terça-feira, 11 de março de 2008

Trechos de uma entrevista

Entrevista concedida à revista eletrônica Armadilha Poética.

A seguir, alguns trechos:

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Esta minha grafia [para a palavra est(É)tica] é uma referência explícita a Wittgenstein, que escreveu no Tractatus Logico-Philosophicus (1922) que "Ética e estética são uma só“. Isso tem sido um parâmetro determinante em meu trabalho. Cada vez mais sinto-me incapaz de ignorar as implicações éticas e, assim, políticas de determinadas escolhas estéticas. É claro que isso gera em mim uma completa descrença em qualquer tentativa de praticar a arte pela arte, como não acredito no trabalho artístico que se quer independente de constrições sociais, econômicas, científicas, em suma: históricas. O trabalho artístico está intimamente ligado às transformações históricas e contextuais da cultura em que se movimenta, eles se interligam, correm paralelos, trançam-se, opõem-se, dialogam. Quando observamos o trabalho de John Cage, por exemplo, ou de dadaístas como Kurt Schwitters, percebemos que eles esperavam que, de seus trabalhos, pudéssemos depreender implicações de como VIVER e interagir com o mundo e os outros.

Outro exemplo: eu moro na Alemanha - quando Leni Riefenstahl morreu, houve um debate reaceso sobre a validade de seu trabalho artístico, sobre sua dependência ou não da ideologia fascista. Tentou-se fazer de Riefenstahl um exemplo de artista independente de implicações políticas, querendo absolvê-la e crendo que seria possível apreciar seus filmes e ver neles “beleza estética“, apesar de suas filiações partidárias. Isso me parece uma loucura. A “estética” dos filmes de Riefenstahl não a absolve, muito pelo contrário, é a prova cabal de que ela compartilhava da ideologia nazista. Tal postura ética ligada ao nazismo está nas implicações das escolhas estéticas de Riefenstahl.

O problema é que tais implicações éticas de uma escolha estética são muito complexas e dependem daquilo que chamo de ideologia da percepção, das próprias distorções ideológicas de cada um (todos nós) que busca ler as implicações do trabalho alheio. Para não usar apenas exemplos fáceis: sinto um incômodo muito grande diante de certas fotografias de Robert Mapplethorpe, fotógrafo homossexual a quem não filiamos usualmente a qualquer ideologia política de direita, mas que possui um trabalho, em minha opinião pessoal, com implicações de uma estética de ideais apolíneos de Beleza que me parecem demasiado irmanadas às de uma Leni Riefenstahl, por exemplo.

Também não é à toa que os nazistas precisaram destruir as obras de expressionistas e dadaístas. Eles entendiam as implicações éticas e políticas do trabalho destes artistas, e percebiam imediatamente que se tratava de inimigos. No entanto, como disse, as implicações est(É)ticas de qualquer obra de arte serão sempre lidas por cada um de forma diferente, a partir de sua própria est(É)tica pessoal. Não foi apenas a extrema direita que atacou, por exemplo, os expressionistas. Basta ler o debate entre Georg Lukács e Ernst Bloch nos anos 30, ambos da “esquerda”, em que Lukács condena os poetas e pintores expressionistas por decadentismo e alienação, enquanto Bloch empreende sua defesa sob termos opostos, para percebermos que cada vez mais torna-se impossível a busca da unanimidade que legitimaria um suposto cânone. Quando leio um poeta hoje em dia, busco imediatamente as implicações est(É)ticas de seu trabalho, e acredito que elas se manifestam em qualquer um deles, mesmo os que mais se crêem historicamente independentes. Por exemplo, quando leio um poeta de pouco mais de 20 anos, que mora no ensolarado Rio de Janeiro, usando técnicas, semântica e sintaxe claramente calcados em Paul Celan (um poeta que escreveu como escreveu por estar completamente fincado em seu contexto histórico e político de poeta judeu sobrevivente do Holocausto), não posso deixar de pensar nas implicações extremamente sérias de uma postura como esta, que me parece incrivelmente leviana. Isto está ligado também a certa ideologia atual, que acredita ser defensora da liberdade poética por pregar uma suposta trans-historicidade da poesia, muitas vezes recorrendo a textos críticos de poetas “políticos” como Brecht e Maiakóvski de forma deturpada, para justificar o oposto do que estes textos defendem.


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Leio com muito prazer tanto Ezra Pound quanto Gertrude Stein, que não se suportavam. Mas são poetas a quem leio, creio, com motivos distintos dos poetas da década de 50 no Brasil, por estar lendo estes poemas no início do século XXI, e por conhecer o trabalho destes poetas da década de 50: Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Mário Faustino, Ferreira Gullar, Augusto de Campos, Mário Chamie, Affonso Ávila. É um ciclo. Assim como estou certo de que o que me interessa em poetas dadaístas como Hans Arp ou Kurt Schwitters, ou um poeta independente como Pierre Albert-Birot, é diferente do que interessava aos poetas de décadas passadas. Isto é sincronia histórica. Quero apenas o direito de concentrar-me nas lições que eles deixaram, segundo o que creio serem as necessidades do meu tempo. Isso é guia apenas para minha poesia, como cada poeta busca os seus próprios parâmetros. Mas também acredito na possibilidade de debatê-los com meus contemporâneos.

Não estamos tentando, com a Modo de Usar & Co., instituir nossos parâmetros como únicos. Não queremos isso. Mas gostaríamos que eles gerassem dissonância e pluralidade verdadeira entre aqueles que estão, sim, freqüentemente tentando instituir seus grupos como O Único, ou A Geração. No Brasil, confunde-se muito a noção de “grupo” com a de “geração”. Deveríamos dizer “Grupo de 45”, por exemplo, e não Geração de 45.

Há poetas hoje, em minha opinião, tentando transformar seu ideário particular em sinônimo de “contemporâneo”. Resistimos a este tipo de atitude. Por exemplo, há poucos meses, poetas organizaram em São Paulo um festival de poesia, segundo eles, ibero-americana e contemporânea. Os convidados, no entanto, eram apenas aqueles que concordavam com os parâmetros poéticos destes poetas. No site do festival havia ensaios disponibilizados sobre poesia contemporânea: todos eles sobre o ideário poético deste único grupo. É o que quero dizer com a tentativa de fazer de um único ideário o sinônimo de contemporâneo, e da prática da crítica como instituição de hegemonias. Um dos organizadores do festival acaba de organizar uma antologia de poesia brasileira em Portugal: incluindo apenas aqueles que concordam, obviamente, com seus parâmetros estéticos, tentando impor este grupo como A Poesia Brasileira do Século XXI, numa antologia com pretensoes claramente canônicas. São estas pretensoes canônicas que tornam tal atitude problemática e questionável. Creio e argumento que este tipo de “crítica” precisa ser debatida. Há, sim, um diferença grande entre editar uma revista e uma antologia que se quer canônica. Isto é, em minha opinião, um exemplo de endogamia, de pessoas obcecadas com o reconhecimento histórico, ainda que os mesmos poetas defendam trans-historicidade para escapar de certas responsabilidades est(É)ticas.

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A entrevista, levemente editada, pode ser lida na revista eletrônica Armadilha Poética,
clicando no link abaixo:


Entrevista de Ricardo Domeneck na Armadilha Poética

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