domingo, 23 de março de 2008

poesia em fuga da alcatraz de papel

« Mais velho que andar para a frente », dizia minha mãe. Poesia? Em papel? Não, porque a poesia de papel é novinha, se comparada à poesia em performance, ou a poesia sonora, pois foi assim que a poesia existiu por séculos, incorporando a cada novo contexto a inovação técnica que a ciência lhe dava. A certa altura, o papel. (O seqüestro da poesia como parte da Literatura é muito recente) Para registro. Para divulgação. Como em certo momento histórico um homem ou vários compilaram a tradição oral que gerou a Odisséia? Para que a lira de Safo sobrevivesse? A de Arnaut Daniel? A de Gregório de Matos? Por que a poesia não seguiria incorporando a seu trabalho de intervenção-linguagem as novas tecnologias dos novos contextos?


(poema sonoro e visual de Jörg Piringer)

Demonstração das possibilidades criativas para o trabalho da poesia em outras mídias, crendo na poesia como trabalho e intervenção na linguagem, independente do papel como suporte para divulgação e distribuição. Se o livro e a página seguem sendo este suporte eficiente para o trabalho poético, eles também trouxeram, ao longo dos séculos, características bastante específicas para o trabalho do poeta, que dificilmente dissociam-se, hoje, da poesia em si, privilegiando certos aspectos desta em detrimento de outros.


(First Screening, de bpNichol)

Basta pensarmos que a poesia escrita (ou literária, digamos) não carrega, geralmente, rótulos. É chamada, de forma ilusoriamente essencialista, simplesmente de p-o-e-s-i-a, e seus praticantes muitas vezes desconhecem toda a tradição poética que privilegiou o som e a performance, elementos do trabalho poético muito anteriores aos aspectos visuais surgidos com o “papel”.


("Karawane", poema fonético de Hugo Ball, interpretado por Marie Osmond)


Com a exceção de certos trabalhos esparsos de Augusto de Campos entre os concretos, apenas nas últimas duas décadas surgiria um número maior de poetas interessados naquilo que se chama de "poesia sonora" ou “poesia em performance”, para diferenciá-las do trabalho poético baseado no papel, com seus suportes da página e livro. Philadelpho Menezes, infelizmente já falecido, Arnaldo Antunes e Ricardo Aleixo são exemplos de poetas ativos a partir das décadas de 80 e 90 com um trabalho consciente e consistente neste campo.


(Maja Ratkje em performance)

A poesia experimental no Brasil tende a privilegiar a pesquisa visual acima de tudo e deu à poesia mundial uma contribuição incontornável e inesquecível, para quem queira compreender a poesia de hoje. È necessário dizer, no entanto, que o "verbivocovisual" dos poetas concretos foi, sim, esta contribuição importante, mas avançou pouco na pesquisa de uma poesia sonora no Brasil, se comparada à de outros poetas concretos como Henri Chopin e Bob Cobbing.



(performance de Henri Chopin)

Parece-me que o "voco", o "sonoro" da poesia concreta funcionava muito mais como "adendo", digamos, ao trabalho visual e verbal, com a exceção (faz-se necessário repetir, especialmente para os bisnetos defensores de plantão) de trabalhos importantes de Augusto de Campos.


(Greve, de Augusto de Campos)

Com o surgimento de novas tecnologias como o vídeo à disposição dos poetas (como o papel foi também, a seu tempo, uma inovação técnica) podemos imaginar que o trabalho com a poesia possa atingir uma unidade poética apenas sonhada na década de 50. Entre os poetas trabalhando hoje com vídeo, podemos citar o brasileiro Henrique Dídimo, que vive e trabalha em Fortaleza, a argentina Silvana Franzetti (Buenos Aires), a peruana Roxana Crisólogo, o austríaco Jörg Piringer, ou os videastas americanos Gary Hill e Bill Viola, que trabalham muito próximos do que ainda poderíamos chamar de poesia.


(fragmento de Soundings, de Gary Hill)

Estes poemas mostram-se também como exemplos do "poeta que faz" com a língua, ao invés do "poeta que diz" através dela. Não há metaforização ou retorno a ideias poéticos do século XIX, como em certos poetas brasileiros envolvidos em revistas como a Zunái, que divulga e defende uma poesia neo-simbolista, não muito distante do decadentismo do fim do século retrasado, com o mesmo tipo de linguagem ilusoriamente pura, descontextualizada e praticante dos exotismos orientalistas de poetas do fim do século XIX e início do XX. Ainda que defendam o "vanguardismo", estes poetas estão mais próximos da mesma negação do modernismo perpetrada pela so called Geração de 45.


(Cross Rhythm and White Noise, de Nobuo Kubota e W. Mark Sutherland)

Em poemas como estes, o poeta passa a agir por uma poética de implicaçoes, por poemas em que não há como buscar o "texto-fantasma" de sua exegese. Nas palavras de Jacques Roubaud: "O poema diz o que diz, dizendo-o". Poesia não é parte da literatura. A literatura é que é apenas uma parte da poesia. Parte moribunda, diga-se de passagem, e é por isso que mesmo a poesia-escrita (que sigo amando e praticando) mais interessante de hoje está se afastando da prática literária-beletrista da mera "escrita poética". Desbeletrizar a poesia parece-me inevitável, necessário e, acima de tudo, muito divertido.


Ricardo Domeneck

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