há de exílio no exemplo que a
dissemina,
decidem a tradição e a carência
a espécie de facilidade que rememoraremos.
Sobretudo, decidem quando devemos
morrer
para pagar
a legitimidade ou o que há sido anomalia.

Porque de tudo nos ficou esse donde não o sentir, de ficar com ele
só quanto seja a coisa que não tivemos.
A maturidade ou a alegoria que a tem
de outra coisa, oh a maturidade
não nega o que tememos.
O que queríamos dizer está já morto;
que poderíamos, pois, agora
acrescentar a essa alegria?
Da condição da morte, o que morre
é nosso, e, além dele, dos bens nossos.

*


E então subimos aquele grande rio
e as portas do Ródão, chamadas. Era em abril
dois dias depois da neve
e da cidade dos nevões, na serra.
E olhamos para os penhascos da beira-rio,
as oliveiras, o xisto, a cevada
as ervas de termo, e as colinas.
E, junto da via férrea, os homens do pais
miravam-nos como se fossemos nós
e não eles os mortos desta terra,
homens do medo e do tempo da discórdia
que trazem para o cimo das estradas
a malícia que vai apodrecendo
seus pés neste mundo e em terras de outrém.
Que fazeis do mundo e da sua chama imponderável, os homens,
perdidos que estais, hoje como ontem,
entre a casa e o limiar?
E evocamos, mais uma vez, esse provérbio sessouto.
E, na verdade, porque regressaremos,
após tantos anos, a este tema?
Será que a morte nos ensinou
a olhar para o homem com pavoroso êxtase?

*


Há muito passado no estar aqui com o tempo,
Fim e reconhecimento, e não sofrendo nada mais do que o tempo concede,

Fim de novo e reconhecimento de novo
E tudo é crime, ou crime sempre, crime ou crime,
Criminosissimamente crime,
Quando arriscamos a intensidade, comemorando.
Aumento e festa, ou cilício, e tempo de cair e tempo de seguir,
Tempo de mal cair e tempo de mal seguir,
Oh amamos tanto, amamos tanto estar aqui com o tempo
E sabendo que há nisso pouco passado.
Porque maiores que os desígnios da vida
São os desígnios da medida e, divididos
Em dois por eles, com eles indo, se por eles
Ganhamos o tempo, pedimos a forma mais fácil
De indagar que vamos morrer e, um dia, se
O tempo for deles e, a memória, de outros,
Havemos de ser úteis como mortos há muito,
Sem que a causa, o delírio, a designação,
O julgamento nossa medida abandonem,
Dividida em duas por elas, e ganhando constância.

Depois, depois faremos ou fará o tempo, por sua vez,
Aquele blasfemíssimo comentário,
E então consta que amámos.

§

Leia um artigo de Rui Guilherme Silva sobre o trabalho de João Vário e também do escritor Armênio Vieira, primeiro cabo-verdiano a ganhar o Prêmio Camões, em 2009, além de Germano Almeida no ano passado: 

de Rui Guilherme Silva.

Leia o obituário escrito por Alexandra Lucas Coelho
n'O Público quando morreu o cabo-verdiano:
"João Vário, o poeta quase secreto"

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