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domingo, 26 de setembro de 2010

Cuidado com os anos de 13 luas, avisa mestre Fassbinder

Quando eu me mudei para a Alemanha, no começo desta década que agora se encerra, já trazia do Brasil em minha bagagem mental alguns mestres pessoais que eram alemães. De forma bastante clara, Walter Benjamin (1892 - 1940), e Bertolt Brecht (1898 - 1956). O pensador berlinense passou a ser presença determinante em meus pensamentos desde que li alguns de seus ensaios traduzidos para o português, lá pelos idos de 1997, quando tinha uns 20 anos. Brecht tornou-se uma presença forte em minha vida a partir do meu primeiro ano na Universidade de São Paulo, onde estava matriculado como estudante de filosofia, mas onde passei a frequentar um grupo de estudos da Faculdade de Artes Cênicas, que se reunia todas as quartas-feiras para ler e discutir uma peça de Brecht, até lermos todas. Este grupo viria a se tornar a Tribo de Teatro Tumutupugá, que teve uma importância gigantesca em minha vida. Vale lembrar que, no final da década de 90, o grupo teatral paulistano Companhia do Latão havia se lançado em uma verdadeira cruzada brechtiana em meio à Paulicéia.

Mais tarde vieram Joseph Beuys (1921 - 1986), com seu conceito de escultura social, e Eva Hesse (1936 - 1970), com sua brilhante manipulação de materiais, na qual eu enxergava elementos para minha busca da corporalidade poética. Estes dois artistas funcionavam como a parelha alemã de minha admiração por Lygia Clark (1920 - 1988), e Hélio Oiticica (1937 - 1980).

No início desta década viriam então, com grande força, a presença de austríacos como o gigantesco SALVE SALVE Ludwig Wittgenstein (1889 - 1951), o poeta H.C. Artmann (1921 - 2000), o cineasta Michael Haneke.

Minha primeira reação e relação com o trabalho de Rainer Werner Fassbinder (1945 - 1982) foi tumultuosa, negativa. Os primeiros filmes a que assisti foram Liebe ist kälter als der Tod {O amor é mais frio que a morte} (1969) e Händler der vier Jahreszeiten {Negociante das quatro estações} (1971), que me pareceram, com o perdão da palavra, chatos, nouvellevagueanos em um sentido negativo, copioso. Mesmo um filme como Götter der Pest {Deuses da peste} (1969), filmado entre os dois que mencionei, ainda mostra certos trejeitos godardianos, em minha opinião. Mas é no ano seguinte (ele trabalhava em cerca de 3 ou 4 filmes por ano) que Fassbinder dirigiria, baseado em uma peça teatral sua, um dos meus filmes favoritos, e aquele que faria com que eu retomasse toda a sua filmografia com outros olhos: o estupendo e completamente Fassbinder Die bitteren Tränen der Petra von Kant {As lágrimas amargas de Petra von Kant} (1972). Nele, a visão extremamente negativa e cheia de cicatrizes com que Fassbinder contemplava as relações amorosas chega a um de seus ápices do sarcasmo, a mesma que ele já demonstrara em sua peça Tropfen auf heisse Steine {Gotas d´água em pedra escaldante), que seria mais tarde muito bem filmada por outro diretor homossexual, o francês François Ozon. Em Petra von Kant, as cores berrantes que Pedro Almodóvar passaria a usar aparecem com uma década de antecedência, mas sem o humor do espanhol. Fassbinder, como Pasolini, sempre foi um mestre da observação detalhada da crueldade entre os humanos, de como o amor se torna um jogo de poder e dominação.


Die bitteren Tränen der Petra von Kant {As lágrimas amargas de Petra von Kant} (1972), de Rainer Werner Fassbinder


A importância do papel desempenhado por Rainer Werner Fassbinder na Alemanha das décadas de 60 - 80 é inestimável, talvez comparável apenas à influência de Joseph Beuys, dois dos intelectuais e figuras públicas mais fascinantes do país naquele período. Sua coragem em atacar as hipocrisias nacionais, sem medo de ofender a direita ou a esquerda, só pode ser comparada na literatura e cinema da Europa do pós-guerra à coragem de outro intelectual homossexual, o italiano Pier Paolo Pasolini.

O motivo desta postagem na verdade é que assisti, há uma semana e com meus queridos amigos Heinz Peter Knes e Jonas Lieder, a um dos filmes mais impressionantes e assustadores de Fassbinder, que me deixou com calafrios est-É-ticos e muitas perguntas. Trata-se do obscuro In einem Jahr mit 13 Monden {Em um ano com 13 luas} (1978), do mesmo ano em que Fassbinder filmaria com outros alemães o filme coletivo Deutschland im Herbst {Alemanha no outono}, que trata dos acontecimentos assustadores daquele ano, que culminariam com a morte misteriosa dos líderes da Facção do Exército Vermelho na prisão. A cena que mostro abaixo, do filme In einem Jahr mit 13 Monden, é bastante chocante, aviso aos leitores. Trata-se da história de um transexual alemão, o órfão Erwin Weishaupt, que se transforma em Elvira Weishaupt, interpretado de forma brilhante por Volker Spengler.


Cena de In einem Jahr mit 13 Monden {Em um ano com 13 luas} (1978), de Rainer Werner Fassbinder.

Passei os últimos dias pensando em Fassbinder, mestre eleito pessoal meu, em Pasolini, outro mestre, e comecei a me perguntar se havia alguém deste patamar no Brasil. Patamar é uma palavra difícil, pois não quero apenas fazer comparações de valor, e alguém poderia entender a pergunta desta forma. Digamos então, alguém com tal vigor em investigar a política e suas relações de poder, dominação, servidão, até mesmo nas relações entre os sexos e as sexualidades, alguém com tal agenda, de uma potência ética quase minimalista (ouso aqui este conceito), não em estilo, mas em denúncia e desmascaramento minucioso das filigranas sociais, não apenas por épicos messiânicos, de caráter nacional.

Serei ainda mais direto: não houve no Brasil do pós-guerra um intelectual homossexual deste calibre, do calibre de Fassbinder, de Pasolini, com um alcance e uma combatividade tão amplas. Compará-los com a figura brasileira que ocupou este espaço, o heterossexual Glauber Rocha, homem genial e que admiro muitíssimo, sempre propenso ao épico, ao descomunal, ao messiânico, mostra alguns detalhes importantes nas diferenças entre certas sensibilidades. Já sei... os amigos e colegas heterossexuais (são sempre eles que se incomodam com esta discussão) enviarão mensagens, dizendo que este debate é desimportante, que a sexualidade destes homens NADA (!!!) define em suas sensibilidades. Eles talvez estejam certos. Mas eu duvido.

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