"Eu não quero opor os dois princípios. Acredito que eles estão ligados intimamente pelo processo histórico de um contexto comum. São as transformações históricas que exigem dos artistas transformações e invenções formais. Como escrevi em outros textos, eu acredito que o desgaste das formas poéticas não se dá pela hipertrofia do uso destas formas, mas pela atrofia do contexto que as gerou. Não se trata de atacar o USO do soneto por já ter sido usado tantas vezes, mas porque o soneto, em minha opinião, estava intimamente ligado ao contexto histórico em que surgiu, com crenças bastante específicas de interligação entre os elementos do cosmos, fé em uma possível transcendência espiritual e na harmonia do universo – são estas crenças que animam a metáfora, ou a rima ou o enjambement. Não se trata de fazer o poema mais “bonitinho”… usar ou não rimas, enjambement, verso metrificado, sonetos, versos brancos, tudo isso tem implicações est(É)ticas que só podem ser completamente entendidas em seus contextos históricos. Cada vez que uma “forma” é usada em um contexto histórico distinto, ela assume nova “função”. Não são apenas invenções formais, como se fossem meras ferramentas para efeitos imutáveis. Desta forma, eu acredito que inovação precisa ser compreendida em seu contexto histórico específico, e que é desta relação que se pode falar em qualidade. Se um poeta escreve 500 sonetos “tecnicamente perfeitos” hoje, em 2008, ele atinge qualidade? Para muitos, sim. Eu acredito, porém, que isso precisa ser entendido em seu tempo histórico e ter suas implicações questionadas. É por isso que diria que precisamos unir, à discussão da Forma, uma noção de Função. O que quero dizer é: não apenas buscar entender as diferenças no caso dos sonetos de Petrarca e Shakespeare, que diferem por língua e época; refiro-me também, nos dias de hoje, tanto a Bruno Tolentino quanto a Glauco Mattoso ou Paulo Henriques Britto, que usam a forma do soneto, mas claramente com funções muito diferentes entre si. Outra coisa interessante a se pensar é a maneira como a noção de uma poética do mínimo se manifesta em diversos autores. Eu geralmente sinto com força a diferença entre o poeta que está praticando o “mínimo“ por submissão a regras de qualidade para agradar e respeitar os parâmetros de críticos e poetas que privilegiam economia de meios e concisão (naquilo que chamo de luxo do lacônico), e o poeta para quem o mínimo é muito mais um exercício espiritual, uma NECESSIDADE interna de sua poesia e de sua forma de viver, como no caso de Emily Dickinson e George Oppen ou, no Brasil, Orides Fontela e Ronaldo Brito. Que livros como Alba (1983) e Asmas (1982) tenham sido possíveis e acontecido, em plena década de 80, é algo que alegra meu miocárdio de poeta.
Portanto, quando discuto o novo e o necessário, a última coisa que quero é criar mais uma dicotomia ou dualismo para a crítica de poesia, já tão cheia deles. Eu acredito que o novo e o necessário andam de mãos dadas.
Ou seja, eu não acredito que a “novidade“ e a “necessidade“ se oponham ou se excluam. Eu acredito, pelo contrário, que elas estão intimamente ligadas. Eu não creio que Baudelaire, Rimbaud ou Pound, por exemplo, queriam simplesmente ser originais ou procuraram meramente fazer o que ainda não havia sido feito. Eles foram originais e inovadores por perceberem que o contexto cultural havia mudado, observaram as transformações científicas, políticas, até econômicas, e dialogaram com elas em seus trabalhos. Ou seja, eu acredito que mesmo Pound, que cunhou o Make It New, estava na verdade agindo sob o Make It Necessary. Isto está implícito em sua crítica. Não se trata de cercear a liberdade de pesquisa dos outros, mas de buscar entender esta complexa relação entre poesia e seu contexto histórico. Eu penso em John Cage, um dos artistas mais livres e libertários, curiosos e experimentais do século passado, que não se cansava de dizer “One does not make just any experiment but does what must be done“, ou seja, não se faz simplesmente experimentos em nome de uma suposta liberdade formal qualquer, isto fica para os que estão buscando expressão pessoal, algo legítimo, mas artistas que se preocupam com sua atuação na comunidade fazem o que “tem que ser feito“. Como decidir o que tem que ser feito? Isto virá da ideologia da percepção de cada um. Há hoje no Brasil poetas agindo sob parâmetros praticamente opostos, e todos defendendo o “novo“ e o “necessário“. Isto deveria e poderia ser debatido, de forma saudável, mas estamos lidando também com seres humanos com egos, o que torna o debate geralmente muito difícil. Eu, pessoalmente, recuso e rejeito a maneira como certos poetas da década de 90 e de hoje tentam equivaler sincronia histórica e trans-historicidade. Parece-me uma ficção a maneira como eles deduzem a independência da poesia quanto a seu contexto histórico a partir do conceito de sincronia de autores como Hans Robert Jauss ou Roman Jakobson. Tanto para Jauss quanto para Jakobson, sincronia histórica significava, eu creio, a nova seleção que cada geração empreende dentro da tradição, daquilo que lhe interessa e, em sua opinião, permanece vivo e útil. Isto não implica trans-historicidade ou independência histórica por parte da poesia. Pelo contrário. Trata-se de um fenômeno histórico, cada uma destas seleções é histórica. A diacronia ocorre quando se tenta impor a uma geração de jovens poetas uma seleção antiga, feita por poetas de gerações anteriores, vivos ou já mortos. Aí está a problemática da questão de hegemonia na discussão do cânone, assim como a ilusão de “contribuição para o futuro“ em paideumas de poetas como Ezra Pound e Haroldo de Campos. Havia uma certa obsessão por dualismos entre os poetas e pensadores ligados ao chamado Alto Modernismo. Não entendo a maneira como Haroldo de Campos, por exemplo, opõe história e estética, chamando de “diacrônica“ a abordagem histórica, segundo ele, e de “estético-criativa“ a sincrônica, e com isto gerando este elo de causalidade fictício entre sincronia histórica e trans-historicidade. A crítica de Hugh Kenner, em minha opinião, é histórica e sincrônica. Eu acredito que o conceito de sincronia poderia ser enriquecido como a seleção histórica que se reitera a cada geração e diacronia como o engessamento de seleções históricas passadas. É como se toda "sincronia" se transformasse em "diacronia" pelo efeito de engessamento do tempo. Ninguém escapa da história, muito menos os poetas. Não quero impor ou mesmo sugerir mais o que é necessário. Todo poeta fala em primeiro lugar para si quando escreve textos críticos. Tentei algo parecido em meu ensaio “Ideologia da percepção“, em que havia uma parte chamada “Algumas propostas”, e as reações não foram muito amigáveis. Mas gostaria de seguir defendendo a união entre ética e estética e a necessidade de que os novos poetas criem seus próprios parâmetros."
de uma entrevista à revista eletrônica Armadilha Poética, conduzida por Lucas Nicolato
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