Quando eu me mudei para a Alemanha, no começo desta década que agora se encerra, já trazia do Brasil em minha bagagem mental alguns mestres pessoais que eram alemães. De forma bastante clara, Walter Benjamin (1892 - 1940), e Bertolt Brecht (1898 - 1956). O pensador berlinense passou a ser presença determinante em meus pensamentos desde que li alguns de seus ensaios traduzidos para o português, lá pelos idos de 1997, quando tinha uns 20 anos. Brecht tornou-se uma presença forte em minha vida a partir do meu primeiro ano na Universidade de São Paulo, onde estava matriculado como estudante de filosofia, mas onde passei a frequentar um grupo de estudos da Faculdade de Artes Cênicas, que se reunia todas as quartas-feiras para ler e discutir uma peça de Brecht, até lermos todas. Este grupo viria a se tornar a Tribo de Teatro Tumutupugá, que teve uma importância gigantesca em minha vida. Vale lembrar que, no final da década de 90, o grupo teatral paulistano Companhia do Latão havia se lançado em uma verdadeira cruzada brechtiana em meio à Paulicéia.
Mais tarde vieram Joseph Beuys (1921 - 1986), com seu conceito de escultura social, e Eva Hesse (1936 - 1970), com sua brilhante manipulação de materiais, na qual eu enxergava elementos para minha busca da corporalidade poética. Estes dois artistas funcionavam como a parelha alemã de minha admiração por Lygia Clark (1920 - 1988), e Hélio Oiticica (1937 - 1980).
No início desta década viriam então, com grande força, a presença de austríacos como o gigantesco SALVE SALVE Ludwig Wittgenstein (1889 - 1951), o poeta H.C. Artmann (1921 - 2000), o cineasta Michael Haneke.
Minha primeira reação e relação com o trabalho de Rainer Werner Fassbinder (1945 - 1982) foi tumultuosa, negativa. Os primeiros filmes a que assisti foram Liebe ist kälter als der Tod {O amor é mais frio que a morte} (1969) e Händler der vier Jahreszeiten {Negociante das quatro estações} (1971), que me pareceram, com o perdão da palavra, chatos, nouvellevagueanos em um sentido negativo, copioso. Mesmo um filme como Götter der Pest {Deuses da peste} (1969), filmado entre os dois que mencionei, ainda mostra certos trejeitos godardianos, em minha opinião. Mas é no ano seguinte (ele trabalhava em cerca de 3 ou 4 filmes por ano) que Fassbinder dirigiria, baseado em uma peça teatral sua, um dos meus filmes favoritos, e aquele que faria com que eu retomasse toda a sua filmografia com outros olhos: o estupendo e completamente Fassbinder Die bitteren Tränen der Petra von Kant {As lágrimas amargas de Petra von Kant} (1972). Nele, a visão extremamente negativa e cheia de cicatrizes com que Fassbinder contemplava as relações amorosas chega a um de seus ápices do sarcasmo, a mesma que ele já demonstrara em sua peça Tropfen auf heisse Steine {Gotas d´água em pedra escaldante), que seria mais tarde muito bem filmada por outro diretor homossexual, o francês François Ozon. Em Petra von Kant, as cores berrantes que Pedro Almodóvar passaria a usar aparecem com uma década de antecedência, mas sem o humor do espanhol. Fassbinder, como Pasolini, sempre foi um mestre da observação detalhada da crueldade entre os humanos, de como o amor se torna um jogo de poder e dominação.
Die bitteren Tränen der Petra von Kant {As lágrimas amargas de Petra von Kant} (1972), de Rainer Werner Fassbinder
A importância do papel desempenhado por Rainer Werner Fassbinder na Alemanha das décadas de 60 - 80 é inestimável, talvez comparável apenas à influência de Joseph Beuys, dois dos intelectuais e figuras públicas mais fascinantes do país naquele período. Sua coragem em atacar as hipocrisias nacionais, sem medo de ofender a direita ou a esquerda, só pode ser comparada na literatura e cinema da Europa do pós-guerra à coragem de outro intelectual homossexual, o italiano Pier Paolo Pasolini.
O motivo desta postagem na verdade é que assisti, há uma semana e com meus queridos amigos Heinz Peter Knes e Jonas Lieder, a um dos filmes mais impressionantes e assustadores de Fassbinder, que me deixou com calafrios est-É-ticos e muitas perguntas. Trata-se do obscuro In einem Jahr mit 13 Monden {Em um ano com 13 luas} (1978), do mesmo ano em que Fassbinder filmaria com outros alemães o filme coletivo Deutschland im Herbst {Alemanha no outono}, que trata dos acontecimentos assustadores daquele ano, que culminariam com a morte misteriosa dos líderes da Facção do Exército Vermelho na prisão. A cena que mostro abaixo, do filme In einem Jahr mit 13 Monden, é bastante chocante, aviso aos leitores. Trata-se da história de um transexual alemão, o órfão Erwin Weishaupt, que se transforma em Elvira Weishaupt, interpretado de forma brilhante por Volker Spengler.
Cena de In einem Jahr mit 13 Monden {Em um ano com 13 luas} (1978), de Rainer Werner Fassbinder.
Passei os últimos dias pensando em Fassbinder, mestre eleito pessoal meu, em Pasolini, outro mestre, e comecei a me perguntar se havia alguém deste patamar no Brasil. Patamar é uma palavra difícil, pois não quero apenas fazer comparações de valor, e alguém poderia entender a pergunta desta forma. Digamos então, alguém com tal vigor em investigar a política e suas relações de poder, dominação, servidão, até mesmo nas relações entre os sexos e as sexualidades, alguém com tal agenda, de uma potência ética quase minimalista (ouso aqui este conceito), não em estilo, mas em denúncia e desmascaramento minucioso das filigranas sociais, não apenas por épicos messiânicos, de caráter nacional.
Serei ainda mais direto: não houve no Brasil do pós-guerra um intelectual homossexual deste calibre, do calibre de Fassbinder, de Pasolini, com um alcance e uma combatividade tão amplas. Compará-los com a figura brasileira que ocupou este espaço, o heterossexual Glauber Rocha, homem genial e que admiro muitíssimo, sempre propenso ao épico, ao descomunal, ao messiânico, mostra alguns detalhes importantes nas diferenças entre certas sensibilidades. Já sei... os amigos e colegas heterossexuais (são sempre eles que se incomodam com esta discussão) enviarão mensagens, dizendo que este debate é desimportante, que a sexualidade destes homens NADA (!!!) define em suas sensibilidades. Eles talvez estejam certos. Mas eu duvido.
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domingo, 26 de setembro de 2010
Cuidado com os anos de 13 luas, avisa mestre Fassbinder
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12 comentários:
Peraí. Peraí. Tem um monte de filmes que procuram denunciar e desmascarar minuciosamente os filigranas sociais (que expressão, hein, Ricardinho?). São Paulo S/A, por exemplo. Alguns filmes do Arnaldo Jabor.
E você nunca foi no Teatro Oficina não? Já vi o Zé Celso fazer uma ode ao cu e lamber o rabo de um barbudinho de uns 20 anos.
PS: Em Limite a questão do sexo é, sim, central. E o Mário Peixoto tinha um jeitinho de gostar de jogar vôlei. Mas como ele não era um viado combativo, para usar mais uma vez uma expressão sua, nem o cito.
Pô, Domeneck, vou ser obrigado a fazer o esperado. Sensibilidade homossexual? Eu nunca tinha sequer imaginado que o Fassbinder era gay, e o Pasolini, só sabia, por saber, mas nunca vi nada disso na obra dele (tudo bem, que conheço pouco, mas mesmo assim).
Se vc falasse do Rufus Wainwright, ou de algum pintor, mas cinema homossexual? Isso eu não entendo, vou falar que não. Só se é minha sensibilidade heterossexual que me limita... E vc esteja certo. Mas duvido.
Aliás, pensando agora, se vc me dissesse que o Truffaut era gay, eu acreditava. Vai explicar isso.
Abraço./
Daud,
meu caro,
você pode voltar ao texto e conferir: em nenhum momento eu escrevi "sensibilidade homossexual". Eu escrevi que há diferenças entre sensibilidades, e que a sexualidade é um fator importante para debater estas diferenças. Em minha opinião.
O que você parece estar esperando ver, pelo que entendo das implicações do seu comentário, é certa imagem clichê do "viado", daí sua referência a Rufus Wainwright, é isso? Que um homossexual produza necessariamente obra de "viado"? Que só podemos falar das implicações da sexualidade de um autor se ele a usar a partir dos preconceitos da sociedade, dos clichês que definem o gay, o feminino? Será que você, e estou perguntando, não consegue imaginar que homens de tamanha virilidade (e com obras tão viris) como Fassbinder e Pasolini fossem homossexuais, e portanto que este fator tivesse influência (quanta, é outra discussão) sobre seus trabalhos? Sua própria pergunta, sobre por que você acreditaria que Truffaut era gay se eu o dissesse, não mostra justamente uma visão um tanto ibérica do homossexual como efeminado, delicado, sem virilidade agressiva do que associamos com o "macho"? Pasolini e Fassbinder eram tão machos quanto eram viados. Será difícil para um brasileiro aceitar esta união, do homem viril e ao mesmo tempo homossexual?
Estou perguntando, pois são estas implicações que vejo no seu comentário.
abraço
Ricardo
Caro Felipe,
algumas das perguntas que fiz ao meu caro Daud, no comentário acima, servem a você também. Não me lembro de ter usado a expressão "viado combativo", você sabe do horror que tenho de viado com bandeira do arco-íris, em mentalidade de gueto. E você parece mostrar esta espera de que o artista homossexual faça isso, obra de arte em que se lambe cu de menininho de 20 anos, é isso? Eu pensei em José Celso ao escrever esta postagem, mas não creio que ele pratique justamente esta crítica no nível de influência (e principalmente abrangência) que Pasolini teve na Itália, e Fassbinder na Alemanha, justamente por transitarem por várias camadas do debate político, nem só se concentrando em um caráter totalizante, nacional e épico (Glauber?), nem fazendo apenas crítica da sociedade burguesa (Jabor?).
Ora, eu sei muito bem em que fogueira me meto quando trato deste assunto, porque há sempre alguém para levantar o dedo e me acusar de "neodeterminismo", por mais que eu tente explicar que não se trata de insinuar que viado SEMPRE vai fazer ASSIM, e machinho SEMPRE vai fazer ASSADO. Eu acho realmente um filme como "Toda nudez será castigada" uma coisa maravilhosa, é um dos melhores filmes brasileiros, mas muito ali se deve também à atuação impecável da Darline Glória. É, talvez desse mesmo para chamar o filme de bem viado, o que, vindo de Nelson Rodrigues e Arnaldo Jabor, torna a discussão bem interessante e contra determinismos.
De qualquer forma, MUITO OBRIGADO pelas suas reações... eu queria mesmo era debater, conversar... você me lembrou bem de filmes do Jabor. Quanto ao Peixoto, não sei, preciso pensar a respeito, rever o "Limite". Agora, o Oficina apenas de forma muito óbvia e superficial se encaixaria no que estava querendo discutir. Quem dera o Zé Celso tivesse a amplidão de intervenção que o Pasolini e o Fassbinder tiveram, mas não creio que seja o caso.
Mas, posso estar redondamente equivocadíssimo.
beijo
Ricardo
Meus caros,
não sei se ajudaria na nossa conversa, mas em março deste ano escrevi um texto longo sobre minhas perguntas neste debate, chamado "Contexto uterino" ou "Sambando com stiletto onde até o Anjo de Benjamin pisa de leve" ou "Eis o X do vosso do X", talvez interesse, não sei:
http://ricardo-domeneck.blogspot.com/2010/03/contexto-uterino-ou-sambando-com.html
De qualquer forma, digo aos amigos Daud e Gutierrez, como aos outros leitores deste espaço, que não estou aqui para criar trincheiras, mas que também não se esqueçam que um texto como esse tem a finalidade de provocar mesmo, para talvez gerar algum debate, sempre bem-vindo, nestes tempos de passividade, seja viada ou machista.
abraço
Ricardo
Domeneck,
Fiz um comentário gigante em resposta às suas pertinentes questões, mas o blogger reclamou que era grande demais. Espero que tenha chegado mesmo assim, senão eu tento resumir de novo e refaço.
Abraço./
Daud,
o comentário chegou no meu email, e o li por lá... mas realmente não apareceu no blogue... se você quiser, posso te mandar de volta o comentário, e você publica em duas partes... acho legal para que outras pessoas possam acompanhar a discussão... será que tenho seu email? Ou você tem o comentário salvo? Se o tiver, publique-o de novo, talvez em duas partes.
(o comentário que foi extraviado, desta vez em duas partes)
Boas questães.
Sem entrar no domínio do que "um brasileiro" pode ou não aceitar, que nos faria correr atrás do nosso próprio rabo (pode ignorar o trocadilho), veremos:
o Rufus, penso naquela música do Want Two, The Art Teacher, que pra mim é uma das músicas mais belas, e claro, delicadas, já escritas, mas delicadas, vamos tentar ser precisos, de um jeito bastante viril. Sim, como Fassbinder e Pasolini são viris. E também não é porque a música fale de um ponto de vista feminino, ou melhor, a partir de um eu lírico (não sei se vc põe em questão isso de eu-lírico, eu acho prático) feminino; é delicada e viril porque fala de amor, e de um amor sublimado. Mas ao mesmo tempo não vejo como um cara 'straight' poderia escrever essa música, porque essa união do mais íntimo com uma certa cultura -- ele elege o Turner como marca daquele amor que não se apagou --, que não posso ver senão como alta cultura, só tenho visto nos autores gays, e mormente nos ingleses (um tipo-ideal, aqui, não me ocorre nenhum em particular).
(continuação)
Essa mesma união vejo no Truffaut (e para defazer mal-entendidos frente ao "delicado", pensava justamente no L'homme qui aimait les femmes), embora ele não ponha em primeiro plano a alta cultura. Ele é, digamos, a alta cultura, querendo ou não. E é capaz de unir, coloquemos então nestes termos, o sublime e o íntimo. Não vejo muitos héteros fazendo isso. As mulheres têm uma certa ojeriza pelo sublime -- estamos aqui numa certa generalização, eu sei, mas não sei como proceder diferente neste tipo de questão. De modo que essa união entre o sublime e o íntimo, como chamei, considero como uma característica (como algo que só floresce aí, mas não de maneira necessária, obrigatória) da sensibilidade homossexual (a frase é minha, vc está certo, é minha a categorização). As exceções -- Truffaut seria uma delas -- confirmariam a regra.
Frank O'Hara (que eu aproveito a menção pra te agradecer, pois foi um encontro feliz tê-lo conhecido, aqui), provavelmente eu colocaria na mesma categoria, com ou sem delicadeza, ou virilidade (essas duas, concordo, têm muito pouco a ver com a viadagem ou ausência de viadagem).
Foi generoso da sua parte levantar essas questões, porque realmente, meu comentário pode suscitar as implicações de que vc fala. Mas ele também era pra provocar.
Vou lá ler o outro artigo, se pensar em mais algo posto aqui. Mas por enquanto vc ficaria de fora da minha categoria "sensibilidade homossexual". Vc gosta demais da cultura pop pra isso.
O que levantaria outras questões, evidentemente. Não sei se para aqui.
Abraço./
PS.: já que pus o par sublime^íntimo como cavilha da questão, diria: é por aí que temos o Virgílio das Bucólicas nessa categoria, mas não o Homero da Ilíada, nem o Petrônio, pela razão oposta.
Rafael,
suas comparações são interessantes, e haveria muito nelas que poderíamos discutir. Tenho insistido na afirmação de que tais especificidades biográficas têm grande impacto na formação de nossa personalidade, nossa Weltanschauung, nossa relação ("our lover´s quarrell, nas palavras de Frost) com o mundo.
Ao mesmo tempo, sou muito cuidadoso em evitar explicações genéricas, justamente para não cair no perigosíssimo e temido "determinismo", como se todo heterossexual reagisse igual, ou como se todo homossexual. Isso serve para a discussão sobre o feminino, o masculino, e assim por diante. Somos todos indivíduos reagindo a sistemas pre-determinados antes de nascermos, sobre os quais tentamos influir. Eu tenho minhas ideias sobre as maneiras como homossexuais odem tender à consciência de certas constrições tidas como "naturais", de forma parecida que as mulheres também suspeitam destas mesmas constrições. Mas isso é realment assunto para artigos longuíssimos. Só ataco aqueles, especialmente no Brasil, que tentam deslegitimizar o debate por questões óbvias: não querem sair do troninho.
abraço
Ricardo
ja fiz a mesma indagação tambem e não achei nenhum intelectual a-la foucault (homossexual e sensivel as questões sociais) semelhante a estes dois diretores no Brasil
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