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segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Khunashtar-ool Oorzhak (1932 - 1993)



Khunashtar-ool Oorzhak foi um khoomeizhi de Tuva, nascido na vila de Mungash-Ak em 1932. Um  khoomeizhi é um artista vocal do khoomei, um dos estilos e práticas do canto gutural de Tuva. A cena acima foi extraída de um documentário de Werner Herzog, bells from the deep: faith and superstition in russia (1993).

Agradeço a Eduardo Sterzi, que postou o vídeo nas redes sociais.
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sábado, 31 de março de 2012

Pequeno comentário sobre a função política do poeta a partir de dois poemas de Buffy Sainte-Marie

Descobri o trabalho de Buffy Sainte-Marie, nascida em 1941 no seio da nação Cree que sobrevive no Canadá, há um par de anos, durante minha pesquisa pessoal sobre a poesia oral e vocal, que me levara a abandonar os preconceitos literarizantes dos meus antepassados imediatos e buscar os praticantes desta tradição vivíssima, com seu arcabouço entre os Trobadours, Skalds e Goliardos medievais, chegando aos poetas-cantores do século XX, poetas orais e vocais como Woody Guthrie, Bob Dylan e Hedy West nos Estados Unidos, o belga Jacques Brel, o francês Georges Brassens, os canadenses Leonard Cohen e Joni Mitchell, o russo Vladimir Vysotsky, os chilenos Víctor Jara e Violeta Parra, entre tantos outros. Pesquisando sobre a geração anterior à que ficaria conhecida na década de 60 nos Estados Unidos, chegara a uma poeta satírica como Malvina Reynolds e seus vídeos no excelente programa televisivo de Pete Seeger, esta figura fenomenal. Foi entre os vídeos do programa que descobri as duas performances brilhantes de Buffy Sainte-Marie que mostro abaixo.

Somente preconceitos raciais e o trabalho eficiente da CIA em neutralizar poetas como Buffy Sainte-Marie poderiam explicar que uma mulher fenomenal como esta não seja idolatrada hoje ao lado de poetas-cantores como Bob Dylan e Joni Mitchell, vivendo hoje sem a fama insuspeita dos dois. Faz algum tempo que venho querendo escrever sobre ela, mas nestes últimos dias, pensando nas comemorações e protestos em torno da Ditadura Militar no Brasil, assim como a discussão com certos companheiros sobre minha postagem daquela página do Diário Completo de Lúcio Cardoso (sobre a relação entre escritor e Estado – voltarei a isso em breve), é que me vi uma vez mais ouvindo estas duas canções poderosas vez e vez outra aqui em minha caverna, pensando e pensando sobre a função política do poeta.

Em meio a tudo isso, houve duas outras situações neste mês que trouxeram novas perguntas a minha mente. Em primeiro lugar, minha última leitura em Berlim, ao lado do americano Black Cracker, da britânica Annika Henderson e da norueguesa Stine Omar Midtsæter, e as conversas que tive com vários amigos sobre suas impressões da leitura. Uma das conversas principais e mais interessantes girou em torno do caráter político de certos textos lidos naquela noite, alguns abertamente posicionados em sua política, outros altamente irônicos. Foi com tudo isso na mente que, há duas noites numa mesa de bar aqui no Berlimbo, conversava com duas amigas que são poetas-cantoras (não vou dizer quem são para não desviar a atenção da discussão), e discutíamos a despolitização do discurso poético na literatura e na música contemporâneas, assim como o uso que fazemos da ironia em nossos textos mais políticos. Lamentando o neo-hedonismo na poesia cantada atual, falávamos de Public Enemy e Bob Dylan, e passamos um bom tempo em torno da pergunta se a ironia ainda é apropriada e realmente eficiente diante de certos problemas políticos que deveriam ser enfrentados de frente por poetas. Mais uma vez, estas duas canções de Buffy Sainte-Marie vieram-me à mente.

Na primeira, "Little Wheel Spin and Spin", há um trabalho de concisão e ironia cortantes, num texto que nos leva tanto ao trobar leu dos trovadores como ao trabalho satírico dos Goliardos (que recorriam a esquemas de rima parecidos em latim), assim como a certos textos de Heinrich Heine e Bertolt Brecht. Tem uma função quase atemporal, pois tanto poderia referir-se à ganância em Roma como em Wall Street. Como eu gostaria de ter escrito os versos "Oh the sins of Caesar's men / Cry the pious citizens / Who petty thieve the 5 & 10s" ou "Turn your back on weeds you've hoed / Silly sinful seeds you've sowed / Add your straw to the camel's load / Pray like hell when your world explode"... Há ironia aqui, eficiente e que torna o poema funcional para qualquer momento, como sempre digo, já que vivemos eternamente no pré-distópico. Mesmo poetas contemporâneos posteriores como Harryette Mullen e Angélica Freitas usam estes recursos para seus textos de carga política na discussão de problemas raciais e de gênero no mundo contemporâneo, e de forma eficiente.

Aí penso em um poema poderoso como o é "My Country 'Tis Of Thy People You're Dying", sem podermos separar seu texto da performance cheia de autoridade de Buffy Sainte-Marie, e me pergunto se a ironia poderia ter sido usada ali. Tenho certeza que alguns amigos literatos dirão que o poema não se sustenta na página ou é "datado" e "de palanque". O que posso dizer é que sua força poética, de performance, e sua carga política me atingem em cheio todas as vezes que o ouço.

Mas é esta discussão que me parece estar no coração do problema que vivemos hoje, com a separação completa entre poeta e seu público. Esta ânsia por "sustentar-se no papel", este medo do "datado" levando poetas a ignorarem problemas que sempre foram tratados abertamente por poetas em seus momentos históricos, sem a preocupação (que hoje me parece tão patética) se seus textos entrariam em antologias escolares ou não. Era uma relação direta e aberta com seu público e seu momento histórico, sabendo que alguns textos sobreviveriam por tratarem de problemas eternos, mas sem negar-se a cuidar de questões que estavam marcando o calendário do seu uso pessoal do oxigênio coletivo, do ar de seus pulmões para soltarem palavras pela garganta, usando uma língua que é também propriedade coletiva, comunitária. Eram poetas realmente presentes. Até porque a apresentação de seus poemas exigia sua presença física, em contato direto com o público. É de uma miopia incrível ignorar as consequências destas trasnformações na distribuição e publicação para a recepção da poesia.

Ao tratar do genocídio de seu povo, não há como usar ironia, ainda que Buffy Sainte-Marie recorra ao sarcasmo mordaz diante da nação branca vitoriosa a engordar enquanto seu povo morria. Com o acúmulo de catástrofes sob os pés do Anjo de Benjamin, sempre uma nova matança exigindo nossa atenção, os genocídios passados vão se tornando abstratos, presos nas páginas dos livros de História, até que um poeta como Buffy Sainte-Marie ergue-se sobre seus pés em toda a sua autoridade criaturizada (uso o termo a partir de Celan) e nos atinge em cheio com a memória, trazendo à tona uma catástrofe passada. É poesia datada e eterna. É épica. É sim uma experiência histórica específica, mas nós poetas deveríamos saber que há o "tempo de buscar e tempo de perder; tempo de guardar e tempo de deitar fora; tempo de rasgar e tempo de coser; tempo de estar calado e tempo de falar". É minha crença firme que a poesia escrita não encontrará novamente público amplo enquanto nós, poetas contemporâneos, seguirmos abstendo-nos de fincar os pés no nosso tempo, e seguirmos tecendo sempre e sempre e uma vez mais apenas guirlandinhas de signos desgarrados da referencialidade, trans-históricos, inofensivos e infantilizados como nós mesmos, poetas contemporâneos.

É meia-noite no Berlimbo, 1° de abril de 2012, aniversário do Golpe de 64. Meu pensamento está no Brasil. Perdoem a ênfase. The little wheel spins, the big wheel turns around, fico zonzo com os vértices e vórtices da História.




Little Wheel Spin And Spin
Buffy Sainte-Marie

Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around

Merry Christmas Jingle Bells
Christ is born and the devil's in hell
Hearts they shrink Pockets swell
Everybody know and nobody tell

Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around

Oh the sins of Caesar's men
Cry the pious citizens
Who petty thieve the 5 & 10s
And the big wheels turn around and around

Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around

Blame the angels, blame the fates
Blame the Jews or your sister Kate
Teach your children who to hate
And the big wheel turn around and around

Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around

Turn your back on weeds you've hoed
Silly sinful seeds you've sowed
Add your straw to the camel's load
Pray like hell when your world explode

Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around

Swing your girl fiddler say
Later on the piper pay
Do see do, swing and sway
Dead will dance on judgement day

Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around

§




My Country 'Tis Of Thy People You're Dying
Buffy Sainte-Marie

Now that your big eyes have finally opened
Now that you're wondering how must they feel
Meaning them that you've chased across America's movie screens
Now that you're wondering "how can it be real?"
That the ones you've called colourful, noble and proud
In your school propaganda
They starve in their splendor
You've asked for my comment I simply will render

My country 'tis of thy people you're dying.

Now that the longhouses breed superstition
You force us to send our toddlers away
To your schools where they're taught to despise their traditions
Forbid them their languages, then further say
That American history really began
When Columbus set sail out of Europe, then stress
That the nation of leeches that conquered this land
Are the biggest and bravest and boldest and best.
And yet where in your history books is the tale
Of the genocide basic to this country's birth,
Of the preachers who lied, how the Bill of Rights failed
How a nation of patriots returned to their earth?
And where will it tell of the Liberty Bell
As it rang with a thud
O'er Kinzua mud
And of brave Uncle Sam in Alaska this year?

My country 'tis of thy people you're dying

Hear how the bargain was made for the West:
With her shivering children in zero degrees,
Blankets for your land, so the treaties attest,
Oh well, blankets for land is a bargain indeed,
And the blankets were those Uncle Sam had collected
From smallpox-diseased dying soldiers that day.
And the tribes were wiped out and the history books censored,
A hundred years of your statesmen have felt it's better this way.
And yet a few of the conquered have somehow survived,
Their blood runs the redder though genes have been paled.
From the Grand Canyon's caverns to craven sad hills
The wounded, the losers, the robbed sing their tale.
From Los Angeles County to upstate New York
The white nation fattens while others grow lean;
Oh the tricked and evicted they know what I mean.

My country 'tis of thy people you're dying.

The past it just crumbled, the future just threatens;
Our life blood shut up in your chemical tanks.
And now here you come, bill of sale in your hands
And surprise in your eyes that we're lacking in thanks
For the blessings of civilization you've brought us,
The lessons you've taught us, the ruin you've wrought us
Oh see what our trust in America's brought us.

My country 'tis of thy people you're dying.

Now that the pride of the sires receives charity,
Now that we're harmless and safe behind laws,
Now that my life's to be known as yourheritage,
Now that even the graves have been robbed,
Now that our own chosen way is a novelty
Hands on our hearts we salute you your victory,
Choke on your blue white and scarlet hypocrisy
Pitying the blindness that you've never seen
That the eagles of war whose wings lent you glory
They were never no more than carrion crows,
Pushed the wrens from their nest, stole their eggs, changed their story;
The mockingbird sings it, it's all that he knows.
"Ah what can I do?" say a powerless few
With a lump in your throat and a tear in your eye
Can't you see that their poverty's profiting you.

My country 'tis of thy people you're dying.


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domingo, 29 de maio de 2011

A morte de Gil Scott-Heron

Gil Scott-Heron (1949 - 2011)


Morreu este fim de semana inesperadamente, com apenas 62 anos, o poeta norte-americano Gil Scott-Heron, nascido em Chicago a 1° de abril de 1949, falecido ontem, 27 de maio de 2011, em Nova Iorque. Scott-Heron tornou-se conhecido com o livro de poemas/álbum Small Talk at 125th and Lenox (1970), que traz alguns de seus textos e poemas vocais mais famosos, como o icônico "The Revolution Will Not Be Televised", e ainda "Who'll Pay Reparations on My Soul?" e "Whitey on the Moon".

Scott-Heron lançaria em seguida, numa década em que foi prolífico, outros ótimos trabalhos: Pieces of a Man (1971), Free Will (1972), Winter in America (1974), The First Minute of a New Day (1975), From South Africa to South Carolina (1976), It's Your World (1976), Bridges (1977), Secrets (1978), Real Eyes (1980), Reflections (1981) e Moving Target (1984). Uma pausa de 12 anos se seguiria até o lançamento de Spirits (1994), e então outra de 15 anos até o lançamento de I´m New Here (2010). Colaborações suas com Brian Jackson, como as incríveis "Home is Where the Hatred Is" e "We Almost Lost Detroit", também foram bastante influentes sobre outros artistas.

Seus livros, além do já mencionado Small Talk at 125th and Lenox (1970), incluem o romance The Vulture (1970), The Nigger Factory (1972), So Far, So Good (1990) e a reunião de sua poesia em Now and Then: The Poems of Gil Scott-Heron (2001).

Eu poderia voltar aqui a alguns de meus assuntos obsessivos. Falar sobre como Gil Scott-Heron renova e faz renascer com força mamute em terras americanas a tradição oral da poesia africana dos griots. Sobre como a historicidade da poesia se encontra em toda a sua força de transpor contextos em uma obra como "The Revolution Will Not Be Televised". Historiadores do futuro encontrarão material de sobra neste poema para entender alguns dos conflitos do pós-guerra. Datado? Quem negará a atualidade desta peça em tempos de Wikileaks, revoltas da população do Egito e da Espanha, da Líbia e do Bahrein? É um pouco como o ótimo poema de Adrian Mitchell (1932 - 2008), intitulado "To Whom It May Concern". Sobre a Guerra do Vietnã? Ora, o que muda realmente de guerra em guerra? Nós aprendemos tanto com um poema sobre a Guerra do Vietnã como com um poema da antiguidade sobre a Guerra do Peloponeso.

Eu tenho calafrios, por exemplo, ao ler o famoso epigrama de Simônides de Ceos sobre os soldados mortos na Batalha das Termópilas (480 a.C.), que diz:


"Vai, desconhecido, diz aos lacedemônios:
aqui jazemos em obediência a suas leis.
"


Termópilas, Waterloo, Manchuria, Montecristo, Bagdá. A lista é interminável e crescente. Em qualquer lugar do mundo, dever-se-ia cavar a terra com o cuidado de quem possa estar escavando, sem saber, uma vala comum.

Será que um dia os versos de Gil Scott-Heron serão completamente incompreensíveis para os homens do futuro? Ora, todo poeta épico, se pensarmos na descrição de Ezra Pound para a poesia épica ("um poema que inclui a História") trabalha com o contextual: canta com tanta frequência o morto e o que vai morrer. Eles carregam a História em seu bojo, ainda que muitas vezes a mitificando, seja na Ilíada, ou mesmo, mais recentemente, n´O Guesa, de Sousândrade; n´Os Cantares, de Pound; no A, de Zukofsky; em The Walls Don´t Fall, de H.D.; n´A Rosa do Povo, de Drummond, e no gigantesco poema "Janela do Caos", de Murilo Mendes. A poesia reassume significados, sem ter que os engessar. Mesmo que o jogo inteligentíssimo de Scott-Heron em um verso como "You will not be able to plug in, turn on and cop out" se perca, e não saibamos que nele o poeta apropriou-se em intertextualidade da frase famosa de Timothy Leary, "Turn on, tune in, drop out", eu acredito que muito do texto sobrevive em sua própria carga de força.

A potência sonora, em aliteração e anáfora, é quase hipnótica, torna-se quase surreal-expressionista em certas imagens, ainda que saibamos lidar com figuras históricas. É texto de poeta. Em "lose yourself on skag and skip, / Skip out for beer during commercials", ou nas imagens de força expressionista em "The revolution will not show you pictures of Nixon / blowing a bugle and leading a charge by John / Mitchell, General Abrams and Spiro Agnew to eat / hog maws confiscated from a Harlem sanctuary", sem esquecer o jogo inteligente de criar paralelos sonoros entre Xerox e o nome de Nixon. Isso é sutil e ao mesmo agressivo, um soco, coisa de poeta satírico talentoso. Versos como "The revolution will not give your mouth sex appeal. / The revolution will not get rid of the nubs. / The revolution will not make you look five pounds / thinner, because the revolution will not be televised, Brother" preconizam elementos de apropriação que se tornariam comuns na poesia de hoje, além de ligá-lo, em minha opinião, a certas táticas de poetas modernistas, como Maiakóvski talvez, ou Brecht.

Sua morte é uma perda gigante, num momento em que precisamos tanto de poetas com coragem para incluir, quando necessário, a História em seus textos.








The Revolution Will Not Be Televised
Gil Scott-Heron

You will not be able to stay home, brother.
You will not be able to plug in, turn on and cop out.
You will not be able to lose yourself on skag and skip,
Skip out for beer during commercials,
Because the revolution will not be televised.

The revolution will not be televised.
The revolution will not be brought to you by Xerox
In 4 parts without commercial interruptions.
The revolution will not show you pictures of Nixon
blowing a bugle and leading a charge by John
Mitchell, General Abrams and Spiro Agnew to eat
hog maws confiscated from a Harlem sanctuary.
The revolution will not be televised.

The revolution will not be brought to you by the
Schaefer Award Theatre and will not star Natalie
Woods and Steve McQueen or Bullwinkle and Julia.
The revolution will not give your mouth sex appeal.
The revolution will not get rid of the nubs.
The revolution will not make you look five pounds
thinner, because the revolution will not be televised, Brother.

There will be no pictures of you and Willie May
pushing that shopping cart down the block on the dead run,
or trying to slide that color television into a stolen ambulance.
NBC will not be able predict the winner at 8:32
or report from 29 districts.
The revolution will not be televised.

There will be no pictures of pigs shooting down
brothers in the instant replay.
There will be no pictures of pigs shooting down
brothers in the instant replay.
There will be no pictures of Whitney Young being
run out of Harlem on a rail with a brand new process.
There will be no slow motion or still life of Roy
Wilkens strolling through Watts in a Red, Black and
Green liberation jumpsuit that he had been saving
For just the proper occasion.

Green Acres, The Beverly Hillbillies, and Hooterville
Junction will no longer be so damned relevant, and
women will not care if Dick finally gets down with
Jane on Search for Tomorrow because Black people
will be in the street looking for a brighter day.
The revolution will not be televised.

There will be no highlights on the eleven o'clock
news and no pictures of hairy armed women
liberationists and Jackie Onassis blowing her nose.
The theme song will not be written by Jim Webb,
Francis Scott Key, nor sung by Glen Campbell, Tom
Jones, Johnny Cash, Englebert Humperdink, or the Rare Earth.
The revolution will not be televised.

The revolution will not be right back after a message
bbout a white tornado, white lightning, or white people.
You will not have to worry about a dove in your
bedroom, a tiger in your tank, or the giant in your toilet bowl.
The revolution will not go better with Coke.
The revolution will not fight the germs that may cause bad breath.
The revolution will put you in the driver's seat.

The revolution will not be televised, will not be televised,
will not be televised, will not be televised.
The revolution will be no re-run brothers;
The revolution will be live.


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domingo, 1 de maio de 2011

Hoje O Moço e eu assistiremos a uma performance DELA, o que nos põe em estado de entusiasmo solar, e a mim leva a predições futuristas sobre a poesia

(A POSTAGEM QUE SE SEGUE É UMA NARRATIVA DE FICÇÃO CIENTÍFICA)




Hoje, no clube berlinense Tresor, haverá uma performance especial da britânica Janine Rostron, melhor conhecida como Planningtorock. A mulher é heroína minha, é uma delícia poder compartilhar oxigênio com ela aqui no Berlimbo. Já escrevi sobre ela algumas vezes aqui. Abaixo vocês (supondo que haja mais de um leitor por aqui) podem assistir a um vídeo de uma performance, na qual, por coincidência e sorte, eu estava presente.




Janine Rostron, melhor conhecida como Planningtorock, em performance em Berlim a 23 de abril de 2009. Tive a sorte enorme de estar na plateia desta performance, a primeira em que apresentou material inédito de seu álbum W, na Casa das Culturas do Mundo (Haus der Kulturen der Welt).



Ainda preciso escrever um artigo sobre algumas ideias futuristas, quase de ficção científica, que sempre me vêm à mente em performances de Janine Rostron como Planningtorock, assim também como de Karin Dreijer Andersson, mais conhecida como Fever Ray. Como que vislumbro um possível futuro do poeta, quem sabe retornando a aspectos da tradição trovadoresca medieval, mas com todas as inovações tecnológicas, chegando a uma noção poética de textualidade, vocalização, performance. Mas em equilíbrio: com textos sofisticadíssimos, que tomem a sextina de Arnaut Daniel como parâmetro, lembrando que o texto precisa ter altíssima qualidade literária e precisa ainda ser cantado.

Ainda estamos longe disso, INFELIZMENTE, pois muitos trovadores passaram a descuidar de seus textos, que ficaram frouxos, e muitos escritores se deixaram engessar em parâmetros dogmáticos de uma escrita que raramente funciona fora da página, com textos demasiado rígidos. O frouxo e o rígido são negativos. O que queremos é o teso.

Meus parâmetros pessoais de qualidade, hoje, são estes: respeito igualmente o poema que funciona apenas na voz e o poema que funciona apenas na página, tanto o texto para ouvidos quanto o texto para olhos - PORÉM, a que parece grande poesia para mim, hoje, aquela com que sonho, é a poesia que possa comparar-se aos textos dos trovadores occitanos, dos minnesänger germânicos, dos escaldos islandeses - os textos compostos para voz, mas tão tesos, tão tesos, que sobreviveram até hoje apenas como manuscritos. Poemas que funcionam na voz e na página, como, eu ousaria dizer, é o caso de quase toda poesia de qualidade, de Homero e Safo a João Cabral de Melo Neto e Hilda Hilst.



Bernard Heidsieck: vanguarda ou retorno a práticas milenares?


O caso dos poetas medievais é especial. Como Pound argumentou, a música deles ainda está lá, esperando por uma garganta. Tenho investigado as possibilidades, nos últimos tempos, da sugestão do norte-americano:


"... nothing — nothing that you couldn't, in some circumstance,
in the stress of some emotion, actually say.
"
Pound, em carta a Harriet Monroe.


"Nada – nada que você não possa, em alguma circunstância, sob a tensão de alguma emoção, realmente dizer." Querem um exemplo de poema em que isso acontece, em minha opinião, e com o qual podemos aprender? Entre outros, o "Donna mi prega"", de Guido Cavalcanti.

É muito pessoal. Não acho que ninguém seja obrigado a pensar assim. Não estou profetizando o fim da literatura. Creio apenas que (talvez) o gênero poético retorne, graças às novas possibilidades tecnológicas de gravação e difusão, a alguns parâmetros, que eu considero muito saudáveis, da poesia medieval. E que talvez poetas-escritores começarão cada vez mais a colaborar com jongleurs. Nunca estive entre os que acham que as novas tecnologias tenham que levar necessariamente a novidades poéticas. Isso me parece que pode levar a equívocos deterministas, de quem acredita em evolução artística. Eu creio em grande parte que as novas tecnologias permitirão que atividades poéticas do passado, por tanto tempo desprestigiadas, ganhem nova força e qualidade, ressurjam como possibilidades.

São apenas hipóteses futuristas, de ficção científica mesmo, para quem sabe daqui cem anos, se ainda houver humanos sobre a Terra. Já imaginaram como seria se um poeta do talento de Arnaut Daniel ou Bertran de Born tivesse acesso às possibilidades mostradas, por exemplo, aqui abaixo?




Karin Dreijer Andersson, melhor conhecida como Fever Ray, em performance na Alemanha.



O verbivocovisual, então, talvez não será apenas o signo e sua materialidade na página (isso é legítimo e seguirá existindo), mas será também o cuidado total de escrita + voz + performance, tudo muito teso, teso, teso, como imagino ter sido com todos os poetas vocais do mundo, alguns menos, outros mais, de Safo a Taliesin, de Egill Skallagrímsson a Arnaut Daniel, de Walther von der Vogelweide a Jacques Brel. Aos que acreditam que o minimalismo de poetas como Robert Creeley ou João Cabral de Melo Neto é coisa muito modernista e nova, vocês conhecem o poema "Sonatorrek", do escaldo (espécie de trovador) islandês Egill Skallagrímsson, nascido por volta do ano 910, morto por volta do ano 990?


excertos do poema Sonatorrek
Egill Skallagrímsson

1. Mjǫk erum tregt
tungu at hrœra
með loptvétt
ljóðpundara;
esa nú vænligt
of Viðurs þýfi,
né hógdrœgt
ór hugar fylgsni.

2. Esa auðþeystr,
þvít ekki veldr
hǫfugligr,
ór hyggju stað
fagna fundr
Friggjar niðja,
ár borinn
ór Jǫtunheimum,

3. Lastalauss
es lifnaði
á nǫkkvers
nǫkkva bragi;
jǫtuns hals
undir þjóta
náins niðr
fyr naustdurum.


O texto segue assim por 25 estrofes. Aqui uma tradução ao inglês das três aqui reproduzidas:

"1. I can hardly move my tongue / or lift up the steelyard of song; / now there is little hope of Viðurs / theft, nor is it easy to draw it out / of the hiding place of the mind. // 2. It is not easy, because of my / heavy sobbing, to let flow from / the mind's place the joyful find / of the kinsmen of Frigg, which / in times of yore was carried / away from the lands of giants. // 3. [Without faults, has come to / life at [name of dwarf?] ship of / Bragi]; [From] wounds on a / giant's neck [blood] flows / down in front of Nain's house / doorway."


Quando ouço poetas defendendo a "tradição", como se isto significasse tão-somente o direito de escrever sonetos, esta forma tão jovenzinha na História da Literatura, eu sempre penso: "Querido, volte mais tarde, quando você tiver composto uma sextina MUSICADA e CANTÁVEL, como a de Arnaut Daniel, ou quando você tiver dominado o dróttkvætt dos escaldos islandeses e escandinavos". É por isso que vocês nunca vão me flagrar bancando o zelador da Tradição, ainda que já possa ter bancado o papel questionável de guia turístico da Vanguarda.



Kurt Schwitters: vanguarda ou retorno a práticas milenares?


Mas, ao ver alguns destes performers contemporâneos, imagino que em cem, duzentos anos, talvez o verso de Fernando Pessoa em que famously diz que "O poeta é um fingidor" terá assumido consequências outras, talvez, talvez drásticas, na criação (quem sabe) de personas, como pressinto, num espaço que não é passado nem futuro, tão sincrônico, ao ver o vídeo de Klaus Nomi, por exemplo, em que ele vocaliza a ária da ópera "King Arthur", de Purcell. Que é, diga-se de passagem, um bonito poema lírico de John Dryden. Ora, nosso primeiro grande poeta (e foi grande poeta) Gregório de Matos, dizem, cantava seus poemas... não deixava de ter sua persona como o Boca do Inferno.



Klaus Nomi faz uma de suas últimas performances, em Munique, antes de morrer em decorrência da AIDS.


What power art thou,
Who from below,
Hast made me rise,
Unwillingly and slow,
From beds of everlasting snow

See'st thou not how stiff,
And wondrous old,
Far unfit to bear
The bitter cold.

I can scarcely move,
Or draw my breath,
I can scarcely move,
Or draw my breath.

Let me, let me,
Freeze again.
Let me, let me,
Freeze again
To death

(John Dryden)


É ainda o que sinto com quase todos os vídeos de gente como Kate Bush ou Linton Kwesi Johnson, por exemplo, como já disse em meus momentos mais manifesto-like, nos dias em que me sinto ativista da oralidade.



Linton Kwesi Johnson. Música? Poesia? Ou a sobrevivência de uma prática milenar, apesar de certas narrativas historiográficas?



Muitos destes têm, diga-se de passagem, maior cuidado textual que muitos poetas escritores por aí. Se eu tivesse que mencionar um "trovador" contemporâneo que mostra um pouco mais de cuidado textual, alguém que talvez poderia ser enquadrado na tradição do trobar leu, eu citaria este senhor aqui, um cidadão chamado Thom Yorke:



O vigoroso
trobar leu de Thom Yorke.


São hipóteses para possibilidades. O livro não morrerá, eu creio, nem deixarão de existir bons poetas escritores. Mas não seria lindo se renascessem poetas tão bons como escritores quanto Arnaut Daniel, que ainda fossem capazes de também cantar lindamente seus poemas, com textos tão tesos quanto a sextina "Lo ferm voler qu'el cor m'intra"?




Performance moderna para a sextina "Lo ferm voler qu'el cor m'intra", de Arnaut Daniel.


Lo ferm voler qu'el cor m'intra
no'm pot ges becs escoissendre ni ongla
de lauzengier qui pert per mal dir s'arma;
e pus no l'aus batr'ab ram ni verja,
sivals a frau, lai on non aurai oncle,
jauzirai joi, en vergier o dins cambra.

Quan mi sove de la cambra
on a mon dan sai que nulhs om non intra
-ans me son tug plus que fraire ni oncle-
non ai membre no'm fremisca, neis l'ongla,
aissi cum fai l'enfas devant la verja:
tal paor ai no'l sia prop de l'arma.

Del cor li fos, non de l'arma,
e cossentis m'a celat dins sa cambra,
que plus mi nafra'l cor que colp de verja
qu'ar lo sieus sers lai ont ilh es non intra:
de lieis serai aisi cum carn e ongla
e non creirai castic d'amic ni d'oncle.

Anc la seror de mon oncle
non amei plus ni tan, per aquest'arma,
qu'aitan vezis cum es lo detz de l'ongla,
s'a lieis plagues, volgr'esser de sa cambra:
de me pot far l'amors qu'ins el cor m'intra
miels a son vol c'om fortz de frevol verja.

Pus floric la seca verja
ni de n'Adam foron nebot e oncle
tan fin'amors cum selha qu'el cor m'intra
non cug fos anc en cors no neis en arma:
on qu'eu estei, fors en plan o dins cambra,
mos cors no's part de lieis tan cum ten l'ongla.

Aissi s'empren e s'enongla
mos cors en lieis cum l'escors'en la verja,
qu'ilh m'es de joi tors e palais e cambra;
e non am tan paren, fraire ni oncle,
qu'en Paradis n'aura doble joi m'arma,
si ja nulhs hom per ben amar lai intra.

Arnaut tramet son chantar d'ongl'e d'oncle
a Grant Desiei, qui de sa verj'a l'arma,
son cledisat qu'apres dins cambra intra.



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domingo, 8 de agosto de 2010

Um vídeo: pequena gênese, sem exegese.

"Der arme Dichter" :::O poeta pobre::: (1839), de Carl Spitzweg.

Descobri há muitos anos o quadro de Carl Spitzweg (1808 - 1885), que ficou em minha memória como um favorito, uma daquelas imagens que nos acompanham. À época, muito jovem e com uma visão romantizada da vida dos poetas, recebi o quadro também como uma espécie de celebração do glamour de outsider do criador de poemas, toda aquela mitologia do gênio incompreendido. O quadro quase me parecia um trabalho proto-surrealista, pois em meu entusiasmo adolescente eu via aquele guarda-chuva flutuando no quarto, enquanto o poeta, pobre e faminto, escrevia um poema também a flutuar naquela tal de Beleza do Inefável, ainda que o seu corpo estivesse atado à mesquinhez cotidiana, econômica. Parecia-me uma imagem do poeta como ser mágico, sobrenatural. Não deixa de ser uma leitura possível. Hoje em dia, vejo o quadro como algo muito mais irônico e satírico, sem heroísmos ingênuos. Segue sendo, no entanto, um favorito.

No inverno passado, congelando em meu quarto aqui no Berlimbo, praguejando contra meu aquecimento a carvão, topei novamente com o quadro e me pareceu um momento mais que apropriado para justamente me apropriar dele, reencenando, como em uma poética da reconstituição, deformando-o e redirigindo-o para meus próprios propósitos.

Não vou me estender demais sobre sua composição, pois não quero cair na armadilha de acabar substituindo-o com um discurso que seja lido como sua exegese. Quando trabalho com vídeo, tento trabalhá-los de tal maneira que texto, voz e imagem se amalgamem. Não me interessam imagens que ilustrem um texto, nem um texto que descreva imagens. É, obviamente, um equilíbrio delicado e precário, e deixo que outros julguem se o consigo em um ou outro trabalho como este.

Uma decisão no entanto foi decisiva para a composição do texto: a escolha da língua. Algum tempo hesitei entre escrever o texto em português ou inglês. Houvesse optado pelo português, o texto e (consequentemente) o vídeo teriam sido outro. Em primeiro lugar, os versos alheios que deformei teriam vindo de brasileiros e talvez portugueses, o que teria gerado um texto-vídeo completamente distinto. A escolha dos poetas foi bastante pontual: não é acidental ou mero capricho que, tal qual o compus, os versos tenham vindo de autores como Maiakóvski e Oppen. Em português ou inglês, eu certamente teria usado a deformação do famoso título do poema de Maiakóvski ("Conversa sobre poesia com o fiscal de rendas”"), assim como a proposição de Wittgenstein ("A filosofia consiste em mostrar à mosca a saída da garrafa"). No entanto, teria substituído os versos de poetas ingleses e americanos pelos versos de portugueses e brasileiros. Sei com certeza que o lugar de George Oppen teria sido ocupado por Carlos Drummond de Andrade, pelas diversas coincidências entre eles: mesma geração (Drummond nasceu em 1902, Oppen em 1908), estreias próximas (Drummond em 1930, Oppen em 1934), mas, principalmente, pelo caráter político de suas personalidades, ambos militantes, Drummond como o autor de A Rosa do Povo (1945) e Oppen como autor de Of Being Numerous (1968), de onde retirei o verso a ser deformado em meu texto: "There is nobody here but us chickens", que se transforma em "There is nobody here but us kitchens" / "There is nobody here but us chicanos" / "There is nobody here but us Chechens".

Conversei com meu querido companheiro Fabiano Calixto sobre a ideia de uma "tradução" para o texto, mas seria um daqueles casos em que apenas uma "transcontextualização" seria satisfatória, como as que fiz de poemas de H.C. Artmann e o próprio Calixto fez com poemas de Allen Ginsberg, no caso deste texto substituindo as apropriações de versos de George Oppen, John Keats ou Gertrude Stein pelos de poetas lusófonos.

Aqui, meu caro leitor, você poderia perguntar: "Mas Ricardo, por que diabos você não o escreveu em português?"

A pergunta não é impertinente e sua resposta está ligada à natureza do vídeo em si.

Eu vivo há cerca de 10 anos fora do Brasil. Discutir o papel do poeta em sua comunidade, para mim, tem que passar pelo fato de que sou um poeta que vive fora de seu país, entre pessoas que não falam sua língua materna. Há vários fatores em jogo: honestamente, porque eu tenho um desejo legítimo de que o trabalho possa dialogar também com as pessoas com quem eu vivo, que não falam o português. Há trabalhos que eu componho para a minha comunidade linguística, e a maior parte do meu trabalho é composta em português. No entanto, o debate em que este meu vídeo se insere diz respeito também a outras comunidades, une-se a discussões que tenho travado também aqui na Europa, com poetas europeus e amigos íntimos, e a escolha do inglês acaba sendo prática e lógica.

Sei que ainda impera no Brasil a visão nacionalista que herdamos dos Românticos e dos Modernistas, mas qualquer um com uma visão mais plural da tradição da poesia sabe que foi muito comum, antes do Romantismo e da fundação do "mito" das "Literaturas Nacionais", que poetas compusessem em outras línguas. Ora, Camões e Gil Vicente escreveram em espanhol. Meu mestre Murilo Mendes escreveu um livro em francês e outro em italiano.

No entanto, minha grande referência, nesta discussão e em tantas outras, é o trabalho e contexto dos trovadores occitanos. Muitos deles compuseram em diversas línguas por uma questão bastante prática: porque alguns deles viajavam de corte em corte, de cidade em cidade e necessitavam portanto desta variedade de línguas. Eu creio que isso se tornará cada vez mais comum novamente, já que em muitos aspectos algumas características da poética medieval estão retornando, como a valorização do poeta ligado a uma comunidade e o retorno à voz como possibilidade de "publicação" no sentido mais amplo do termo.

Uma vez escolhido o inglês como língua para a composição do texto, isso teve consequências sobre a direção dele, fazendo com que não tanto as "finanças" como também a própria "cidadania" do poeta, seu papel na comunidade em que se insere, se tornasse um foco importante do trabalho. Daí minha discussão do poeta como meteco, esteja onde estiver, em sua terra ou no estrangeiro.



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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Ao vosso serviço, trobairitz

A morte de Lhasa de Sela no primeiro dia deste ano desencadeou em mim, novamente, aquela espécie de resquício de amor cortês que sobrevive em minha poeticidade, como se um bloco daquele oxigênio, lá dos idos de 1150, ar anterior à Grande Peste (refiro-me à bubônica, não à Renascença), tivesse ficado congelado em algum lugar até entrar por minhas narinas. Tenho ouvido os poemas líricos da finada donna, que até no nome soava como trobairitz, sonhando com o retorno da hegemonia crítica que dê atenção às nossas trobairitz contemporâneas. Já escrevi aqui sobre minha obsessão por Kate Bush, uma das minhas guias para uma pesquisa poética contra o bongostismo das hierarquias entre alturas e baixezas culturais. Sigo crendo que "Sat in the lap" é um dos mais belos e perturbadores poemas (como todo o álbum The dreaming, de 1982, mesmo ano de A obscena senhora D, de Hilda Hilst) líricos daquela década. Ainda quero um dia escrever sobre o poema lírico "Get out of my house", de Kate Bush, com sua figura da mula, à luz da presença dos porcos na obra de Hilda Hilst. O machinho literato e apolíneo que quiser competir com isso, sinta-se à vontade:


(Kate Bush, "Get out of my house", do álbum de poemas líricos e sonoros The dreaming)

Publiquei um artigo na Modo de Usar & Co. sobre Lhasa de Sela, apresentando-a como poeta lírica, como herdeira de Safo de Lesbos, dos troubadours e das trobairitz medievais, com minha tradução/reescritura para o poema "Rising". No artigo, insisto em minha crença de que a separação hierárquica entre escrita e oralidade foi uma construção ideológica, que teve sim consequências bastante práticas e reais sobre a tradição poética, desde o Renascimento até Mallarmé, que é o coroamento da poesia como Literatura, mas que subsiste numa clave de hegemonia crítica. A população do mundo, porém, seguiu atenta aos poetas orais e aos trovadores, que não desapareceram por completo. Já tratei disso em artigos sobre Arnaut Daniel, Beatriz de Diá, David Bowie e Joanna Newsom, que podem ser encontrados na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co.. Herança de Safo de Lesbos, que passaria por poetas como o grego Calímaco e o latino Catulo, que trabalharam basicamente com a textualidade gráfica e, mais tarde, a partir da herança da poesia árabe, acaba sendo retomada como escrita e performance, ainda que de maneira transformada e distinta, pelos troubadours e trobairitz occitanos. Essa tradição oscila entre a Literatura e a performance ao longo dos séculos, atingindo harmonia e equilíbrio em seus momentos mais altos, como nas obras de Arnaut Daniel e Bernart de Ventadorn.

Fragmento de Safo

Eis as cinzas de Timas: morta pouco antes de casar-se,
Perséfone a acolheu em seu quarto sombrio.
Assim que ela morreu, as amigas, tão jovens quanto ela,
cortaram-se os cabelos com ferro afiado.


(tradução de José Paulo Paes)

A música e voz de Safo perderam-se. Restou sua textualidade gráfica, que sobrevive como Literatura, mas com o fantasma de seus sons pairando na derme do texto. No caso dos poetas medievais, sobreviveram em muitos casos os textos e suas composições musicais, mas continuamos a vê-los como Literatura apenas. Graças a certos estudiosos, podemos hoje saber aproximadamente o que era a sextina de Arnaut Daniel:


(Performance de Thomas Binkley para a sextina de Arnaut Daniel, "Lo ferm voler qu'el cor m'intra")

Sextina, letra de música e literatura ao mesmo tempo. Poderemos algum dia voltar a esta harmonia, este equilíbrio?

Poetas líricas contemporâneas como Kate Bush, Patti Smith, P.J. Harvey, Chan Marshall e Joanna Newsom estão ligadas a esta tradição, que incluía entre os troubadours as trobairitz, como Beatriz de Diá, a única de quem temos texto e música:


(Performance de Montserrat Figueras para a canso de Beatriz de Diá, "A chantar m'er de so q´ieu no voldria")

Essa tradição sobrevive e desagua tanto em Hilda Hilst como em Chan Marshall aka Cat Power:

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.


(Hilda Hilst, Júbilo Memória Noviciado da paixão, 1974)



(Chan Marshall aka Cat Power, "Nude as the news", do álbum What would the community think, de 1996)


Há mulheres hoje que sabem muito bem que estão ligadas a esta tradição, chegando a ser quase intransigentes nesta escolha, como Joanna Newsom demonstrou em seu último álbum de poemas líricos, intitulado YS (2008):



A escrita de um texto como "Sawdust and diamonds", de Joanna Newsom, parece-me superior à de muitos literatos em atividade no mundo de hoje. Talvez permaneça um mistério como a voz pode doar tamanho poder a um texto que, sozinho, não teria este poder, como é o caso de "Strange fruit", um belo exemplo de como a performance de um poeta doa poder a um texto. Nesse caso, Billie Holiday transforma o texto, fazendo com que este vídeo, desta performance específica, substitua para sempre o texto:


(Billie Holiday, "Strange fruit", texto talvez literariamente fraco de Abel Meeropol, que se transforma em gigante na voz de Holiday)

No artigo sobre Lhasa de Sela, trabalho com seu poema "Rising":

Rising
Lhasa de Sela

I got caught in a storm
And carried away
I got turned, turned around

I got caught in a storm
That's what happened to me
So I didn't call
And you didn't see me for a while

I was rising up
Hitting the ground
And breaking and breaking

I was caught in a storm
Things were flying around
And doors were slamming
And windows were breaking
And I couldn't hear what you were saying
I couldn't hear what you were saying
I couldn't hear what you were saying

I was rising up
Hitting the ground
And breaking and breaking

Rising up
Rising up







Ascendendo

Fiquei presa numa tormenta
E fui carregada pelo vento
Fui desviada, desviada

Fiquei presa numa tormenta
É o que me aconteceu
Por isso não liguei
E você não me viu por um tempo

Eu estava ascendendo
Atingindo o chão
E trincando e trincando

Eu fiquei presa numa tormenta
Coisas voavam por todos os lados
E portas fustigavam-se
E janelas quebravam-se
Eu não podia ouvir o que você dizia
Eu não podia ouvir o que você dizia

Eu estava ascendendo
Atingindo o chão
E trincando e trincando

Ascendendo
Ascendendo

(tradução/reescritura de Ricardo Domeneck)

E escrevo no artigo: Transcrevê-lo, com uma tradução/reescritura, tem a função de acompanhar a performance de Lhasa de Sela. Poderíamos ligá-la à tradição do trobar leu em suas composições originais, mas Lhasa de Sela trabalhava também como jongleur, ou o que hoje chamaríamos de intérprete.

O debate no Brasil entre literatura e oralidade, poesia escrita e poesia cantada é em geral bastante equivocado, ou no mínimo tendencioso. Ao transcrever um texto oral para a página, esperamos que ele funcione como Literatura. É uma expectativa legítima, mas não podemos nos esquecer que um poema lírico ou oral não tem obrigação de funcionar também como Literatura. Sabemos muito bem que, ao se afastar da oralidade, passamos a ter poemas escritos que também não funcionam bem em oralizações. Aí flagramos a hegemonia crítica que ainda impera, instituindo uma hierarquia, pois não se espera do poema literário que este funcione como poema oral, mas se espera do poema oral que este funcione como literatura. É claro que não podemos perder de vista o trabalho dos grandes poetas, que atingiram a harmonia de criar textos tão absolutamente tesos que sobreviveram por séculos como literatura, mesmo que tenham sido compostos para a voz, como é o caso dos poemas de Safo de Lesbos e Arnaut Daniel. Ou nos esquecemos que seus textos são "letras de música"? A escolha de nossos adjetivos já denuncia nossa est-É-tica. A busca de poemas "densos" e "concretos" demonstra uma perspectiva mais calcada no visual e na escrita. A busca de poemas "tesos" nos daria poemas que funcionam na página e na boca. Exponho aqui, obviamente, a minha est-É-tica e ideologia pessoais, tão parciais como a de qualquer outro.

A separação crítica entre escrita e oralidade teve efeitos extremamente negativos para a nossa tradição poética, ao fazer com que os poetas orais descuidassem da escrita, perdessem qualidade textual em seus poemas, assim como fez com que os poetas-escritores fossem perdendo cada vez mais o contacto com seu público, fechando-se em si, compondo textos que não podem sair da página mesmo que quisessem, fazendo literatura de literatura para literatos.

No entanto, há obviamente pesquisas que exigem o trabalho visual e literário apenas. Da mesma maneira, há pesquisas que exigem apenas a voz. É possível julgar um poema como "Rising" em seus aspectos literários, de escrita. Mas isso perderia e excluiria a imensa qualidade poética de sua textualidade vocal e sua concretude sonora e nos daria resultados críticos parciais. Eu poderia aqui ligar a escrita de Lhasa de Sela, em um poema como "Rising", à de outros poetas norte-americanos, como por exemplo Lorine Niedecker, Robert Creeley ou Rae Armantrout. Mas eu prefiro pensar a textualidade de Lhasa de Sela nos termos da tradição do trobar leu e de poetas como Heinrich Heine, um autor alemão que manteve em sua escrita uma ligação clara com a oralidade. Não é à toa que seu livro mais famoso (e extremamente popular na Alemanha até hoje, mesmo entre os que não leem poesia) chama-se Buch der Lieder, ou seja: livro das canções.

"Rising" está entre os poemas líricos que mais me emocionaram em 2009. Aqui poderíamos entrar noutra discussão: enquanto os poetas contemporâneos continuarem a repetir o mito romântico (e desesperado) da "poesia que não serve para nada", não vejo alternativas para obter um público leitor. A poesia obviamente é "inútil", como queria Paulo Leminski, se a pensamos no contexto utilitarista de um sistema capitalista e de uma sociedade de consumo. Mas isso não significa que a poesia não tenha várias possíveis e legítimas funções, funções que teve, de qualquer maneira, pelos séculos dos séculos. O medo do "subjetivo" e do "emocionado", que tanto se pregou a partir de João Cabral de Melo Neto e do grupo Noigandres, levado às últimas consequências e unido ainda a uma leitura tendenciosa do conceito de "função poética" de Jakobson, gera talvez esta situação em que nós poetas acabamos escrevendo textos que interessam apenas a outros poetas. Acaba por gerar, muitas vezes, manuais de instrução que interessam apenas aos técnicos, não aos usuários da poesia. Vida longa a nossos antilíricos, mas vida longa também a nossos líricos. Não é justamente a essa tradição que pertencem alguns dos mais belos poemas de Augusto de Campos, como o lindo "lygiafingers"? Se já não nos é dado escrever poemas cosmogônicos, aqueles que, nas sociedades descritas por Mircea Eliade e Ernst Cassirer, sustentavam o universo em seu eixo; se nos resta no entanto a poesia lírica, como muitos afirmam ser a única que nos resta (discordo), esta poesia teve funções desde sua origem, e não consigo pensar em honra maior, para um poeta, que a de emocionar seu leitor/ouvinte em um momento de necessidade. Mantendo, obviamente, uma escrita tesa, consciente da materialidade da linguagem (a completa, visual e sonora). Talvez possamos ser inúteis para a sociedade de consumo, sem, ao mesmo tempo, nos esquecermos de nossas funções milenares.



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quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Angélica Freitas, Paulo Henriques Britto, Marco Lucchesi e este que vos escreve no portal alemão Lyrikline

O portal Lyrikline é administrado pelo instituto Literaturwerkstatt (Oficina de Literatura), que organiza o maior festival de poesia da Europa, o Poesiefestival Berlin, e quase todo evento ligado à poesia em Berlim. Desde que iniciou seu trabalho, o instituto vem gravando as vozes dos poetas que lêem em seus eventos, assim como reunindo e garimpando gravações raras de poetas mortos. É um dos maiores portais eletrônicos do gênero. Em 2008, o foco do Poesiefestival foi a poesia lusófona, e trouxe à Alemanha alguns poetas brasileiros. Para participar da oficina de tradução, pareando poetas de língua portuguesa e alemã, participaram Angélica Freitas, Paulo Henriques Britto, Marco Lucchesi e eu.

O portal está comemorando 10 anos de existência e subiu à rede esta semana as gravações de Freitas, Britto, Lucchesi e as minhas. Para acessar o portal e as muitas vozes de poetas, com traduções, basta seguir os "enlaces" abaixo.

ANGÉLICA FREITAS

PAULO HENRIQUES BRITTO

MARCO LUCCHESI

RICARDO DOMENECK

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quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Garganta flexível, cordas tesas



Parto este fim-de-semana para a Eslovênia, onde participo do Festival de Poesia de Medana, que ocorre há cerca de uma década, sempre em agosto, trazendo poetas estrangeiros para o país, com leituras espalhadas pelo território, da capital Ljubljana a pequenas cidades, terminando em um vinhedo na pequena cidade de Medana. O nome oficial do festival é Medana: Days of Poetry and Wine. Passarei uma semana no país, lendo com poetas eslovenos, alemães, americanos, italianos, das mais variadas gerações. Na terça-feira, dia 25 de agosto, leio na cidade de Ptuj, com os poetas Mehmet Yashin (Chipre, 1958) e Nicole Gdalia (Tunísia, 1946). No dia 28, sexta-feira, já no vinhedo de Medana, leio com os poetas Aleksandr Skidan (Rússia, 1965), Milena Lilova (Bulgária, 1958), Matthias Göritz (Alemanha, 1969), Veronika Dintinjana (Eslovênia, 1977) e novamente com Mehmet Yashin. Especialmente para o festival, os organizadores traduziram dez poemas meus para o esloveno, cinco dos quais devem figurar na antologia trilíngue (língua original do poema, inglês e esloveno) publicada todo ano pelo evento. Meus poemas foram traduzidos por Barbara Juršič.

Precisando de umas boas férias, uni o útil ao agradável. Como não há uma conexão barata entre Berlim e Ljubljana, segui a orientação dos organizadores do festival, de voar para uma cidade austríaca ou italiana próxima da fronteira com a Eslovênia. Parto no domingo, dois dias antes do festival começar na Eslovênia, com um vôo para Klagenfurt, na Áustria, passando dois dias na cidade em que nasceu Ingeborg Bachmann (1926 - 1973), caminhando, lendo, traduzindo a poeta austríaca. Parto para a Eslovênia de carona na terça-feira e, depois de uma semana no festival, sigo para Veneza, na Itália, de onde marquei o vôo de volta para Berlim, aproveitando para ver pela primeira vez a Bienal. Vai ser bom desligar o crânio um pouco da rotina aqui no Berlimbo.

§

Antes de sair de viagem, após debater os últimos artigos com três poetas brasileiros contemporâneos por quem tenho muito respeito, achei necessário esclarecer, de forma bastante sucinta, dois pontos:

1- em momento nenhum gostaria de insinuar que a conjunção que defendo entre ética e estética seja algo "novo". Insisto que não se trata de "vanguardismo", ainda que eu creia que DADA e outras vanguardas históricas tenham levado o debate a outro patamar. Esta preocupação, eu creio, pode ser sentida em momentos diversos da História da poesia, em outros torna-se menos marcada. Tenho insistido nesta discussão, em território poético brasileiro e lusófono, por discordar publicamente da teleologia fictícia que se tem desenovelado de conceitos como "pós-utópico" e "trans-historicidade", assim como uma mais recente onda de tentativas de instituir o "l´art pour l´art" como única ética viável ao poeta.

2- não quero insinuar uma demonização do Renascimento, isso seria muito tolo de minha parte, ou sua culpa por todos os aspectos negativos da transformação dos parâmetros críticos hegemônicos a partir do século XVI. O trabalho poético oral seguiu firme e forte. O que argumento é que houve uma distorção de perspectiva e hierarquia, criando uma nova hegemonia crítica, um novo foco de atenção, que não é negativo em si, mas limitado. É este meu argumento. Precisamos encontrar uma narrativa histórica que respeite o fluxo das metamorfoses estéticas, evitando aqueles perigos mais claros do nosso vício de periodizar. Ainda que, segundo Fredric Jameson em Singular Modernity - Essay on the Ontology of the Present, "we cannot not periodize".

§

Encerro com meu texto "corpo" e a tradução de Barbara Juršič para o esloveno. Mais informação sobre o Festival Medana AAQQUUII.

§

corpo

cor.po
subst m corpo ['korpu]. pl. corpos. De nem
um. Massa
e peso
(favor não confundir)
anexados a superfícies
de código binário
aka masculino e feminino.
1. a. Geografia do posicionar-se. Área com fronteiras definidas; porção de espaço a sonhar com dicionários.
1. b. Locus de focus em terror, hocus pocus da lógica em orifícios úmidos.
1. c. Carcaça. "De volta à realidade!".
Diz-se
que o mesmo ar
não pode circundar
dois ao mesmo
tempo.
2. a. Padrão de aparência perigosa para a mecânica da pureza; a ilusão da higiene.
2. b. Não uma árvore.
Cores são encomendadas de acordo com o gosto.
Entrega segue regras de fabricação genética. Exemplares ruivos
anexados a um pênis
são uma iguaria.
3. a. Não confiável em impermeáveis. Temporário e de oscilações frequentes. "Quase lá."
3. b. Um grupo de erros e equívocos reputados como uma sanidade; uma Corporação S.A.
Mas a esfera
privada
é também um pesadelo.
4. a. Estabelecimento comercial. Para instruções, referir-se ao manual, ao oral.
Som
conhecido como voz
cola-o
à sua definição.
5. Geringonça que não sua em fotografias:
5. a. Anal tomia. A maior peça da fricção.
5. b. Maquinaria para a produção de líquidos.
5. c. Exclusivo para índices e apêndices.
5. d. Destinado a lubrificantes.
Se cortado ou perfurado, tende a tornar-se mais atento.
6. Massa de matérias e matéria de farrapos.
Dê-lhe água,
faça-o celeste.
7. a. Uma coletânea ou quantidade, como de material ou informação: a evidência de sua inflação.
VOCÊ ESTÁ AQUI
em um mapa.
8. Mobília confortável que requer manutenção.

::: Ricardo Domeneck, Corpos e palanques (São Paulo: Dulcinéia Catadora, no prelo) :::

§

telo

te.lo
samostalnik s telo -esa. Nikogaršnje.
Masa
in teža
(prosim, ne zamenjujte)
pripeti na površine
binarnih kod
aka moški in ženski.
1. a. Geografija zavzemanja prostora. Območje z določenimi mejami; del prostora, ki sanja o
slovarjih.
1. b. Locus focusa v grozi, hocus pocus logike v vlažnih odprtinah.
1. c. Okostje. "Nazaj v resničnost!".
Pravijo
da isti zrak ne more
obdajati
dveh obenem.
2. a. Vzorec, na videz nevaren za mehaniko čistosti; iluzija higiene.
2. b. Ne drevo.
Barve se naroči po okusu.
Dostava upošteva genetska pravila izdelave. Rdečelasi primerki
pripeti na penis
so poslastica.
3. a. Ni mu za zaupati v dežnem plašču. Začasno in s pogostimi nihanji. "Prišlo mi bo."
3. b. Skupina napak in zmot, znanih kot duševno zdravje; Korporacija S. A.
Ampak zasebna
sfera
je tudi nočna mora.
4. a. Trgovsko podjetje. Za navodila poglejte v priročnik, v oralnega.
Zvok
poznan kot glas
ga prilepi
na svojo definicijo.
5. Stvarca, ki se ne poti na fotografijah:
5. a. Analna tomija. Največji del trenja.
5. b. Mašinerija za proizvodnjo tekočin.
5. c. Ekskluziva za kazalce in priveske.
5. d. Namenjeno mazivom.
Če odrežete ali prebodete, običajno postane pozornejše.
6. Gmota snovi in snovnost krp.
Dajte mu vode,
naredite ga nebeškega.
7. a. Zbirka ali količina, kot bi bila iz materiala ali informacij: očitnost njene napihnjenosti.
TUKAJ SI
na zemljevidu.
8. Udobno pohištvo, ki zahteva vzdrževanje.

(tradução de Barbara Juršič)

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Escrever em voz alta: parte 3: meça o corpo presente

Minha aproximação e abordagem desta discussão, sobre a relação entre escritura e oralidade, deu-se gradualmente, como resultado de meu interesse em questionar certas dicotomias engessadas, esquemáticas, em especial a que busca separar e catalogar o espiritual e o corporal como adversários ou opostos, ou os outros pares usuais, como psicológico e físico, abstrato e concreto, etc. Aqui entra uma preocupação que eu insisto em chamar de est-É-tica, por crer que tais dicotomias, quando cristalizadas, levam-nos a implicações culturais e políticas pouco saudáveis, das quais sofremos todos os dias. Foi por isso que, mesmo em minha escrita, desde o início buscava no corporal os conceitos (e receitas) para uma transcendência que não implicasse sublimação do físico, uma aceitação adulta de nossa mortalidade, nossa finitude. Nas duas partes do meu livro Carta aos anfíbios (2005), busco na primeira, através de um trabalho metafórico, e na segunda, através do metonímico, encontrar parâmetros est-É-ticos para uma pesquisa poética que, se deseja o conceitual, o metafísico e o invisível, busque no concreto, corporal e físico suas manifestações.

Os materiais, a lição: cinco variações

I.

pés úmidos em terra seca:
montar um cavalo morto
enregela-nos o movimento.

(beijo ao caminho, à poeira)

o fértil
revolve os olhos
e mal contém-se
em coice:

pata impressa
em ervas.

II.

conglomerado sem esforço,
o corpo reunido vinga-se
do ar, dispersão contínua.

(e despenca-me em chuva)

o úmido
opõe ao vento
o núcleo
do seu aposento:

o corpo persevera
no extenso.

III.

escalar-se em chamas,
deitar no próprio corpo
como na última cama.

(prefiro o consumo do outro)

nosso palpável
peito unido
lambe o milagre
da carne única:

a trindade
opera-se grávida.


IV.

fala e água: ao chocarem-se
em continentes de carência,
o conteúdo dita a forma.

(o líquido modela o copo)

o sangue
procura deter-se
num trecho de pele
um instante:

toque do anátema,
farol, ex-amante.

V.

consciência purgada na falta
que ama: enfim, só se é cauto
em sins de olhos fechados.

(fé do absurdo no obstáculo)

o cavaleiro
executa
no escuro
o movimento.

sem aposta de páscoa:
um cavalo, um moinho, um vento.


Ricardo Domeneck, Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2005)

Algo destas consequências pouco saudáveis é o que vejo retratado em um dos melhores filmes deste nosso século, baseado no romance de Elfriede Jelinek, acusando nossas neuroses. Michael Haneke é um mestre na est-É-tica do confronto de nossas neuroses e hipocrisias. Fui ao cinema 11 vezes para assistir esse filme, filme em que todas as secreções humanas comparecem, implícitas ou explícitas, em que as relações de poder entre os sexos se apresentam em toda a sua violência, pesquisei-o, assim como o romance, como base para minha própria intervenção contra a dicotomia hipócrita do sublime e do grotesco, em que o grotesco se torna, invariavelmente, o território do corporal, o que nos desemboca na violência.


(Michael Haneke, La pianiste, 2001, baseado no romance de Elfriede Jelinek)


No ensaio "Ideologia da percepção", escrevi sobre meu interesse pelo trabalho de Hilda Hilst, por demonstrar justamente uma busca por transcendência que jamais implica sublimação. Lembro-me de que, em debate com o poeta Dirceu Villa, ele viria a dizer que o que interessava a ele era a retomada, por parte de Hilst, de certas formas de Catulo. Aqui entraria uma discussão interessante sobre a imbricação entre forma e função, já que eu diria que estes dois aspectos do trabalho de Hilda Hilst irmanam-se: parece-me bastante acertada, por parte de Hilst, a escolha de Catulo como referência em um trabalho como o que descrevi acima, de uma poética de pés-no-chão, contextualmente consciente, sem sublimação do físico em nome de uma possível transcendência. Lembro-me da febre que tive ao ler Hilda Hilst pela primeira vez, de pé em uma livraria da Avenida Paulista, em 1997, abrindo seu romance Estar sendo. Ter sido, lançado naquele ano, e lendo o poema que o encerra, intitulado "A mula de Deus", aquele que termina com esta coisa maravilhosa: "Palha/ Trapos/ Uma só vez o musgo das fontes/ O indizível casqueando o nada/ Essa sou eu/ Poeta e mula", a mulher que escreveu:

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.


Hilda Hilst, Do desejo, 1992

Vejo isso em meu mestre eleito dentre os primeiros modernistas brasileiros, meu caríssimo Murilo Mendes, aquele que terminou um poema com o verso "eu estou no meu corpo" e, mesmo em busca por transcendência, conhecia sua condição carnal, ainda que, assim como Hilda Hilst, nem sempre se apaziguava com ela:

"Estou aqui, nu, paralelo à tua vontade,
sitiado pelas imagens exteriores.
Todo o meu ser procura romper o seu próprio molde
em vão! noite do espírito
onde os círculos da minha vontade se esgotam."


(Murilo Mendes, "O poeta na igreja", Poemas, 1930)

Vejo isso no trabalho de Orides Fontela, outro de meus mestres escolhidos, como no poema "São Sebastião":

São Sebastião

As setas
- cruas - no corpo

as setas
no fresco sangue

as setas
na nudez jovem

as setas
- firmes - confirmando
..................a carne


Orides Fontela, Trevo (São Paulo: Duas Cidades, 1988)

Intuo que houve outros tempos em que nossa relação com o corporal era mais saudável. Por isso me interesso por uma poética do grotesco, como a que Bakhtin descreve ter existido na Idade Média. Um dos problemas que tenho com certos parâmetros neoclássicos é por ver nessa atitude algo das causas por que perdemos esta saúde, a partir do Renascimento, por releituras (que vejo como equivocadas) do legado clássico, baseadas na sublimação do contextual, físico, histórico. Algo piorado pelo cartesianismo que a Europa viria a propagar, e contra o qual poetas como os do Cabaret Voltaire, do Grupo de Viena, da Internacional Situacionista ou indivíduos como John Cage e Frank O´Hara viriam a se rebelar.

Minha pesquisa est-É-tica contra esta sublimação do físico, contextual, histórico e corporal (vejo-os unidos) levar-me-ia a esta pesquisa do oral e da performance, por uma busca pela reunião entre língua e corpo. Isso geraria, por exemplo, os textos do livro a cadela sem Logos, em que tento buscar uma maneira de manter a oralidade implícita na escrita, tentando convocar e obrigar o leitor à sua performance.

falar hoje exige
elidir a própria
voz as transações
inventivas entre
interno e externo
demandam
que a base venha
à tona e a
superfície seja
da profundidade da
história ímpeto
denotando o
centrífugo
o corpo público
que exibo como
palco fruto
da ansiedade
do remetente
o interno ao longo
da epiderme
como emily
dickinson terminando
uma carta de minúcias
com “forgive
me the personality“


Ricardo Domeneck, a cadela sem Logos (São Paulo: Cosac Naify, 2007)


Isso geraria também meus primeiros vídeos, como o que vim a chamar de meu "oralfesto", o vídeo "Garganta com texto", em que busco fazer o dizer.


(Ricardo Domeneck, "Garganta com texto: um oralfesto", exibido pela TV Cultura em dezembro de 2006)

Há certas asserções bombásticas no vídeo, como afirmar que "poesia não é literatura", o que gerou desentendimentos e necessitaria de elaboração e discussão. Preparei o vídeo em pleno momento de "ativismo anti-literário" à la Zumthor, de certa forma, e sei que esta declaração merece reparos e argumentação. Poesia é também literatura, obviamente, especialmente após as transformações poéticas pós-Renascimento. Insisto, porém, ser um equívoco associar o trabalho poético primordialmente com a escrita, o que tem nos levado a uma tradição bastante limitada, que muitas vezes mais atrapalha do que ajuda.

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domingo, 9 de agosto de 2009

Escrever em voz alta: parte 2: explicando, implicando

No último texto aqui publicado, afirmei que não se tratava de veleidade de vanguarda, esta discussão sobre escritura e oralidade. Sabemos que a poesia sonora e oral pertencem a uma tradição mais antiga que a literária. Mesmo alguns dos grandes nomes do que chamamos de Literatura se espantariam com a nomenclatura e a noção poética que muitos consideram eternas, mas têm um endereço bastante claro no século XIX, o século da literatice.

No entanto, não compartilho da ojeriza ativista que Paul Zumthor, por exemplo, nutria contra a transformação que a poesia literária trouxe à prática poética. Entendo, no entanto, sua tristeza ao ver poemas importantes do mundo desaparecerem por não se conformarem aos parâmetros da Literatura. Cresci no Brasil, onde a divisão crítica entre poesia oral e escrita é bastante clara. Ainda me considero, primordialmente, um poeta-escritor. Por que a pesquisa e todos os meus artigos sobre poesia oral e performance?

Porque creio que os poetas-escritores ganhariam muito, se mantivessem sua atenção também voltada para estes aspectos da prática poética, assim como creio que os poetas orais e trovadores contemporâneos brasileiros ganhariam muito se atentassem mais para a textualidade de seu trabalho oral e em performance. Os escritores ganhariam, por exemplo, pois o trabalho oral é menos suscetível a um exagero de intertextualidade (ou "metástase de referências literárias", como alguns prefeririam), assim como o contato direto com seu público, apenas possível em leituras e performances, seria extremamente saudável para alguns poetas-escritores. Quanto aos poetas orais, uma maior preocupação (digamos) literária permitiria a criação de textos mais tesos, densos e concretos, que poderiam também funcionar na página. O parâmetro aqui seria, obviamente, o trabalho dos trovadores medievais.

Sei, porém, que certas pesquisas não permitem tal equilíbrio. Há pesquisas poéticas que buscam certos extremos do trabalho oral, como a de Henri Chopin, assim como certas pesquisas entregam-se a extremos do trabalho escrito (ou visual, digamos), como o de Haroldo de Campos, para ficarmos entre dois poetas ativos nos anos 50, ambos considerados, de formas distintas, poetas concretos. Sempre os vi como opostos, de certa maneira. Foi uma surpresa ler recentemente um artigo assinado por Nicholas Zurbrugg, intitulado "Programming Paradise", em que o ensaísta discute as diferenças entre a abordagem verbivocal de Chopin a partir das vanguardas históricas (precisamos rever esta nomenclatura) e a abordagem verbivisual de Haroldo de Campos, a partir das mesmas vanguardas. Zurbrugg discute justamente a questão do aspecto da utopia (e pós-utopia) das práticas de ambos, a forma como Campos nega a prática da vanguarda como proposta utópica, a partir da década de 80, e a maneira como Chopin insiste nela. O ensaio se encontra no volume Writing Aloud - The Sonics of Language, do qual retirei o nome para esta nova série de artigos. O álbum de peças e poemas sonoros que acompanha o volume traz trabalhos de Marina Abramovic, Jocelyn Robert, Yasunao Tone e Vito Acconci, entre outros.

É interessante como a poesia concreta pode assumir aspectos est-É-ticos tão diversos, em poetas como Henri Chopin e Haroldo de Campos. Talvez porque o Grupo Noigandres tenha buscado preparar a poesia para participar de uma nova era tecnológica e política, contra a qual poetas como Henri Chopin queriam simplesmente resistir. Aqui poderíamos discutir a proposta problemática de Noigandres, por exemplo, de fazer do poema um "objeto útil". Talvez possamos também discutir, a partir disso, minha proposta de que algumas das vanguardas não eram apenas pró-utópicas, como eram também anti-distópicas. Aí reside minha obsessão pelo trabalho dos poetas ligados ao Cabaret Voltaire e à revista DADA (obsessão que parecia também residir em Henri Chopin). Assim, enquanto Haroldo de Campos insistiu no aspecto semântico de sua pesquisa poética, Henri Chopin viria a afirmar em seu texto "Por que sou o autor de poesia sonora": "Não é possível, não se pode continuar com a Palavra todo-poderosa, a Palavra que impera sobre tudo. Não se pode seguir admitindo-a em toda casa, e ouvi-la em todos os cantos descrevendo-nos e descrevendo eventos, dizendo-nos como votar, e a quem devemos obedecer... Eu prefiro o sol, eu aprecio a noite, eu aprecio os meus barulhos e os meus sons, eu admiro esta fábrica imensa e complexa de um corpo, eu aprecio meus olhares que tocam, meus ouvidos que vêem, meus olhos que recebem... eu não preciso ter minha vida derivada do inteligível. Eu não quero estar sujeito à palavra verdadeira que sempre confunde e mente, não suporto mais ser destruído pela Palavra, esta mentira que se abole no papel."

Serão realmente importantes as implicações est-É-ticas dos trabalhos de

Haroldo de Campos --- clique AAQQUUII

ou

Henri Chopin --- clique AAQQUUII

?

Aqui seria necessário começar a discutir aquilo que chamo de uma poética de implicações, a partir do trabalho formal de cada poeta, atentando porém para a função de tal forma no contexto em que se insere. Não a partir de algum conteudismo, como na crítica equivocada de Roberto Schwarz ao poema de Augusto de Campos na década de 80. Refiro-me às implicações est-É-ticas do trabalho formal de um poeta, algo em que os poetas ligados à revista L=A=N=G=U=A=G=E insistem desde a década de 70. Discussão que faria necessário invocar os poetas do Cabaret Voltaire, assim como Gertrude Stein e John Cage, os poetas do Grupo de Viena, a Internacional Situacionista, os artistas e poetas ligados ao Fluxus e ao Punk, assim como pensadores da linguagem como Ludwig Wittgenstein e Charles Sanders Peirce.

Trabalho hercúleo e incessante, com o qual seguimos.

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