Marília e eu no Villarino, centro do Rio, após apresentação no MAM.
Foto de Alexandra Lucas Coelho.
Último dia no Rio de Janeiro, último dia no Brasil, último dia da viagem que me trouxe de Berlim, levou-me à Cidade do México, carregou-me a São Paulo, a Bebedouro e agora ao Rio de Janeiro. Revi algumas das pessoas mais importantes de minha vida, amigos milenares, a família que liga todas as minhas encarnações, amigos novos que já se tornaram indispensáveis para minha saúde. Esta noite, embarco de volta a Berlim, com uma sensação muito estranha que mal consigo descrever. Queria muito mais uma semana aqui, não sei se estou pronto para voltar para o inverno berlinense, para a cidade novamente dividida em dois hemisférios. Mas volto diferente. O lançamento do meu livro ontem aqui, com a leitura, foi como o ponto final que me dará forças para fazer aquele ato tão difícil de virar a página de nossa própria biografia. Porque eu quero virar a página. Abrir novo capítulo, sem enganar-me ou iludir-me que isso significa exilar-se em outro romance.
Estou feliz, queridos. Marquem seus calendários, o poeta maysado, douglas-sirkense e almodovaricado está feliz.
E estar feliz sempre me traz à mente o início do lindo Happily (2000), de Lyn Hejinian:
Constantly I write this happily Hazards that hope may break open my lips What I felt has taken place a large context a long yielding incessant chance, and to doubt it would be a crime against it Is happiness the name for our (involuntary) complicity with chance?
Lyn Hejinian, in Happily (2000).
A tarde de ontem foi novamente muito, muito bonita, como a noite no MAM. A sala do Baukurs encheu-se para o lançamento do poema-livro de Marília, chamado engano geográfico (7Letras, 2012), e para o meu Ciclo. Nossa convidada de honra, Lu Menezes, abriu a tarde e fez uma leitura de alguns poemas de seu onde o céu descasca (7Letras, 2011), um dos livros mais bonitos dos últimos anos no Brasil. Escreverei sobre ele em breve, quando estiver assentado no Berlimbo. Abaixo, um dos meus poemas favoritos no livro:
Luzes ao longe
Agora, é como se desse pedaço de vidro negro
com que pintores monocromatizam reduzindo
a tons, só tons a paisagem
("vidro de Claude")
vasta mortalha derivasse, nuvem íntima
da tinta que o polvo-mor tanto aspira,
petróleo
derramado sobre as 1001 cores de Bagdá
respingando
o Rio
da vida inteira quando na fila dos alvos de cá
sua vez
chegar enegrecendo o Corcovado verde-jade,
enegrecendo
palmeiras e azulejos do passado árabe-português,
enegrecendo
o Pão de Açúcar – sonho celeste chinês,
de tal maneira que não possas mais
preferir ver ao anoitecer
"noite, esperança e pedraria" através
do amado verso de Mallarmé
(teu vidro de Mallarmé)
porque
só em tempo de paz
segregam esperança as reentrâncias da pedraria;
só em tempo de paz
luzes ao longe – algum remoto bem
anunciam mesmo a quem o desespero tangencia
Lu Menezes, onde o céu descasca (7Letras, 2011).
Convidamos também a jovem poeta carioca Alice Sant´anna para ler conosco. A poeta estreou em 2008, com o volume Dobradura, também pela editora 7Letras. Gostamos bastante do trabalho dela. Abaixo, um poema recente, sem título:
a sandália nova branca com dedos que se refestelam do lado de fora como crianças que sabem o verão que vem de repente a chuva mingua os planos da calça jeans com sandália de dedos uma combinação entre-estações para não se sentir nem tão lá nem tão cá os dedos curvados corcundas como crianças tristes que sabem o toró que se aproxima as unhas recém-cortadas que planejaram se mostrar sobre a cadeira de rodinhas que nada a água inundou a sexta da janela os bambus se movem muito chegam a parecer desesperados as folhas penduradas são cabelos colados que gritam novas rugas onde nada havia
Alice Sant´Anna, inédito em livro.
Uma das chances e descobertas, das mais felizes nesta minha viagem ao Rio de Janeiro, foi poder ter um pouco de contato e conhecer pessoalmente o jovem poeta Luca Argel, que na manhã de ontem mesmo teve 3 poemas inéditos publicados na página Risco, do jornal O Globo, editada por Carlito Azevedo. Já havíamos trocado algumas mensagens ao longo do ano passado, e ele havia me apresentado alguns de seus trabalhos visuais, mas fiquei muito tocado por seu lirismo tão direto, simples, delineado pelo enunciado da voz. Um lirismo de garganta seca, ligando-o a poetas tão diversos quanto Vasko Popa ou Diane Di Prima. Vou certamente acompanhar com muito interesse o seu trabalho e espero ter a chance no futuro de conviver mais tempo com ele. Abaixo, um dos poemas na Risco:
Para você aprender a palavra nacre
oi eu estou com seu casaco frio
oi eu estou dentro do seu casaco frio
oi eu estou cobrindo todo o meu rosto
com o capuz do teu casaco frio
agora eu não vejo mais nada
agora está ficando
mais difícil
respirar
Luca Argel, poema na página Risco, d´O Globo, editada por Carlito Azevedo.
Eu gostaria de terminar esta postagem com um excerto do poema-livro de Marília Garcia, a última a ler ontem à tarde, encerrando muito bem a tarde linda. Trata-se do excerto na quarta-capa do poema-livro engano geográfico (7Letras, 2012), sobre o qual escreverei em breve. O excerto talvez seja a melhor expressão do que sinto nesta estranha manhã chuvosa, esta manhã de deslocamentos, prestes a deixar o Rio de Janeiro e voltar a Berlim. Agradeço a todos que me salvaram com seu carinho. Estou partindo, mas c´est pas grave, partir, though it may look like (I feel it) like a disaster.
Ontem ocorreu a primeira leitura como parte do lançamento da antologia bilíngue holandês/português Vijfentwintig keer Brazilië / Vinte e cinco no Brasil, org. Flora Süssekind, trad. Harrie Lemmens & Bart Vonck (Gent: Poëziecentrum, 2011), um dos marcos poéticos do festival Europalia. Como escrevi, os poetas brasileiros presentes são Francisco Alvim, Lu Menezes, Marília Garcia e eu, 4 dentre os 25 poetas contemporâneos brasileiros incluídos na antologia, que abre com Augusto de Campos (São Paulo, 1931) e fecha com Marília Garcia (Rio de Janeiro, 1979). Escreverei sobre a antologia, mencionando os outros poetas, em alguns dias.
A leitura foi no Poëziecentrum, um espaço dedicado à poesia na cidade de Gante (Gent/Ghent), com uma excelente biblioteca que conta com praticamente tudo o que é e foi publicado em poesia em holandês, seja esta a língua original ou a de tradução dos poemas. Trata-se do lindo prédio que vocês podem ver na pequena foto que abre a postagem, uma instituição totalmente voltada para a divulgação e publicação de poesia em flamengo, dirigida pela entusiasta generosíssima que é Sieglinde Vanhaezebrouck, a quem deixo aqui meus agradecimentos sinceros pela linda, linda noite que ela organizou. A sala de leitura era no último andar, com cerca de duas dezenas de belgas flamengos interessados, respeitosos, muito generosos, vários deles falando português por paixão pela língua, outros apenas interessados em poesia, seja ela de onde for. Entre as leituras, o violonista Daniel Miranda tocou clássicos de Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Dilermando Reis e Tom Jobim. Foi uma noite muito bonita. Deixo vocês com um poema de cada um dos meus companheiros de leituras, Francisco Alvim, Lu Menezes e Marília Garcia, dentre os incluídos na antologia, assim como posto uma vez mais meu "O acordeonista da Catedral de Bruxelas", que Flora Süssekind decidiu incluir na antologia, deixando-me muito contente de o ler em plena Bélgica, após tê-lo escrito aqui. Encerro com a linda composição de Dilermando Reis que Daniel Miranda tocou ontem à noite. Está sendo um prazer passar estes dias com minha companheira Marília Garcia, conhecer e privar da companhia de Francisco Alvim, rever Lu Menezes após um brevíssimo encontro no Rio de Janeiro em 2009, poder conversar com eles com paz e respeito tamanhos.
QUATRO POEMAS, QUATRO POETAS incluídos na antologia Vijfentwintig keer Brazilië / Vinte e cinco no Brasil, org. Flora Süssekind, trad. Harrie Lemmens & Bart Vonck (Gent: Poëziecentrum, 2011)
Escolho Francisco Alvim
Parado
Na plataforma superior
Entre as pernas no chão as compras no plástico
Longe do verso perto da prosa Sem ânimo algum para as sortidas sempre - enquanto duram - venturosas da paixão
Longe tão longe do humor da ironia das polimorfas vozes sibilinas transtornadas no ouvido da língua
Ali onde o chão é chão as pernas, pernas a coisa, coisa e a palavra, nenhuma Onde apenas se refrata a ideia de um pensamento exaurido de movimento
Entre dois trajetos dois portos (duas lagunas duas doenças)
Sublimes virtudes do acaso por que não me tomais por dentro e me protegeis do frio de fora da incessante, intolerável, fugo do enredo? da escolha?
§
onde o céu descasca Lu Menezes
No interior da pizzaria pintada de azul com nuvens um ponto onde descola a tinta, onde o céu descasca denuncia o sórdido teto anterior
descor de burro quando surge
E é só o que delicia certo solitário comensal – esse ponto no qual extramolduras o apetite de um Magritte por superfícies genuína companhia lhe faz
– Genuína companhia... num simulacro de céu, tal ninharia? Yes!, no mínimo mais que a fatia no prato, o pedaço de teto nu e cru – amostra menor do limbo, do franco, fiel, frio limbo – duraria, oh sim, duraria
§
Le pays n´est pas la carte, Marília Garcia
I
pensa bem mas se tivesse as ruas quadradas teria ido a outro café, teria dito tudo de outro modo e visto de cima a cidade em vez de se perder toda vez na saída do metro, não é desagradável estar aqui, é apenas demasiado real diz com cílios erguidos procurando um mapa
II
não é o avião em rasante sobre a água e nem o corpo na janela semi-aberta vendo o desenho dos carros embaixo — não comenta nada porque prefere armar planos em silêncio (estaria sonhando com colinas?)
III
de lá manda longas cartas descrevendo o país, os terremotos e a forma da cidade. pode me dizer que nunca se espanta mas não percebe que caminha perguntando: é de plástico a cabine? é sua voz na gravação? é um navio no horizonte? pode ser apenas uma margem de erro mas não pensa nisso com frequência
(pode ser apenas a janela aberta que carrega os papéis)
§
O acordeonista da Catedral de Bruxelas Ricardo Domeneck
De Bruxelas eu esperava tudo, talvez a reprise do que ali já vivera, uma noite ao lado de Jey Crisfar, chuva e cansaço, conversas com taxistas e árabes, mas não este acordeonista loiro de 20 anos diante da Catedral, sim, a de Bruxelas, acordeonista loiro e imberbe, alto e imundo, a quem doei 2 euros num excitativo segundo de tato entre sua mão e meus dedos fechados abrindo-se em bojo sobre sua palma, após fazer com a visão o rodízio contemplativo e luxurioso, alternando o foco dos olhos entre a catedral imberbe e loira e o acordeonista alto e imundo, a quem ensaiei, por 20 minutos que mais pareceram seus 20 anos, perguntar seu nome, quiçá filmá-lo com a câmera que deixara no Berlimbo, ou imaginá-lo fotografado em série por Adelaide Ivánova, Heinz Peter Knes ou qualquer fotógrafo íntimo que me cedesse os direitos autorais desta imagem loira, imunda, para que eu de alguma forma possuísse este acordeonista imberbe e alto em seus 20 anos, a quem então batizo em minhas glândulas e passarei a chamar de Loïc ou quem sabe Guillaume pelo resto dos meus dias após falhar em criar os colhões de pedir seu nome, e é assim, sr. Loïc ou Guillaume aos 20 anos imundo e acordeonista, que a você eu dedico diante da alta e imberbe Catedral de Bruxelas, estes 2 euros e uma ereção.
§ § §
Dilermando Reis - "Se ela perguntar", composição que foi tocada por Daniel Miranda no Poëziecentrum ontem à noite.