A convite de Jeanne Callegari e Flora Miguel, eu me apresentei no evento Brecha em São Paulo, ao lado do músico mineiro Barulhista no dia 13 de setembro de 2022. Vídeo completo da performance abaixo.
segunda-feira, 17 de outubro de 2022
segunda-feira, 28 de março de 2022
João Lins Caldas (Rio Grande do Norte, 1888-1967)
Agradeço a Ayrton Alves Badriah por chamar minha atenção para o trabalho deste negligenciado modernista brasileiro. Alguns poucos poemas do autor foram reunidos no volume Poética (1975).
Uma Isabel morreu no mundo.
Tinha pai e mãe, irmãos e sobrinhos, aquele mundo de primos no mundo.
Avós enterrados, bisavós trepidantes nos cernes duros de árvores agigantadas.
Ascendentes outros na nervura de asas e barbatanas de peixes.
Isabel hoje estava cansada.
Remontava das suas origens a dias muito anteriores aos dias de Tebas,
Viveu de fresco os poemas de Homero,
A guerra de Tróia,
O passado de Sócrates,
E, caída Cartago, soldados ruivos, assalariados, mortos.
Não soube nada de sua crônica.
Era uma mulher, vestida de saia, os cabelos compridos
E se alimentava de pão, rapadura e mel.
Isabel tinha linhas nas mãos.
Uma sorte que estava escrita, diferente sem dúvida das outras sortes.
O destino de Isabel, o destino da vida como dos outros que carregam a morte.
Eu nunca vi Isabel.
O SOMBRA
Esse homem infeliz e sacrificado,
Os dias de sol que passaram sobre a sua cabeça,
As noites de chuva e tempestade,
As suas horas de esperança,
As suas horas de desespero,
Onde está ele, onde estão dele todas as suas tempestades?
O coração que lhe pulsa acelerado
De sangue, veia e veia, do seu corpo,
Seus nervos retorcidos, abalados,
Grisalho o seu cabelo, o olhar na noite,
A noite na sua alma, demorada,
Onde estão ele, a tempestade e a noite?
Sonâmbulos os passos, carregados,
Algidas as mãos de trémula brancura,
Tudo nele a sombria claridade..
Vejo, com vê-lo, nada ver no mundo.
Vejo, com vê-lo, já não ver mais nada.
Esse homem que se abriu um sepulcro no mundo.
quarta-feira, 23 de março de 2022
Régis Mikail [Quero me enterrar aos monges]
[Quero me enterrar aos monges]
Quero me enterrar aos monges, sentir o cheiro da bata, da inhaca e da sandália surrada, engolir balidos couros, da crosta ao calcanhar, a cada passo os dedos alargados afundando minhoquinhas;
persigo cada uma,
dedinhos de pés e fios encaracolados a terra seca tamisada
sálvia murta penugem e caramujos na cóclea de ouvidos hirsutos
o Monte Athos do agreste acantos e espinhosas
suculentas
a silhueta dissipa míope a muxiba
fimose da cobra esturricada.
O Aprendiz de Feiticeiro desejava a picada selvagem e a catinga das virilhas dos anacoretas, a quem décadas austeras proibiram abluções de qualquer sorte, por medo do desejo.
E esse deus sujo se revela mais puro que qualquer assepsia pregressa.
Nem mesmo um herói sob o Sol de Satã existe; verdade, já não mais está. Mas creio nele, sim, este é o prodígio,
um homem de fé que não seja o idiota,
um pé-de-cabra não brilhante nem paspalho
abobado iluminado
com o diabo trava batalha
não como aqueles
das histórias da carochinha
fiapos nas tripas de novelos em bofes regadas.
Não existem separadamente: Deus e diabo habitam
tentam as mesmas pessoas
nos mesmos lugares.
Apenas nunca vou conhecê-los, nem a um nem a outro. Cedo fui mutilado do divino, cegado, ensurdecido, emudecido, por Deus intocado,
exposto aos olfatos mais elaboradamente simples
melhor teria sido anosmia da napa morta
o cheiro de couro mofado
dejeta assepsia
ao corpo inerme proibida qualquer relação mística
– palavra tão puída, e não prostituída;
as putas estão com Deus –
e o gosto de cada som – ínfimo, é verdade, – não deixa de tocar o êxtase, como estelares
pretendem
poetastros
veem poeira morta
acho que a eles amo.
Resta apreciar como categoria lá do marfim entalhada, uma torre, o javali castrado, sublime onania,
a santa furada no pelo, do monge pelado o escalpo
ao longe, um navio a afundar.
Castigo? O regozijo é gozo lapado na arte.
Só fui entender, com muito retardo, que o pincel – e tão somente o pincel manejado por Deus –, é para ser sentido a cada golpe de tinta encharcado; e que na ponta cabeluda o pintor pode esboçar um jumento.
Sem Arte, pode-se chegar a Deus,
sem nome nem forma nem ideia
Ele é tudo e tudo é Ele
E Deus sendo demônio é caminho pedregoso a mula empaca
defronte
falo de serpente
por isso mais fácil.
Senda a pé, descalço, Deus habita a beleza árida do estéril e até mesmo a urucubaca.
Não se avexasse tanto com a Luz, a melatonina se assemelharia a Ele. O repouso promissor dos anjos custa caro, liberto do tempo e do vencimento,
que nem pacto com diabo
se um dia é atormentado
o hormônio recompensa
espelho a contrario
e as preocupações se deformam de ponta cabeça.
*
Régis Mikail é um escritor e tradutor brasileiro, nascido em São Paulo em 1982. Publicou o romance Onofre (Editora Deep, 2021).
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terça-feira, 22 de fevereiro de 2022
"Balada para Aníbal Barca" -- Victor Heringer (1988-2018)
Estou relendo o trabalho do amigo Victor Heringer (1988-2018), enquanto trabalho no posfácio para o volume que reunirá seus poemas. Está sendo muito forte, à luz de tudo o que veio depois na escrita de Victor, reler seu primeiro livro de poemas, Automatógrafo (2011). Abaixo, um dos meus textos favoritos no volume.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022
Pedro Lucas Bezerra - "A memória de Salomé"
O poema abaixo está no livro de estreia de Pedro Lucas Bezerra (Natal, 1993), intitulado Trem fantasma (2021), e publicado pela Quelônio.
No limiar
toda cabeça que se pede é a dele
de iocanaan
se no silêncio
uma voz vem a ti e fala “salva-me”
essa voz é a da cabeça de iocanaan
se num sonho rubro
tu vês a pálida cabeça
iluminada com lanternas
é essa a de iocanaan
se iocanaan disser que sua cabeça é de outro
que não tem nome
cabeça ori
cabeça que surge em combate
não acredite em iocanaan
porque ele não tem mais cabeça
se você está ouvindo uma música
e nela alguém assobia fora do tempo
é ela lá
a cabeça de iocanaan
se uma cabeça sem lábios
atravessa a noite e invade a festa
é essa ela
a cabeça de iocanaan
terça-feira, 1 de fevereiro de 2022
quarta-feira, 26 de janeiro de 2022
Caetano Romão - MAU-MAU E A MEDICINA [poema inédito]
MAU-MAU E A MEDICINA
mau-mau na outra ponta do sofá
sentado feito um buda
cheio de farelo no colo
me faz recomendações
a calvíce a rinite a nicotina
de perna cruzada
comendo biscoito de maisena
prescreve xaropes medicinas
conhece bem minhas manias
mau-mau é bom
só o sapato no estofado desmente
logo ele que diz
não pisa com o pé no sofá
mau-mau hoje está terrível
muito sabido
toma meu pulso
cheira minhas partes
desconfiado
querendo saber
de onde eu vim
ii.
a partir de agora
se faz necessário
certo recuo
não tão brusco:
mau-mau estralando meu dedão
do pé esquerdo
me elogia dizendo
você parece ser simples
tento responder
mordo a língua na pontinha
me espremo contra o sofá
agudo de aflição
sua fala cirúrgica
limpa os óculos
na borda da cueca
pra ver de perto
pra ver melhor
mau-mau que
me conta verdades
como se catasse pulgas
diz assim
como um doutor
me dá o outro pé
iii.
recuar
como um ossinho volta ao lugar
depois que puxa
sei de gente que estralava
os lugares mais improváveis
escápula cotovelo bacia
isso pra não falar do resto
quem estrala o corpo
teima com o corpo
quer prolongar o corpo
está de mal com o corpo
como se padecesse
de um soluço no osso
digo já chega pro mau-mau
esse sou eu encolhendo as pernas
eu que muitas vezes sinto cócegas
em lugares indevidos
esquecendo as coxas
em lugares indevidos
gargalho quando não quero
confundindo com bitucas
minhas unhas cortadas no chão
iv.
gente que pigarreia antes de falar
mau-mau é desses
como se trouxesse notícias muito novas
o rapaz é profissional
mau-mau corrige minhas lições
e meus ossos
v.
faz de conta que ele
guardasse um estetoscópio
ao redor do pescoço
a brincadeira é essa
quem tira a roupa sou eu
quem fica vestido é ele
conhecemos bem
os papéis
eu digo é aqui que me dói
já ele apalpa outro canto
assim vai
decifra meus centímetros
os pentelhos
todos no mesmo lugar
fica pasmo quando tusso
interroga anota cutuca
caxumbas catarros
insinua o caso é grave
entre nós alguma malícia
de ciência ou suborno
diz que tenho dor de dentes
no coração
não acredito
não peço a receita
não pago a consulta
– Caetano Romão
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terça-feira, 25 de janeiro de 2022
Frederico Nercessian - DISCURSO [poema inédito]
segunda-feira, 10 de janeiro de 2022
DEVOÇÃO - um poema inédito de Ismar Tirelli Neto
Ismar Tirelli Neto (Rio de Janeiro, 1985) |
DEVOÇÃO
Estou doce doce de condicionais
Todos os dias capacito-me de um crânio
A cultura coloca-me certo número de buracos onde meter minha devoção
Estou doce doce de diretivas
De meio a formidáveis reescrituras tenho caminhado
Caminhado com emparedamento cada vez maior
Encarregue de certo ritmo na roseira
Arrasto pelo mundo aparição e desaparição
Arrasto o triz até o tram
Quando subo
O mesmo vazio de consecução
Olhos choram contracorrentes
Onde um assento vazio?
Na minha frase
Onde um assento vazio?
Estou doce doce de hibridação
Para sentar às centelhas sobre o veículo já não se tem idade
Para sentar às estrelas
Para tomar café-da-manhã com as estrelas
Já não se tem idade
Não lhes parece o caso?
Sou eu quem deve preponderar na minha frase
Não lhes parece o caso?
Quem deve preponderar na minha frase sou
Eu fora
Fora todos os ouvidos
Preciso de um vagão vazio para dizer o ouvido
Um ouvido inteiro
A cultura corta um buraco redondo entre os reservados do banheiro
Volvam volvam as vontades quebradas
Estou virado como século
Vemos um filme extremado
Tenho pelo menos a virtude de realmente existir
Trabalho por adesivos de coração
Jogo ao cisco
Ganho em urbanidade
Muro-me de Introduções Guias Manuais
Tacanhado em cômodo com todos os quadrantes da Terra
Concateno frêmito no escroto à chegada do significado
A cultura coloca-me certo número de histórias de conversão a memorizar
Estou por assim dizer
– Ismar Tirelli Neto
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Mais ou menos de mim
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