quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Pequena nota sobre Gante, seguida de poemas de Francisco Alvim, Lu Menezes e Marília Garcia

Ontem ocorreu a primeira leitura como parte do lançamento da antologia bilíngue holandês/português Vijfentwintig keer Brazilië / Vinte e cinco no Brasil, org. Flora Süssekind, trad. Harrie Lemmens & Bart Vonck (Gent: Poëziecentrum, 2011), um dos marcos poéticos do festival Europalia. Como escrevi, os poetas brasileiros presentes são Francisco Alvim, Lu Menezes, Marília Garcia e eu, 4 dentre os 25 poetas contemporâneos brasileiros incluídos na antologia, que abre com Augusto de Campos (São Paulo, 1931) e fecha com Marília Garcia (Rio de Janeiro, 1979). Escreverei sobre a antologia, mencionando os outros poetas, em alguns dias.

A leitura foi no Poëziecentrum, um espaço dedicado à poesia na cidade de Gante (Gent/Ghent), com uma excelente biblioteca que conta com praticamente tudo o que é e foi publicado em poesia em holandês, seja esta a língua original ou a de tradução dos poemas. Trata-se do lindo prédio que vocês podem ver na pequena foto que abre a postagem, uma instituição totalmente voltada para a divulgação e publicação de poesia em flamengo, dirigida pela entusiasta generosíssima que é Sieglinde Vanhaezebrouck, a quem deixo aqui meus agradecimentos sinceros pela linda, linda noite que ela organizou. A sala de leitura era no último andar, com cerca de duas dezenas de belgas flamengos interessados, respeitosos, muito generosos, vários deles falando português por paixão pela língua, outros apenas interessados em poesia, seja ela de onde for. Entre as leituras, o violonista Daniel Miranda tocou clássicos de Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Dilermando Reis e Tom Jobim. Foi uma noite muito bonita. Deixo vocês com um poema de cada um dos meus companheiros de leituras, Francisco Alvim, Lu Menezes e Marília Garcia, dentre os incluídos na antologia, assim como posto uma vez mais meu "O acordeonista da Catedral de Bruxelas", que Flora Süssekind decidiu incluir na antologia, deixando-me muito contente de o ler em plena Bélgica, após tê-lo escrito aqui. Encerro com a linda composição de Dilermando Reis que Daniel Miranda tocou ontem à noite. Está sendo um prazer passar estes dias com minha companheira Marília Garcia, conhecer e privar da companhia de Francisco Alvim, rever Lu Menezes após um brevíssimo encontro no Rio de Janeiro em 2009, poder conversar com eles com paz e respeito tamanhos.


QUATRO POEMAS, QUATRO POETAS
incluídos na antologia Vijfentwintig keer Brazilië / Vinte e cinco no Brasil, org. Flora Süssekind, trad. Harrie Lemmens & Bart Vonck
(Gent: Poëziecentrum, 2011)


Escolho
Francisco Alvim

Parado

Na plataforma superior

Entre as pernas
no chão
as compras no plástico

Longe do verso perto da prosa
Sem ânimo algum
para as sortidas sempre -
enquanto duram -
venturosas da paixão

Longe tão longe
do humor da ironia
das polimorfas vozes
sibilinas
transtornadas no ouvido
da língua

Ali onde o chão é chão
as pernas, pernas
a coisa, coisa
e a palavra, nenhuma
Onde apenas se refrata
a ideia
de um pensamento exaurido
de movimento

Entre dois trajetos
dois portos
(duas lagunas
duas doenças)

Sublimes virtudes do acaso
por que não me tomais
por dentro
e me protegeis do frio de fora
da incessante, intolerável, fugo do enredo?
da escolha?


§


onde o céu descasca
Lu Menezes

No interior
da pizzaria pintada de azul com nuvens
um ponto
onde descola a tinta, onde o céu descasca
denuncia
o sórdido teto anterior

descor
de burro quando surge

E é só
o que delicia certo solitário comensal
– esse ponto no qual
extramolduras
o apetite de um Magritte por superfícies
genuína companhia lhe faz

Genuína companhia...
num simulacro de céu, tal ninharia?
Yes!, no mínimo mais
que a fatia no prato,
o pedaço de teto nu e cru
– amostra menor do limbo,
do franco, fiel, frio limbo –
duraria, oh sim, duraria


§


Le pays n´est pas la carte,
Marília Garcia

I

pensa bem mas
se tivesse as ruas quadradas
teria ido a outro café, teria dito tudo de
outro modo e visto de
cima a cidade em vez de se
perder toda vez
na saída do metro, não é desagradável
estar aqui, é apenas
demasiado real
diz com cílios erguidos
procurando um mapa



II


não é o avião em rasante sobre
a água e nem o corpo
na janela semi-aberta
vendo o desenho
dos carros embaixo — não comenta nada
porque prefere armar planos
em silêncio
(estaria sonhando
com colinas?)



III


de lá manda longas
cartas descrevendo o país,
os terremotos e a forma da cidade.
pode me dizer que nunca se
espanta mas não percebe que
caminha perguntando:
é de plástico a cabine? é sua voz
na gravação? é um navio no
horizonte? pode ser apenas
uma margem de erro mas
não pensa nisso
com frequência

(pode ser apenas a janela
aberta que carrega os papéis)


§


O acordeonista da Catedral de Bruxelas
Ricardo Domeneck

De Bruxelas eu
esperava tudo, talvez
a reprise
do que ali já vivera,
uma noite ao lado
de Jey Crisfar,
chuva e cansaço,
conversas com taxistas
e árabes, mas não
este acordeonista
loiro de 20 anos
diante da Catedral,
sim, a de Bruxelas,
acordeonista loiro e imberbe,
alto e imundo,
a quem doei 2 euros
num excitativo segundo de tato
entre sua mão e meus dedos fechados
abrindo-se em bojo sobre sua palma,
após fazer com a visão
o rodízio contemplativo e luxurioso,
alternando o foco dos olhos
entre a catedral imberbe e loira
e o acordeonista alto e imundo,
a quem ensaiei, por 20 minutos
que mais pareceram seus 20 anos,
perguntar seu nome, quiçá filmá-lo
com a câmera que deixara
no Berlimbo,
ou imaginá-lo fotografado em série
por Adelaide Ivánova,
Heinz Peter Knes
ou qualquer fotógrafo
íntimo que me cedesse
os direitos autorais
desta imagem loira,
imunda,
para que eu de alguma forma
possuísse
este acordeonista imberbe e alto
em seus 20 anos,
a quem então batizo
em minhas glândulas
e passarei a chamar de Loïc
ou quem sabe Guillaume
pelo resto dos meus dias
após falhar em criar os colhões
de pedir seu nome,
e é assim, sr. Loïc ou Guillaume
aos 20 anos imundo e acordeonista,
que a você eu dedico
diante da alta e imberbe
Catedral de Bruxelas,
estes 2 euros
e uma ereção.


§
§
§


Dilermando Reis - "Se ela perguntar", composição que foi tocada por Daniel Miranda no Poëziecentrum ontem à noite.

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