Começa amanhã em São Paulo (2 de setembro) e segue até domingo o encontro de poetas brasileiros e espanhóis 2011 Poetas por Km2, que ocorrerá este ano em São Paulo e Madri.
O evento paulistano ocorre no Centro Cultural São Paulo, e conta com a presença de espanhóis como Ajo, Eduard Escoffet, Peru Saizprez, Antonio Gómez, e os brasileiros Marcelo Sahea, Arnaldo Antunes, Márcio-André, dentre outros.
Como combater o hábito ocidental, já tão enraizado, de compartimentar o plural até que este se torne dual, cavar uma trincheira que o divida e erigir o monolito de outra dicotomia? Não quero retornar ao velho debate brasileiro da letra-de-música X poema. Também não compartilho do fervoroso ativismo anti-literário de Zumthor, por exemplo. Nem pretendo fazer uma defesa da oralidade contra a escrita, tentando instituir a naturalidade de uma sobre a artificialidade da outra. Ora, natureza é discurso e artifício. Linguagem. Produtor de texto: poeta. Cristalizado em escrita, fluindo em oxigênio e gás carbônico, suor da mão, gotículas de saliva.
VERSUS
§
É claro que, muitas vezes, não se percebe que o trabalho com a oralidade requer o mesmo rigor e estudo que o trabalho com a escrita exige. Os poetas literários não têm, em geral, preparo vocal para a leitura de seus próprios poemas.
Há o medo da retórica, o medo do discursivo.
Há poetas literários, porém, com leituras excelentes de seus textos, como Giuseppe Ungaretti e Charles Olson. São exemplos de leituras que vivificam o texto.
(Giuseppe Ungaretti lê o poema "Inno alla morte")
(Charles Olson lê "Maximus to Gloucester, Letter 27 [withheld]", 1966)
Percebe-se claramente a filiação bárdica de Olson. Foi o homem, afinal, que defendeu a respiração do poeta como base rítmica para a escrita.
§
É claro que muitas características do poema transformam-se no processo de oralização, assim como certas possibilidades poéticas intrínsecas do trabalho oral se perdem na página. Tomemos um exemplo extremo: um poema de Augusto de Campos:
O vídeo, aqui, oferece um suporte de união para o oral e o escrito.
É interessante notar que Augusto de Campos escreve que tudo está dito e, em seguida, que tudo está visto. Oralizado, o poema se transforma e perde toda a sua carga visual, é verdade. O difícil equilíbrio triplo do verbo, do vocal e do visual?
Já com um poema como "cidade/city/cité", uma vez ouvido, percebemos que sua existência na página é incompleta, trata-se de um texto que exige oralização:
(Augusto de Campos - "cidade/city/cité", texto de 1963, performance de 1985)
§
A voz a doar tantos ápices ao literário.
Como os poemas dos provençais? Ora, seguiremos olvidando que os grandes textos literários de Arnaut Daniel eram letras-de-música? Estou a blasfemar ou voltaremos a ouvi-los?
::: Arnaut Daniel :::: performance moderna para o poema "Lo ferm voler qu'el cor m'intra", de Arnaut Daniel, ressuscitado por musicólogos especialistas na poesia-música medieval, aqui guiados pelo grande Thomas Binkley (1932 - 1995):::
Uma das primeiras sextinas. Alta literatura e letra-de-música. Poesia oral, poesia escrita. Parâmetros para uma poesia verdadeiramente verbiVOCOvisual.
§
Dois grandes exemplos modernos de harmonia de composição, reunindo escrita e oralidade: Gertrude Stein e Ghérasim Luca:
(Gertrude Stein - "If I told him: A completed portrait of Picasso")
(Ghérasim Luca - "Passioneément")
§
Medo do discursivo? Prefiro os que têm coragem de enfrentá-lo.
Uma das características mais interessantes dos poetas em torno da revista L=A=N=G=U=A=G=E é justamente a investigação que fazem sobre o "discurso", dissecando-o e minando-o por dentro: tática de guerrilha.
Discursivo ou anti-discursivo, o poema abaixo?:
Elegy Lyn Hejinian
I am writing now in preconceptions Those of sex and ropes Many frantic cruelties occur to the flesh of the .......imagination And the imagination does have flesh to destroy And the flesh has imagination to sever The mouth is just a body filled with imagination Can you imagine its contents The dripping into a bucket And its acts The ellipses and chaining apart The feather The observer
The imagination, bare, has nothing to confirm it There's just the singing of the birds The sounds of the natural scream A strange example The imagination wishes to be embraced by freedom It is laid bare in order to be desired But the imagination must keep track of the flesh .......responding--its increments of awareness--a .......slow progression It must be beautiful and it can't be free
§
Elegia
Eu agora escrevo em preconcepções Aquelas de sexo e cordas Muitos frêmitos violentos ocorrem à carne da .......imaginação E a imaginação tem em verdade carne a destruir E a carne tem imaginação a lacerar A boca é apenas um corpo preenchido de imaginação Você pode imaginar seus conteúdos? O gotejar a um balde E seus atos As elipses e encadeamento à parte A pluma O expectador
A imaginação, vazia, nada possui que a confirme Há apenas o cantar dos pássaros Os sons do grito original Estranho exemplo A imaginação deseja ser abraçada pela liberdade É esvaziada para poder ser objeto de desejo Mas a imaginação precisa da observância à carne .......em resposta – seus incrementos de vigilância – uma .......progressão vagarosa Precisa ser bela e não consegue libertar-se
(tradução de Ricardo Domeneck, publicada no número de estréia da revista Modo de Usar & Co.)
§
__ Quem é sua cantora favorita?
__ Safo.
§
Mas é um equívoco associar, tão apressadamente, oralidade com discursividade, e esta com frouxidão da escrita. Exemplo drástico para possível ilustração do argumento: o poeta menos retórico que conheço é um poeta sonoro --- o francês Henri Chopin. Ouça o poema "L´énergie du sommeil":
(Henri Chopin, apresentando seu trabalho em Berlim, 2003)
§
Seria possível, no entanto, acusar alguém como Bernard Heidsieck de ser "demasiado discursivo"?
(Bernard Heidsieck, performance em Paris.)
§
Ora, isso acontece quando julgamos a poesia CORPoral sob parâmetros literários.
São trabalhos distintos e ambos são trabalhos poéticos... é o que Paul Zumthor chamava de "hegemonia da escrita" em nossa cultura que faz com que todos os outros trabalhos poéticos recebam rótulos
poesia "sonora" poesia "em vídeo" poesia "visual"
enquanto apenas a poesia "escrita" (ou poesia "literária") reserva-se o direito de não usar seu rótulo e auto-proclamar-se POESIA simplesmente.
É uma questão de ênfase (ou, se quisermos politizar a discussão, de hegemonia).
§
Não há por que criar uma oposição entre trabalhos que investigam diferentes ângulos da poesia.
Veja/ouça bem:
por exemplo, quando se discute no Brasil se letra-de-música é poesia, o que se está perguntando, na verdade, é se um texto composto para a voz pode funcionar como Literatura. A pergunta parece-me simplesmente errada, desde o princípio. Um texto para a voz não tem a menor obrigação de também funcionar como Literatura. Se o faz, ao ser transplantado para a página, torna-se um texto literário e pode ser julgado como tal, mas a atividade me parece muitas vezes pueril.
Não consigo deixar de ter o mesmo respeito por poemas líricos (que nos acostumamos a chamar de cançoes) como os de Beth Gibbons, a poeta associada ao coletivo Portishead, quanto pela pesquisa de Edmond Jabès, a que ele chamava de "busca pela autoridade perdida do Livro".
(Beth Gibbons - "Cowboys", um dos grandes poemas dos anos 90, aqui acompanhada pelo Portishead. A propósito: a tradição de poetas com acompanhamento musical é algo antiquíssimo.)
Edmond Jabès, em tradução de Caio Meira:
O livro seria, assim, apenas o espaço circunscrito pela palavra aberta à palavra. Não somos escritos onde ela se escreve, mas inscritos onde ela se apaga. Há uma linguagem própria que a inscrição tumular nos impõe e nos força ao silêncio. Pesado silêncio em busca de um signo. Ah! outro - homem, mundo, Deus - mais nós mesmos do que poderíamos sê-lo no segredo de nossas confissões; palavra de uma palavra à qual não ousamos ligar nosso nome; pois se somos tributários dela, ela, contrariamente, mais nos escapa do que nos pertence. Brancura, brancura de sangue. Séculos de orgulho e de derrotas jazem no vocábulo. Você os desperta ao revelá-lo. Um livro se entreabre quando nos abandonamos.
§
A voz pode muitas coisas que a escrita não pode, e vice-versa.
Há textos que foram criados, pensados para a página, e adquirem ali seu potencial (quase) completo. Já cheguei a chamar o "Coup de dès" de Mallarmé de coroamento da poesia como escrita, poesia literária, talvez um poema para os olhos, mais que para os ouvidos. Daí a fascinação do grupo Noigandres? Há poetas, no entanto, em que a voz parece estar implícita no texto, recuperando os volteios do oral. Algo como os poemas, por exemplo, de Frank O´Hara, ainda que o próprio O´Hara não me pareça um grande leitor de seus próprios poemas:
Having a coke with you Frank O´Hara
is even more fun than going to San Sebastian, Irún, Hendaye, Biarritz, Bayonne or being sick to my stomach on the Travesera de Gracia in Barcelona partly because in your orange shirt you look like a better happier St. Sebastian partly because of my love for you, partly because of your love for yoghurt partly because of the fluorescent orange tulips around the birches partly because of the secrecy our smiles take on before people and statuary it is hard to believe when I’m with you that there can be anything as still as solemn as unpleasantly definitive as statuary when right in front of it in the warm New York 4 o’clock light we are drifting back and forth between each other like a tree breathing through its spectacles
and the portrait show seems to have no faces in it at all, just paint you suddenly wonder why in the world anyone ever did them .................................................................................I look at you and I would rather look at you than all the portraits in the world except possibly for the Polish Rider occasionally and anyway it’s in the Frick which thank heavens you haven’t gone to yet so we can go together the first time and the fact that you move so beautifully more or less takes care of Futurism just as at home I never think of the Nude Descending a Staircase or at a rehearsal a single drawing of Leonardo or Michelangelo that used to wow me and what good does all the research of the Impressionists do them when they never got the right person to stand near the tree when the sun sank or for that matter Marino Marini when he didn’t pick the rider as carefully .................................................................................as the horse it seems they were all cheated of some marvellous experience which is not going to go wasted on me which is why I’m telling you about it
Tomar coca-cola com você (transcontextualização de Ricardo Domeneck)
é ainda mais divertido que ir a São Francisco, La Jolla, Tijuana, Tecate, Ensenada ou ter o estômago revirado de enjôo na Madison Avenue em Nova Iorque em parte porque nesta camisa laranja você me parece um São Francisco melhor mais feliz em parte por causa do meu amor por você, em parte por causa do seu amor por vodca em parte por causa das margaridas laranjas fluorescentes cercando os ipês em parte por causa do mistério que nossos sorrisos vestem diante de gente e estatuaria é difícil de acreditar quando estou com você que pode haver algo tão imóvel tão solene tão desagradavelmente definitivo quanto estatuaria quando bem em frente no ar quente das quatro da tarde em São Paulo nós vagamos em círculos um entre o outro sem parar como uma árvore respirando por suas oftálmicas
e a exposição de retratos parece não ter qualquer rosto, só tinta você de repente pergunta-se por que diabos alguém deu-se ao trabalho de fazê-los .................................................................................eu olho você e preferiria olhar você a todos os retratos do planeta com exceção talvez do Auto-Retrato com corrente de ouro de vez em quando que está no MASP a que graças aos céus você ainda não foi então podemos ir juntos pela primeira vez e o fato de que você se move tão lindo resolve mais ou menos o Futurismo assim como em casa eu nunca penso no Nu Descendo uma Escada ou num ensaio um único desenho de Da Vinci ou Michelangelo que antes me boquiabria e de que adianta aos Impressionistas toda a sua pesquisa quando eles nunca conseguiam a pessoa certa para encostar-se à árvore ao pôr-do-sol ou a propósito Marino Marini se ele não escolheu o cavaleiro com o mesmo cuidado .................................................................................que o cavalo é como se eles tivessem sido fraudados em alguma experiência maravilhosa que eu não pretendo desperdiçar o motivo pelo qual estou aqui falando tudo isso para você
§ §
É legítimo que um poeta decida trabalhar apenas com a escrita, é legítimo que um poeta decida trabalhar apenas com a oralidade.
Em minha busca pelo borrar de fronteiras e delir de dicotomias, interesso-me pelos que vivem em guerra com a alfândega entre as duas. Há, no Brasil de hoje, bons exemplos destes poetas, como Arnaldo Antunes, Ricardo Aleixo e Marcelo Sahea.
Ao mesmo tempo, fascina-me a pesquisa daqueles poetas que seguem trabalhando com o TEXTUAL sobre a página, investigando as falhas nas malhas do discurso:
Classificação da secura Marília Garcia
I
agora já é quase amanhã mas queria dizer apenas que é muito tarde: acrescentar quatro horas ao relógio indica que já é depois. lá é sempre depois. parecia um nome italiano com aquele som ecoando e a resposta em outra língua mostrava a cor das linhas no mapa,“é lilás”, para não dizer algo preciso para não terminar: com ela saio cedo todos os dias. fico de vez em quando escondido no porto. tomarei o transmediterrâneo e comerei calçots, .....................................até chegar o instante antes do instante, momento em que olha para o relógio e diz: não. já conhece todos os erros do sistema e a retina derretendo sempre que levanta .....................................para sair dali. (precisão é o retângulo do degrau inferior.)
II.
alguém que não consegue se mover e uma semana de vozes cortadas, deve se acostumar aos movimentos em câmera lenta, à descida pela escada em espiral: ................recorta os sons de cada quarto e apaga as perguntas que mais detesta responder. como aquela noite no ônibus, ruídos do rádio e pedaços de frases atiradas, sempre girando as horas. ........................................ver a paisagem sem ela e precisar o tamanho da ausência com poucos dados. sabe que as baleares ficam do outro lado do mar, e custa muito chegar anos depois e dizer. ergue os olhos para fixar o que tem ali e não perder de vista a secura.
§
E por que impediríamos o estritamente sonoro?
(Philadelpho Menezes - "Poema não música")
O estritamente visual?
(Joan Brossa - "Eclipse")
Os títulos contam? Existe o estritamente textual? Ou todo texto implica voz e olho?
§
Pluralidade de pesquisa segue sendo o caminho para uma poesia que se orgulha de cada um dos seus cinco sentidos.
Leitores da franquia eletrônica da Modo de Usar & Co. nos perguntaram algumas vezes quando pretendíamos mostrar poesia contemporânea brasileira na revista. Realmente, durante o ano de 2008, em que as atividades da franquia eletrônica se intensificaram, publicamos postagens sobre muitos poetas do pós-guerra, mas não do século XXI. Houve postagens sobre jovens europeus e latino-americanos, como o catalão Eduard Escoffet, a espanhola Sandra Santana, a francesa Nelly Larguier e a argentina Lucía Bianco, mas nenhuma sobre jovens brasileiros.
O primeiro número impresso da Modo de Usar & Co. trouxe quase que exclusivamente jovens brasileiros, com a exceção de alguns poetas surgidos na década de 90, como Carlito Azevedo, Marcos Siscar e Aníbal Cristobo.
Foi uma decisão consciente a de evitar os poetas de meia-idade. Quase todos os outros colaboradores eram poetas surgidos no fim da década de 90 e início desta década, como Dirceu Villa, Juliana Krapp, Danilo Bueno, Franklin Alves Dassie, Walter Gam, Diego Vinhas, Veronica Stigger, Leonardo Martinelli (a primeira perda de nossa comunidade, falecido no fim do ano passado) e Andréa Catrópa, entre outros.
A mim parecia importante, no primeiro ano de atividades da franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., estabelecer nossos parâmetros críticos, deixar claras nossas preocupações, criar nosso "mãedeuma". Após traduzir e apresentar dezenas de poetas totalmente inéditos, desconhecidos ou obscuros no Brasil (como bpNichol, Friederike Mayröcker e Henri Chopin), assim como certas comunidades de poetas da década de 50 (como o Grupo de Viena e os Lettristes de Paris), parece-me o momento certo e responsável de apresentar os jovens poetas brasileiros que chamam nossa atenção, com trabalhos fortes, ignorando os cantos de sereias da catástrofe que vêm sendo entoados por certos poetas de meia-idade, em algumas outras revistas eletrônicas editadas por poetas de meia-idade.
As duas últimas postagens da Modo de Usar & Co. foram dedicadas a Juliana Krapp e Marcelo Sahea. O segundo número impresso, que deve sair em dois meses, trará vários poetas inéditos em livro. Neste ano de 2009, seguiremos com a pesquisa sobre o que vem sendo produzido de interessante e inquieto na poesia contemporânea brasileira e no resto do mundo. Se vocês confiarem nestas palavras, visitem a página da franquia eletrônica da Modo de Usar & Co.AAQQUUII e procurem o número impresso de estréia da revista nas seguintes livrarias:
em SãO PAULO (SP) Livraria da Vila Rua Fradique Coutinho, 915 Vila Madalena São Paulo - SP tel. 55-11-3814-5811
no RIO DE JANEIRO (RJ) Livraria Berinjela Av. Rio Branco, 185 / loja 10 Centro Rio de Janeiro - RJ tel. 55-21-2215-3528
em BELO HORIZONTE (MG) Livraria e Editora Scriptum Rua Fernandes Tourinho, 99 Savassi Belo Horizonte - MG tel. 55-31-3223-1789
em SANTO ANDRÉ (SP) Livraria Alpharrabio Rua Eduardo Monteiro, 151 Santo André - SP tel. 55 -11-44 38 43 58
em FORTALEZA, CE Livraria Cavalo Marinho Rua Senador Pompeu, 2764/lj B Fortaleza - CE tel. 55-85-3214-5288)
ou faça seu pedido através do email revistamododeusar@gmail.com