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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Alguns poemas brasileiros: "Paupéria revisitada", de Ricardo Aleixo

Sigo com a série sobre os poetas convidados para o festival de Poesia de Berlim, lendo hoje com vocês um de meus poemas favoritos a sair da mão e garganta de Ricardo Aleixo (Belo Horizonte, 1960), o excelente exemplo de poesia satírica contemporânea que é "Paupéria revisitada", mostrando-nos claramente como a poesia pode ainda exercer algumas de suas funções milenares em meio à comunidade linguística e política a que pertence e na qual se insere. Sem perder a qualidade em sua materialidade de signos, o texto caminha ainda entre a tradição literária e a oral... ora, sequer é realmente ainda necessário fazer estas distinções dualistas, é simplesmente poesia como se fazia no Medievo, entre os Goliardos, por exemplo - escritoral. Os melhores poetas contemporâneos hoje no Brasil, em minha opinião, os que estão tomando para si o desafio de reconquistar o público de poesia que se perdeu entre os anos 80 e 90, têm conquistado seus melhores resultados justamente no campo da poesia satírica. Aqui, Aleixo consegue ao mesmo tempo exortar tanto os produtores quanto os consumidores. Parece-me um poema mui bem sucedido.


Paupéria revisitada
Ricardo Aleixo

Putas, como os deuses,
vendem quando dão.
Poetas, não.
Policiais e pistoleiros
vendem segurança
(isto é, vingança ou proteção).
Poetas se gabam do limbo, do veto
do censor, do exílio, da vaia
e do dinheiro não).
Poesia é pão (para
o espírito, se diz), mas atenção:
o padeiro da esquina balofa
vive do que faz; o mais
fino poeta, não.
Poetas dão de graça
o ar de sua graça
(e ainda troçam
— na companhia das traças —
de tal “nobre condição”).
Pastores e padres vendem
lotes no céu
à prestação.
Políticos compram &
(se) vendem
na primeira ocasião.
Poetas (posto que vivem
de brisa) fazem do No, thanks
seu refrão.

Máquina Zero (2004)

§



§

Na Oficina de Tradução do Festival de Berlim, Ricardo Aleixo terá por parceira a poeta alemã Barbara Köhler (n. 1959), que estreou em livro com Deutsches Roulette. Gedichte 1984-1989 (1991), e desde então publicou sete livros, o último sendo Niemands Frau. Gesänge zur Odyssee (2007). Barbara Köhler traduziu Gertrude Stein e Samuel Beckett para o alemão, nos volumes:

Gertrude Stein: zeit zum essen. eine tischgesellschaft. objects, food and portraits by Gertrude Stein (Audio-CD, 2001)
Gertrude Stein: Tender Buttons. Zarte knöpft (2004)
Samuel Beckett: Trötentöne / Mirlitonnades. Gedichte (2005)


Como nas postagens com poemas de Horácio Costa e Jussara Salazar, gostaria de encerrar com outros poemas, mas creio que o melhor é simplesmente reproduzir aqui o artigo sobre Ricardo Aleixo, com vários poemas, que preparei especialmente para a Modo de Usar & Co. em outubro de 2008.



Ricardo Aleixo
por Ricardo Domeneck, especial para a Modo de Usar & Co.
20 de outubro de 2008


Ricardo Aleixo nasceu em Belo Horizonte, em 1960. Seu trabalho vem crescendo e fertilizando-se nas fendas entre disciplinas da nossa ainda engessada taxinomia de gêneros, aumentando as fissuras na superfície do fixo, já que logo abaixo o campo que une as atividades artísticas do poeta é um campo comunitário, compartilhável. Assim, podemos chamá-lo de poeta, artista visual e sonoro, compositor, locutor, performador, ensaísta, curador. No entanto, acredito que o fluir poético de seu trabalho une perspectivas diversas, que acabam muitas vezes separadas no discurso crítico monológico, e ele está entre os poetas que se formaram na década de 80/90 e iniciaram um processo de renovação do conceito de Joyce/Noigandres do verbivocovisual, renovação que se manifesta em uma multiplicidade de ênfases, fazendo de seus poemas (escritos, sonoros, corporais) "quinas", ângulos dos quais se pode observar o território poético das linguagens do poeta contemporâneo, daquele que gosto de chamar de multimedieval. O próprio poeta mineiro chama seu trabalho de "reverbvocovisual".

Se podemos discutir seu trabalho concentrando-nos em cada manifestação específica, como muitas vezes se faz, lançando o foco sobre seu trabalho literário, sua escrita, seus livros de poemas, creio que no caso de Ricardo Aleixo esta prática é especialmente prejudicial para a compreensão do alcance de sua poesia.

O trabalho com a oralidade e a prática da poesia sonora, no Brasil, ainda parecem tratadas como apêndices do núcleo literário do trabalho poético. A partir da década de 80, poetas como Philadelpho Menezes, Arnaldo Antunes, André Vallias e Ricardo Aleixo entregaram-se ao trabalho de renovação poética de certos paradigmas da poesia de vanguarda, tanto do início do século como do pós-guerra, momento em que vários grupos espalhados por cidades como São Paulo, Paris, Viena, Berlim, Nova Iorque e Tóquio retomaram as estratégias de grupos como o do Cabaret Voltaire. No caso destes poetas brasileiros dos anos 80/90 (após mais um período de nova retomada destas estratégias, como no caso da revista L=A=N=G=U=A=G=E e de certos grupos berlinenses), o trabalho é feito a partir de graus e ângulos distintos, trazendo mais uma vez perturbações para o já documentado, de certa forma, com as novas tecnologias.

O caso de Ricardo Aleixo parece-me particularmente interessante pois, se ele claramente passa a fazer uso das novas possibilidades tecnológicas para esta renovação verbivocovisual, há ainda em seu caso a introdução de perspectivas de outros códigos e culturas, e o que me parece especialmente fascinante em seu trabalho é a tentativa permanente, em sua "obra permanentemente em obras", de atingir um equilíbrio entre verbo, voz e escrita, transformar o verbivocovisual em uma espécie de tríade rotativa de ênfases não-hierarquizadas. Neste aspecto, torna-se essencial compreender a importância da performance em seu trabalho, não apenas como prática artística, mas a partir de suas implicações est-È-ticas, quando um poeta decide fazer de seu corpo o eixo de rotação e translação de sua linguagem e de suas intervenções nela e através dela. É por isso que, antes de discutir os textos escritos ou as peças sonoras de Ricardo Aleixo, eu gostaria de falar sobre o seu "poema corporal", que incorpora o visual em todos os seus meandros, a partir do seu poemanto.





Conheço este trabalho, infelizmente, apenas por fotografias e vídeos, mas sinto a necessidade de iniciar este texto de apresentação de certas peças poéticas de Ricardo Aleixo com esta sua criação. No segundo fragmento do poema-ensaio "O Poemanto: Ensaio para Escrever (com) o Corpo", Aleixo escreve:

Movendo-me ali,
na exigüidade espacial
das efêmeras formas escultóricas
produzidas pelas corpografias
que improviso,
tenho vivido situações que,
por ultrapassarem
a dimensão da performance
(como gênero artístico),
projetam-me numa zona
de percepções expandidas,
em nada semelhantes a
experiências vivenciadas
no cotidiano.


Contemplar este vídeo-performance de Aleixo traz imediatamente à mente e ao corpo uma variedade de referências e implicações do trabalho poético:


(Ricardo Aleixo, "des(continuida(des # 1", poema visual e performance com poemanto)


Se pensamos imediatamente em Arthur Bispo do Rosário e seu "Manto para encontrar Deus", (artista que poderia ser visto como um dos mais espetaculares poetas-visuais do pós-guerra) outras referências inundam a mente. Pois, aqui poderíamos mencionar outro aspecto importante da obra de Ricardo Aleixo, aquele que acaba sendo descrito muitas vezes como "etnopoético", seguindo o conceito de Jerome Rothenberg. Em seu segundo livro, A Roda do Mundo (1996), Ricardo Aleixo publicara uma série de poemas para os orixás afro-brasileiros, e observar a performance poética de Aleixo no "poemanto" é adentrar o território poético-xamânico, pensar, ao mesmo tempo, tanto em orixás como Obaluaye ou Omolu, quanto em artistas como o Joseph Beuys da performance "I like America and America likes me" ou o Hélio Oiticica dos "Parangolés". O próprio Aleixo aponta para algumas destas referências em seu texto "O Poemanto...", mencionando Arthur Bispo do Rosário, Hélio Oiticica e comentando a semelhança entre o "Poemanto" e o culto dos eguns.

O que mais me interessa, porém, é o grau inédito de CORPoralidade que encontramos em seu trabalho. Mesmo em Augusto de Campos (ou Arnaldo Antunes) encontramos em grande parte o trabalho "textual-sonorizável", como no maravilhoso "cidade/city/cité". O trabalho sonoro de Ricardo Aleixo afasta-se em grande parte do que eu chamaria de "tentação do transcrevível", fazendo uso da oralidade como manifestação poética em si, menos dependente da escrita que a fixa que do corpo que a produz. Sem buscar hierarquias entre oralidade e escrita, respeitando cada uma em sua manifestação e necessidade/utilidade para o poeta, Ricardo Aleixo vem produzindo uma obra em que o poético só pode ser compreendido em sua multiplicidade, sem gerar contradições entre voz e signo, sem opor a concretude de uma à concretude da outra. Em uma entrevista, perguntado sobre este possível "paradoxo" do poeta sonoro que escreve livros, Aleixo respondeu:

"Não vejo qualquer paradoxo nisso. Proponho a oralidade, ou melhor, a vocalidade, como um elemento composicional tão importante, na confecção do poema, quanto as palavras, os silêncios e tudo o mais. Voz como, ela própria, um dispositivo tecnológico, compreende? Não há, no meu projeto criativo, dicotomia entre a voz e a letra, para retomar aqui o título de uma obra fundante de Paul Zumthor. Ambas são, na melhor das hipóteses, complementares."


Na resposta, Aleixo cita outra referência essencial para o seu trabalho, o estudioso suíço da oralidade/vocalidade, Paul Zumthor. Seu estudo Introduction à la poésie orale (1983) é uma das leituras mais importantes para qualquer poeta interessado na multiplicidade poética que vai além da escrita. No entanto, ainda que Zumthor muitas vezes assuma a posição de ativista anti-literário, chamando nossa atenção para os perigos da hegemonia da escrita e o que ele vê como a consequente opressão da oralidade, Ricardo Aleixo tem buscado uma perspectiva não-hierárquica.

Uma das peças sonoras de Ricardo Aleixo que mais aprecio é o poema sonoro "Ratos podem pensar". O processo de criação deste poema ilumina alguns dos aspectos que venho discutindo. Trabalhando com a própria voz, assim como a voz do músico Benedikt Wiertz, de sua filha Flora, de 5 anos, e sua mãe Íris, o poema é um belíssimo exemplo do trabalho sonoro de Ricardo Aleixo.

Interessa também tomar esta peça para ilustrar como críticos agem, muitas vezes, de forma pueril diante do trabalho poético sonoro e oral, crendo que, ao transcrever o "texto", transportando-o do registro oral para o escrito, podem então julgar este "texto" sob os parâmetros unívocos daqueles que trabalham com o poético-literário.

Baseando-se na simples frase "Ratos podem pensar como os humanos", e trabalhando-a com sua mãe e filha, unindo estas vozes à colagem de material sonoro alheio, esta peça é uma investigação potente e tocante do processo de aquisição e perda da linguagem, pois Aleixo trabalha com sua filha de 5 anos, passando pelo maravilhoso processo de aprendizagem do arcabouço lingüístico da cultura em que nasceu e dos variados usos desta linguagem, e com sua mãe, que passa pelo doloroso processo de perda da linguagem, num avançado estágil da condição primeiramente diagnosticada por Alois Alzheimer em 1901.


("Ratos podem pensar", poema sonoro de Ricardo Aleixo, 2008)

A única fruição possível para esta peça é a sua audição, como deveria ser com toda peça poética baseada na voz, na oralidade, na corporalidade, desmascarando a discussão limitada que ainda é regida no Brasil por literatos que não compreendem a especificidade do trabalho poético-sonoro. Esta peça de Ricardo Aleixo assume forte carga conceitual, sem perder de vista o dictum poundiano de que only emotion endures, numa peça que pede ser compreendida nos termos em que foi composta, abrindo as perspectivas críticas para suas implicações.

Abaixo, a peça sonora "Margens", de Ricardo Aleixo, que trabalha a partir de outro texto conciso, parco, que passa a assumir uma multiplicidade de sentidos com as qualidades de indeterminação apresentadas pela oralidade:


("Margens", poema sonoro de Ricardo Aleixo)

Ricardo Aleixo retoma algumas da estratégias das vanguardas do início do século e do pós-guerra, em um trabalho que se baseia no que chamo de poética de implicações. O uso da colagem sonora liga-o tanto aos poetas do Cabaret Voltaire como aos Lettristes parisienses e a Henri Chopin.

Abaixo, um dos poemas visuais de Ricardo Aleixo, em que o poeta se entrega ao cultivo de texturas sonoras e visuais, cageanamente justapostas. O poeta o descreve nos seguintes termos: "Radiovideoarte. Refilmagem, por meio de dispositivos os mais diversos, de fragmentos de imagens extraídas de trabalhos anteriores do autor. Sons de rádio misturados à antipercussão gerada pela inserção de objetos como papel e isopor no espaço entre os dois microfones de um gravador digital. Finalizado em outubro de 2008."

Mobilestabile from ricardo aleixo on Vimeo.



Seu trabalho literário talvez seja o mais conhecido. Estreou com o livro Festim (1992), publicando nos anos seguintes os livros A Roda do Mundo (1996, em colaboração com Edimilson de Almeida Pereira), Quem faz o quê? (1999), Trívio (2001), A aranha Ariadne (2003) e Máquina zero (2004).

O poeta, que já declarou ter em Augusto de Campos e Sebastião Nunes dois de seus principais mestres, tem marcado seu trabalho poético pelo uso est-É-tico do parco, do pouco, em uma sensibilidade que me parece ir além do "gosto pelo objetivo", mas que parece surgir de uma necessidade espiritual implícita de aceitação e criação ética de um espaço de poesia povera. A exuberância em seu trabalho surge a partir da multiplicidade que consegue unir singeleza e veemência. Em seu primeiro livro, encontramos o poema "Linhas":

incontáveis linhas
como que dispersas
impensáveis línguas
como que dos persas
cruzam-se no infinito:
ou tornam-se linguagem
ou deixam o dito
por não dito

[de Festim, 1992]

Em seu último livro publicado, Máquina Zero (2004), esta poesia assume caráter político de resistência e indignação. Um de seus textos chama-se "Paupéria Revisitada":

Putas, como os deuses,
vendem quando dão.
Poetas, não.
Policiais e pistoleiros
vendem segurança
(isto é, vingança ou proteção).
Poetas se gabam do limbo, do veto
do censor, do exílio, da vaia
e do dinheiro não).
Poesia é pão (para
o espírito, se diz), mas atenção:
o padeiro da esquina balofa
vive do que faz; o mais
fino poeta, não.
Poetas dão de graça
o ar de sua graça
(e ainda troçam
na companhia das traças
de tal “nobre condição”).
Pastores e padres vendem
lotes no céu
à prestação.
Políticos compram &
(se) vendem
na primeira ocasião.
Poetas (posto que vivem
de brisa) fazem do No, thanks
seu refrão.


[de Máquina zero, 2004]


Muito poderia ainda ser dito sobre o trabalho de Ricardo Aleixo, mas o espaço de um blog não permite grandes incursões mais profundas. Melhor é disponibilizar e reunir para os leitores/espectadores/ouvintes algumas das peças escritas, sonoras e visuais de Ricardo Aleixo, este poeta "reverbvocovisual" e "multimedieval".

---nota de Ricardo Domeneck.

§

Abaixo, apresentamos poemas visuais e escritos de Ricardo Aleixo,
com três poemas inéditos.


TRÊS POEMAS INÉDITOS DE RICARDO ALEIXO:



Cabeça de serpente

a serpente morde a própria cauda. a serpente pensa que morde a própria cauda. a serpente apenas pensa que morde a própria cauda. a serpente morde a própria cauda que pensa. a serpente morde a própria cauda suspensa. a serpente pensa que a própria cauda morde. a serpente pensa com a própria cabeça. a serpente sonha que simula o próprio silvo. a serpente sonha ser outra serpente que simula o próprio sonho e silva. a serpente pensa e silva selva adentro. a serpente sonha que pensa e no sonho pensa que as serpentes sonham. a serpente pensa que sonha e no sonho pensa o que as serpentes pensam. a serpente morde sem pensar no que pode. a serpente pensa que morde a própria causa. a serpente pensa e morde em causa própria. a serpente pensa e morde apenas o que pensa. a serpente pensa que pensa e morde o que pensa. a serpente morde o que pensa e o que morde. a serpente pensa o que pensa a serpente. a serpente se pensa enquanto serpente. a serpente se pensa enquanto ser que pensa. a serpente pensa o que pensam as serpentes. a serpente morde o que pensa a serpente. a serpente morde o que mordem as serpentes. a serpente morde o que pode. a serpente pensa em se morder. a serpente morde sem pensar o que pode. a serpente morde sem pensar o que morde o que pode. a serpente morde o que morde. a serpente morde enquanto pode. a serpente pensa sem palavras. a serpente só não pensa a palavra serpente. a serpente só não morde a palavra serpente. a serpente pode o que pode sem palavras. a serpente morde o que pode sem medir palavras. a serpente mede de cabo a rabo a própria cabeça. a serpente emite a própria sentença. a serpente morde a própria cabeça


[de Modelos vivos, inédito]


§§§


Estrondo

para Maria Esther Maciel


Naquele entrecho
mais lento dos
dias, aqui, onde,

não importa o
modo como os pés
pisem as folhas

ao caminhar, o
barulho quebradiço
da sombra deles

(espraiada entre
a calçada e as
pedras-escombros

da casa) bem poderia,
se ouvido por
uma detalhista

como você, ser
chamado de troar,
estouro, estrondo.


[de Modelos vivos, inédito]


§§§


Noite


O menino viu
sair da boca

da mulher, talvez
sua mãe, uma voz

estrídula e lábil, que
logo desandou,

em cadência
de sonho, a quê?

– A enumerar desas-
tres já ocorridos

e por ocorrer,
a fecundar

harpias, a frisar
as marcas

da passagem
da pantera pelo quarto,

a aturdir relógios,
a enegrecer o sol

e outras mais
de tais proezas.


[de Modelos vivos, inédito]


§§§

Poema visual-sonoro de Ricardo Aleixo:



Real irreal from ricardo aleixo on Vimeo.
("Real irreal", Ricardo Aleixo. Videopoema. Direção, câmera, edição, poema, voz e sound design: Ricardo Aleixo. 2008)

§§§


Texto de Ricardo Aleixo,
acompanhando uma tradução de Hans Magnus Enzensberger
em seu blog:



Este poema não é meu. Este é um poema escrito pelo alemão Hans Magnus Enzensberger. Este é um poema que eu não posso ler no original. Este é um poema que só posso ler em português. Este não é um poema português. Este é um poema escrito em alemão por um alemão e traduzido para o português falado no Brasil por Kurt Scharf (um alemão?) e por (um brasileiro?) Armindo Trevisan. Este é um poema que decidi postar no meu blogue. Este poema agora é meu. Este é um poema que você está lendo como se fosse seu. Este poema é seu.


§§§


Monovolume: liberdade em ângulo




Mary Vieira grafa a concreto
o discurso reto
do mito
da liberdade do homem
numa praça da cidade vazia
(com seus mais de dois milhões
de habitantes)
onde todo mundo
conhece todomundo
mas faz que não
que nunca nem viu antes, vi
vo

[de Festim, 1992]


§§§


Poética


Aprendi com Valéry
um pouco disto que faço:
“Eu mordo o que posso”
(palavra, carne ou osso)
Me acho
me acabo de vez
me disfarço

[de Festim, 1992]

§§§

Cine-olho


Um
menino
não.
Era
mais
um
felino
um
Exu
afelinado
chispando
entre
os
carros
-
um
ponto
riscado
a
laser
na
noite
de
rua
cheia
-
ali
para
os
lados
do
Mercado.



[de A roda do mundo, 1996]


§§§


Xangô


O que
lança pedras
de raio
contra a casa
do curioso
e congela
o olhar do
mentiroso.
Leopardo,
marido de Oiá.
Leopardo,
filho de Iemanjá.
Xangô cozinha
o inhame
com o vento
que sai
de suas ventas.
Dá um nome novo
ao muçulmi.
Ele fica vivo
quando pensam
que já está morto.
Orixá que mata
o primeiro
e mata
o vigésimo-
quinto.
Xangô persegue
o cristão
com seu grito,
nuvem
que ensombra
um canto do céu.
Leopardo
de olhar coruscante,
não permitas
que a morte
me leve
um dia
antes.

[de A roda do mundo, 1996]


§§§


Mamãe grande


todas
as águas do mundo são
Dela. fluem
refluem nos ritmos
Dela. tudo que vem.
que revém. todas
as águas
do mundo são
Dela.
fluem refluem
nos ritmos Dela.
tudo que
vem. que revém.
todas as águas
do mundo
são Dela. fluem
refluem
nos ritmos Dela. tudo
que vem.
que revém.


[de A roda do mundo, 1996]

§§§


Mesmo esta agora, é


Nunca pude escrever nem uma
única linha sobre as casas onde morei.
Nunca, para você ter uma idéia,
alguma delas amanheceu com
estrondos, fendas inexplicáveis ou um
gato degolado junto às rosas
e à pequena horta.

Eram casas, apenas. Estruturas,
antienigmas, pedras encimando
pedras. Mesmo esta, agora, é
uma mera máquina de signos –
demasiado gastos para que se extraia
dela, na melhor das hipóteses, mais
que uma outra (mera) máquina de
signos gastos.


[de Trívio, 2001]


§§§


Dedicatória


Prefiro a paciente
proeza das traças,

meu caquético rapaz,
aos versinhos

bem traçados
dos quais

te mostras capaz
(assépticos e sérios

como os de
ninguém mais).

Ah! Ler-te é
penetrar na paz

dos cemitérios.
Pelo modo como caminhas,

nota-se que ainda
respiras, mas

já entreleio,
junto aos títulos

dos teus livros,
os dois precisos

vocábulos
("Aqui jaz")

com que, um dia,
te saudarão os vivos.


[de Máquina zero, 2004]

§§§


Máquina zero


Quarto dia: entendo que o q
ue preciso, se q

uero mesmo continuar a p
erambular com alguma chance de êxito p

or uma cidade ( duas ) como Berlim, é
de sapatos de largo fôlego. Caminho ( penso e

nquanto caminho ), permeável a t
udo: ao frio sol cortante, às crianças t

urcas com seu comércio informal de b
rinquedos usados, à b

eleza sem rumo da adolescente que ( longas p
ernas abertas sobre um p

rosaico selim de bicicleta ) c
avalga o c

omeço da tarde, aos grafites que “d
ariam belas fotos”, à Topografia d

o Terror, às ruínas, ao r
asta que me saúda ( “R

asta!” ) na Wilhelmstrasse, às l
ascas do Muro na vitrine da pequena l

oja, ao a
marelo-zoom do metrô a

pontando na curva a
ntes do teatro, à

História,


[de Máquina zero, 2004]

§§§§

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Lançamento em Belo Horizonte: novo livro de Eduardo Jorge e terceiro número da "Modo de Usar & Co." - hoje à noite, 11 de janeiro de 2012


Ocorre hoje em Belo Horizonte o lançamento de PÁ, PUM. (Belo Horizonte: Tipografia do Zé, 2012), de Eduardo Jorge & Lucila Vilela, mais um livro da Coleção Elixir, dirigida pelo poeta belorizontino Ricardo Aleixo em colaboração com o designer gráfico Flávio Vignoli, da Tipografia do Zé.

A Coleção Elixir já lançou trabalhos de nomes como Gláucia Machado, Guilherme Mansur e Paulo Bruscky, sempre pequenas tiragens artesanais de livros inéditos de poetas contemporâneos. No lançamento de PÁ, PUM. será apresentada a performance homônima, a cargo dos autores e de Ricardo Aleixo.

O lançamento é hoje, 11 de janeiro de 2012, em Belo Horizonte na Avenida Augusto de Lima, 233 - Loja 64.

Por generosidade de Eduardo Jorge e Ricardo Aleixo, ocorrerá no evento também um pequeno lançamento belorizontino do terceiro número impresso da Modo de Usar & Co., que traz, como já divulgamos, textos dos seguintes poetas:

Angélica Freitas
Cecília Pavón
Charles Pennequin
Charles Reznikoff
Christian Prigent
Dirceu Villa
Emmanuel Hocquard
Érica Zíngano
Érico Nogueira
Fabiana Faleiros
Fabiano Calixto
Fabrício Corsaletti
Gertrude Stein
Helmut Heissenbüttel
Inês Cardoso
John Ashbery
Júlia Hansen
Kenneth Koch
Leandro Rafael Perez
Leonardo Gandolfi
Liv Nicolsky
Marcelo Sahea
Marco Catalão
Marília Garcia
Mario Sagayama
Nathalie Quintane
Paula Glenadel
Renan Nuernberger
Reuben da Cunha Rocha
Ricardo Domeneck
Roberto Bolaño
Rodolfo Caesar
Rodrigo Álvarez
Rodrigo Damasceno
Rosmarie Waldrop
Rui Camargo
Tiago Pinheiro
Vicente Huidobro
Victor Heringer
Violeta Parra
Walter Gam



Avisamos que são pouquíssimos exemplares. Chegue cedo e garanta seu exemplar, da Modo 3 e do livro de Eduardo Jorge e Lucila Vilela.

abraço,

Os editores.


.
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quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Ricardo Aleixo manda avisar:

Modelos vivos sai da gráfica nos próximos dias, diretamente para as bem fornidas estantes da Crisálida Livraria e Editora, no edifício Maleta – e, esperamos, para as de outras boas casas do ramo de qualquer parte do Brasil. O lançamento será no dia 11 de setembro, sábado, a partir das 11h, na livraria Café com Letras (rua Antônio de Albuquerque, 781, Savassi). Na terça-feira, dia 14, às 19h30, no mesmo local, comemoro meus 50 anos, apresento a leitura-concerto* Música para modelos vivos movidos a moedas e abro uma pequena mostra de poemas visuais extraídos do livro. --- Ricardo Aleixo

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terça-feira, 22 de junho de 2010

Digitalizando as perguntas, digitalizando as respostas

"No fear", do duo AIDS-3D


Amanhã, quarta-feira, dia das intervenções semanais que nosso coletivo organiza, temos como convidados especiais em nossa SHADE inc o duo AIDS-3D, formado pelos jovens norte-americanos Daniel Keller, nascido em Detroit, e Nik Kosmas, nascido em Minneapolis, ambos em 1986. Eles vivem em Berlim há cerca de dois anos. O duo faz parte de uma geração de jovens artistas que primeiro tornou-se conhecida na Internet, conquistando seu primeiro espaço em revistas eletrônicas, plataformas digitais, para então passar a receber convites para galerias e bienais. Tem se tornado comum, por exemplo, que videoartistas mostrem primeiro em portais como o Youtube ou Vimeo suas intervenções em vídeo, para depois mostrá-las em galerias ou espaços institucionais.


(O duo AIDS-3D na Bienal de Veneza, em 2009)

O trabalho dos meninos do AIDS-3D é um tanto inclassificável. Em sua página eletrônica, encontramos faixas de música, fotos de instalações e esculturas, mas sua "fama" reside mais em suas instalações em 3D, investigando novas (e também velhas) possibilidades através da arte digital. As discussões aqui seriam intermináveis, sobre mimese, simulacro, e todos conceitos que já se tornaram comuns em discussões da arte contemporânea. Amanhã, eles prometem um concerto sobre nosso palco, mas com elementos visuais e digitais.


("Jerusalem 2012", performance holográfica do duo AIDS-3D)

§


As possibilidades da arte digital me interessam muito, assim como aos meus colegas no coletivo. O vídeo digital é central, por exemplo, para o trabalho do meu comparsa de coletivo Niklas Goldbach, que o usa para criar alertas pré-distópicos, numa espécie de Apocalipse Yesterday, contra a sociedade uniformizada e gentrificada que está se formando, clara distopia que tenta esconder-se sob lemas como o de "liberdade de mercado".


("Intruders", de Niklas Goldbach, 2007)


No trabalho de outro comparsa do coletivo, Daniel Reuter, a arte digital mistura-se com a performance e a instalação. No meu caso específico, tenho usado as possibilidades digitais, na verdade, para retornar a antigas poéticas da tradição, que acabaram desprestigiadas pela cultura literária, que Paul Zumthor chamaria, na verdade, de livresca. Meu uso das possibilidades digitais ocorre na tentativa de pesquisar elementos que estão na tradição poética há séculos. Alguns críticos ainda se prendem muito à questão do "novo", quando falam das "novas possibilidades digitais", mas não creio que haja contradição em usar as novas possibilidades digitais para investigar poéticas milenares, ligadas à oralidade e à performance. Já tentei cunhar os termos "multimedieval" ou "mídiaval", para deixar claro que minha poética está ligada à poética medieval, uma tradição que foi esquecida ou muitas vezes distorcida pelas ondas de neoclassicismo posteriores. Uso a arte digital para pesquisar uma est-É-tica que remonta a poetas como Taliesin (534 - 599), Guilherme IX da Aquitânia (1071 – 1126), Arnaut Daniel (1150 - 1210) ou Guido Cavalcanti (1250 - 1300), e então, a partir deles, até chegarmos aos grandes resgatadores da poética medieval: os dadaístas, como Hugo Ball e Kurt Schwitters.


(Ricardo Domeneck - "Six songs of causality", ao vivo no Espai d´Art Contemporani, em Castelló, Valência, Espanha) ---- poética que eu gostaria de crer "multimedieval", ou pelo menos herdeira, mesmo que indigna, dos poetas medievais, seja de um "britânico" como Taliesin, um islandês como Egill Skallagrímsson ou um occitano como Raimbaut de Vaqueiras.)

É um pouco irritante quando críticos perdem tanto tempo com essa discussão sobre o que é "novo" e o que não é, como se isso encerrasse o debate crítico ou fosse o valor mais importante de um trabalho, essa crença confusa e ingênua de que as vanguardas históricas eram meras buscas por cheap thrills novidadeiros. Muitos destes críticos sequer têm um conhecimento verdadeiro da poesia medieval, das poesias fora dos centros europeus, ou da poesia sonora contemporânea.

A noção de vanguarda propagada no Brasil ainda se concentra nesta militarização linearizante da história poética, algo que os poetas concretos, por quem tenho tanto respeito, não ajudaram a dissipar.

Entre os poetas brasileiros trabalhando com novas possibilidades tecnológicas, alguns as usam para retornarem a poéticas milenares, da oralidade e performance, como é o caso do poeta mineiro Ricardo Aleixo, que usa o vídeo muitas vezes para registrar trabalhos poéticos que passam pelas vanguardas históricas para se alojarem em poéticas ligadas, por exemplo, aos griots africanos. Isso ocorreu, no Brasil, muito mais entre "artistas visuais" que entre poetas, e penso aqui em Arthur Bispo do Rosário, Hélio Oiticica, Lygia Clark e José Leonilson. Dentre os poetas trabalhando nesta linha, poderíamos mencionar Marcelo Sahea, Márcio-André, Wladimir Cazé, entre alguns outros.



(Ricardo Aleixo, "descontinuidades número 1")


Augusto de Campos foi, entre os concretistas, o que mais investigou as possibilidades de uso de novas tecnologias e técnicas. Em alguns casos, como em poemas como "lygia finge" e outros daquela época, sua poética está completamente ligada à est-É-tica medieval, creio, algo que Eduardo Sterzi discutiu de forma muito interessante em seu ensaio para o volume Sobre Augusto de Campos (Rio de Janeiro: 7Letras, 2004), com organização de Flora Süssekind e Júlio Castañon Guimarães.


("dias dias dias", texto de Augusto de Campos, oralizado por Caetano Veloso)


Philadelpho Menezes (1960 - 2000), assim como hoje em dia Ricardo Silveira e André Vallias, entre outros, pesquisam de forma bastante assídua o que se poderia chamar de renovação com o uso das novas tecnologias, seja em termos de criação como de distribuição. A revista Errática, editada por Vallias, é uma plataforma valiosa para esta poética no Brasil.

Na Europa, o uso de novas tecnologias passa por alguém como Henri Chopin, que usou fitas magnéticas para retornar ao elemento mais primordial da poesia: a respiração antes da palavra, ou sua união em vocábulo.


(Henri Chopin no Festival de Poesia de Berlim, em 2003)

Outros, ainda na França, como o veterano Bernard Heidsieck e os mais jovens Christophe Fiat e Anne-James Chaton, usam a poesia oral e sonora para praticar uma poética que já chamei de pós-bárdica.


(Anne-James Chaton, "évênement nº1", ao vivo em Barcelona, 2001)


E há ainda os que têm investigado poéticas que são, ao mesmo tempo, milenares e novas, como é o caso do austríaco Jörg Piringer. Este vídeo-poema abaixo, de 2004, parece-me uma peça de poética pré-distópica, e bastante assustadora, pessoalmente, desde a primeira vez que a vi. É uma das maneiras como imagino o fim do mundo.



(Jörg Piringer, "Broe Sael", 2004)


Novos ou tradicionais, estas são todas poéticas NECESSÁRIAS. Junto com aqueles poetas excelentes que se mantêm sobre a página, pesquisando as muitas e múltiplas possibilidades da escrita, como Juliana Krapp, Angélica Freitas, Érico Nogueira, Dirceu Villa, Marco Catalão, João Filho, Eduardo Jorge, Marília Garcia, Fabiano Calixto, Diego Vinhas, Carlito Azevedo, Marcos Siscar, e tantos outros. Este texto não é proposta de canonização. Parafraseando Drummond:

PRECISAMOS DE TODOS.




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quinta-feira, 19 de março de 2009

A voz contra a mão e esta contra a voz?

por Ricardo Domeneck

Como combater o hábito ocidental, já tão enraizado, de compartimentar o plural até que este se torne dual, cavar uma trincheira que o divida e erigir o monolito de outra dicotomia? Não quero retornar ao velho debate brasileiro da letra-de-música X poema. Também não compartilho do fervoroso ativismo anti-literário de Zumthor, por exemplo. Nem pretendo fazer uma defesa da oralidade contra a escrita, tentando instituir a naturalidade de uma sobre a artificialidade da outra. Ora, natureza é discurso e artifício. Linguagem. Produtor de texto: poeta. Cristalizado em escrita, fluindo em oxigênio e gás carbônico, suor da mão, gotículas de saliva.



VERSUS





§

É claro que, muitas vezes, não se percebe que o trabalho com a oralidade requer o mesmo rigor e estudo que o trabalho com a escrita exige. Os poetas literários não têm, em geral, preparo vocal para a leitura de seus próprios poemas.

Há o medo da retórica, o medo do discursivo.

Há poetas literários, porém, com leituras excelentes de seus textos, como Giuseppe Ungaretti e Charles Olson. São exemplos de leituras que vivificam o texto.


(Giuseppe Ungaretti lê o poema "Inno alla morte")



(Charles Olson lê "Maximus to Gloucester, Letter 27 [withheld]", 1966)

Percebe-se claramente a filiação bárdica de Olson. Foi o homem, afinal, que defendeu a respiração do poeta como base rítmica para a escrita.

§

É claro que muitas características do poema transformam-se no processo de oralização, assim como certas possibilidades poéticas intrínsecas do trabalho oral se perdem na página. Tomemos um exemplo extremo: um poema de Augusto de Campos:



O vídeo, aqui, oferece um suporte de união para o oral e o escrito.



É interessante notar que Augusto de Campos escreve que tudo está dito e, em seguida, que tudo está visto. Oralizado, o poema se transforma e perde toda a sua carga visual, é verdade. O difícil equilíbrio triplo do verbo, do vocal e do visual?

Já com um poema como "cidade/city/cité", uma vez ouvido, percebemos que sua existência na página é incompleta, trata-se de um texto que exige oralização:


(Augusto de Campos - "cidade/city/cité", texto de 1963, performance de 1985)

§

A voz a doar tantos ápices ao literário.

Como os poemas dos provençais? Ora, seguiremos olvidando
que os grandes textos literários de Arnaut Daniel eram letras-de-música?
Estou a blasfemar ou voltaremos a ouvi-los?


::: Arnaut Daniel :::: performance moderna para o poema "Lo ferm voler qu'el cor m'intra", de Arnaut Daniel, ressuscitado por musicólogos especialistas na poesia-música medieval, aqui guiados pelo grande Thomas Binkley (1932 - 1995):::

Uma das primeiras sextinas.
Alta literatura e letra-de-música.
Poesia oral, poesia escrita.
Parâmetros para uma poesia verdadeiramente verbiVOCOvisual.

§

Dois grandes exemplos modernos de harmonia de composição, reunindo escrita e oralidade: Gertrude Stein e Ghérasim Luca:

Gertrude Stein - "If I told him - a completed portrait of Picasso" from Revista Modo de Usar on Vimeo.


(Gertrude Stein - "If I told him: A completed portrait of Picasso")


(Ghérasim Luca - "Passioneément")

§

Medo do discursivo? Prefiro os que têm coragem de enfrentá-lo.

Uma das características mais interessantes dos poetas em torno da revista L=A=N=G=U=A=G=E é justamente a investigação que fazem sobre o "discurso", dissecando-o e minando-o por dentro: tática de guerrilha.

Discursivo ou anti-discursivo, o poema abaixo?:

Elegy
Lyn Hejinian

I am writing now in preconceptions
Those of sex and ropes
Many frantic cruelties occur to the flesh of the
.......imagination
And the imagination does have flesh to destroy
And the flesh has imagination to sever
The mouth is just a body filled with imagination
Can you imagine its contents
The dripping into a bucket
And its acts
The ellipses and chaining apart
The feather
The observer

The imagination, bare, has nothing to confirm it
There's just the singing of the birds
The sounds of the natural scream
A strange example
The imagination wishes to be embraced by freedom
It is laid bare in order to be desired
But the imagination must keep track of the flesh
.......responding--its increments of awareness--a
.......slow progression
It must be beautiful and it can't be free

§

Elegia

Eu agora escrevo em preconcepções
Aquelas de sexo e cordas
Muitos frêmitos violentos ocorrem à carne da
.......imaginação
E a imaginação tem em verdade carne a destruir
E a carne tem imaginação a lacerar
A boca é apenas um corpo preenchido de imaginação
Você pode imaginar seus conteúdos?
O gotejar a um balde
E seus atos
As elipses e encadeamento à parte
A pluma
O expectador

A imaginação, vazia, nada possui que a confirme
Há apenas o cantar dos pássaros
Os sons do grito original
Estranho exemplo
A imaginação deseja ser abraçada pela liberdade
É esvaziada para poder ser objeto de desejo
Mas a imaginação precisa da observância à carne
.......em resposta – seus incrementos de vigilância – uma
.......progressão vagarosa
Precisa ser bela e não consegue libertar-se

(tradução de Ricardo Domeneck,
publicada no número de estréia da revista
Modo de Usar & Co.)

§

__ Quem é sua cantora favorita?

__ Safo.

§


Mas é um equívoco associar, tão apressadamente, oralidade com discursividade, e esta com frouxidão da escrita. Exemplo drástico para possível ilustração do argumento: o poeta menos retórico que conheço é um poeta sonoro --- o francês Henri Chopin. Ouça o poema "L´énergie du sommeil":



(Henri Chopin, apresentando seu trabalho em Berlim, 2003)

§

Seria possível, no entanto, acusar alguém como Bernard Heidsieck de ser "demasiado discursivo"?


(Bernard Heidsieck, performance em Paris.)

§

Ora, isso acontece quando julgamos a poesia CORPoral sob parâmetros literários.

São trabalhos distintos e ambos são trabalhos poéticos... é o que Paul Zumthor chamava de "hegemonia da escrita" em nossa cultura que faz com que todos os outros trabalhos poéticos recebam rótulos

poesia "sonora"
poesia "em vídeo"
poesia "visual"

enquanto apenas a poesia "escrita" (ou poesia "literária") reserva-se o direito de não usar seu rótulo
e auto-proclamar-se POESIA simplesmente.

É uma questão de ênfase (ou, se quisermos politizar a discussão, de hegemonia).

§

Não há por que criar uma oposição entre trabalhos que investigam diferentes ângulos da poesia.

Veja/ouça bem:

por exemplo, quando se discute no Brasil se letra-de-música é poesia, o que se está perguntando, na verdade, é se um texto composto para a voz pode funcionar como Literatura. A pergunta parece-me simplesmente errada, desde o princípio. Um texto para a voz não tem a menor obrigação de também funcionar como Literatura. Se o faz, ao ser transplantado para a página, torna-se um texto literário e pode ser julgado como tal, mas a atividade me parece muitas vezes pueril.

Não consigo deixar de ter o mesmo respeito por poemas líricos (que nos acostumamos a chamar de cançoes) como os de Beth Gibbons, a poeta associada ao coletivo Portishead, quanto pela pesquisa de Edmond Jabès, a que ele chamava de "busca pela autoridade perdida do Livro".


(Beth Gibbons - "Cowboys", um dos grandes poemas dos anos 90, aqui acompanhada pelo Portishead.
A propósito: a tradição de poetas com acompanhamento musical é algo antiquíssimo.)

Edmond Jabès, em tradução de Caio Meira:

O livro seria, assim, apenas o espaço
circunscrito pela palavra aberta à palavra.
Não somos escritos onde ela se escreve,
mas inscritos onde ela se apaga.
Há uma linguagem própria que a inscrição
tumular nos impõe e nos força ao silêncio.
Pesado silêncio em busca de um signo.
Ah! outro - homem, mundo, Deus - mais nós
mesmos do que poderíamos sê-lo no
segredo de nossas confissões; palavra
de uma palavra à qual não ousamos
ligar nosso nome; pois se somos
tributários dela, ela, contrariamente,
mais nos escapa do que nos pertence.
Brancura, brancura de sangue.
Séculos de orgulho e de derrotas
jazem no vocábulo. Você
os desperta ao revelá-lo.
Um livro se entreabre
quando nos abandonamos.


§

A voz pode muitas coisas que a escrita não pode, e vice-versa.

Há textos que foram criados, pensados para a página, e adquirem ali seu potencial (quase) completo. Já cheguei a chamar o "Coup de dès" de Mallarmé de coroamento da poesia como escrita, poesia literária, talvez um poema para os olhos, mais que para os ouvidos. Daí a fascinação do grupo Noigandres? Há poetas, no entanto, em que a voz parece estar implícita no texto, recuperando os volteios do oral. Algo como os poemas, por exemplo, de Frank O´Hara, ainda que o próprio O´Hara não me pareça um grande leitor de seus próprios poemas:

Having a coke with you
Frank O´Hara

is even more fun than going to San Sebastian, Irún, Hendaye, Biarritz, Bayonne
or being sick to my stomach on the Travesera de Gracia in Barcelona
partly because in your orange shirt you look like a better happier St. Sebastian
partly because of my love for you, partly because of your love for yoghurt
partly because of the fluorescent orange tulips around the birches
partly because of the secrecy our smiles take on before people and statuary
it is hard to believe when I’m with you that there can be anything as still
as solemn as unpleasantly definitive as statuary when right in front of it
in the warm New York 4 o’clock light we are drifting back and forth
between each other like a tree breathing through its spectacles

and the portrait show seems to have no faces in it at all, just paint
you suddenly wonder why in the world anyone ever did them
.................................................................................I look
at you and I would rather look at you than all the portraits in the world
except possibly for the
Polish Rider occasionally and anyway it’s in the Frick
which thank heavens you haven’t gone to yet so we can go together the first time
and the fact that you move so beautifully more or less takes care of Futurism
just as at home I never think of the
Nude Descending a Staircase or
at a rehearsal a single drawing of Leonardo or Michelangelo that used to wow me
and what good does all the research of the Impressionists do them
when they never got the right person to stand near the tree when the sun sank
or for that matter Marino Marini when he didn’t pick the rider as carefully
.................................................................................as the horse
it seems they were all cheated of some marvellous experience
which is not going to go wasted on me which is why I’m telling you about it






Tomar coca-cola com você (transcontextualização de Ricardo Domeneck)

é ainda mais divertido que ir a São Francisco, La Jolla, Tijuana, Tecate, Ensenada
ou ter o estômago revirado de enjôo na Madison Avenue em Nova Iorque
em parte porque nesta camisa laranja você me parece um São Francisco melhor mais feliz
em parte por causa do meu amor por você, em parte por causa do seu amor por vodca
em parte por causa das margaridas laranjas fluorescentes cercando os ipês
em parte por causa do mistério que nossos sorrisos vestem diante de gente e estatuaria
é difícil de acreditar quando estou com você que pode haver algo tão imóvel
tão solene tão desagradavelmente definitivo quanto estatuaria quando bem em frente
no ar quente das quatro da tarde em São Paulo nós vagamos em círculos um entre o outro
sem parar como uma árvore respirando por suas oftálmicas

e a exposição de retratos parece não ter qualquer rosto, só tinta
você de repente pergunta-se por que diabos alguém deu-se ao trabalho de fazê-los
.................................................................................eu olho
você e preferiria olhar você a todos os retratos do planeta com exceção
talvez do
Auto-Retrato com corrente de ouro de vez em quando que está no MASP
a que graças aos céus você ainda não foi então podemos ir juntos pela primeira vez
e o fato de que você se move tão lindo resolve mais ou menos o Futurismo
assim como em casa eu nunca penso no
Nu Descendo uma Escada ou
num ensaio um único desenho de Da Vinci ou Michelangelo que antes me boquiabria
e de que adianta aos Impressionistas toda a sua pesquisa
quando eles nunca conseguiam a pessoa certa para encostar-se à árvore ao pôr-do-sol
ou a propósito Marino Marini se ele não escolheu o cavaleiro com o mesmo cuidado
.................................................................................que o cavalo
é como se eles tivessem sido fraudados em alguma experiência maravilhosa
que eu não pretendo desperdiçar o motivo pelo qual estou aqui falando tudo isso para você


§
§

É legítimo que um poeta decida trabalhar apenas com a escrita,
é legítimo que um poeta decida trabalhar apenas com a oralidade.

Em minha busca pelo borrar de fronteiras e delir de dicotomias, interesso-me pelos que vivem em guerra com a alfândega entre as duas. Há, no Brasil de hoje, bons exemplos destes poetas, como Arnaldo Antunes, Ricardo Aleixo e Marcelo Sahea.


(Arnaldo Antunes - "O mar")

§

Real irreal from ricardo aleixo on Vimeo.


(Ricardo Aleixo - "Real irreal")

§


(Marcelo Sahea - "2415")

§
§

Ao mesmo tempo, fascina-me a pesquisa daqueles poetas que seguem trabalhando com o TEXTUAL sobre a página, investigando as falhas nas malhas do discurso:

Classificação da secura
Marília Garcia

I

agora já é quase amanhã mas queria
dizer apenas que é muito
tarde: acrescentar quatro horas ao relógio
indica que já é depois. lá é sempre
depois. parecia um nome
italiano com aquele som ecoando e a
resposta em outra língua mostrava
a cor das linhas no mapa,“é lilás”, para
não dizer algo preciso
para não terminar: com ela
saio cedo todos os dias. fico de
vez em quando escondido
no porto. tomarei
o transmediterrâneo e comerei
calçots,
.....................................até chegar o instante antes
do instante
, momento em que olha para o relógio
e diz: não. já conhece todos os erros
do sistema e a retina derretendo
sempre que levanta
.....................................para sair dali.
(precisão é o retângulo do degrau
inferior.)

II.

alguém que não consegue se mover
e uma semana de vozes cortadas, deve
se acostumar aos movimentos em câmera
lenta, à descida pela escada em
espiral:
................recorta os sons
de cada quarto e apaga as
perguntas que mais detesta
responder. como aquela noite
no ônibus, ruídos do rádio e
pedaços de frases atiradas,
sempre girando as horas.
........................................ver a paisagem
sem ela e precisar o tamanho da ausência
com poucos dados. sabe que as baleares ficam
do outro lado do mar, e custa muito chegar
anos depois e dizer. ergue os olhos para
fixar o que tem ali e não perder
de vista a secura.

§

E por que impediríamos o estritamente sonoro?


(Philadelpho Menezes - "Poema não música")

O estritamente visual?


(Joan Brossa - "Eclipse")

Os títulos contam?
Existe o estritamente textual? Ou todo texto implica voz e olho?

§


Pluralidade de pesquisa segue sendo o caminho para uma poesia que se orgulha de cada um dos seus cinco sentidos.

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