sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Escrever em voz alta: parte 3: meça o corpo presente

Minha aproximação e abordagem desta discussão, sobre a relação entre escritura e oralidade, deu-se gradualmente, como resultado de meu interesse em questionar certas dicotomias engessadas, esquemáticas, em especial a que busca separar e catalogar o espiritual e o corporal como adversários ou opostos, ou os outros pares usuais, como psicológico e físico, abstrato e concreto, etc. Aqui entra uma preocupação que eu insisto em chamar de est-É-tica, por crer que tais dicotomias, quando cristalizadas, levam-nos a implicações culturais e políticas pouco saudáveis, das quais sofremos todos os dias. Foi por isso que, mesmo em minha escrita, desde o início buscava no corporal os conceitos (e receitas) para uma transcendência que não implicasse sublimação do físico, uma aceitação adulta de nossa mortalidade, nossa finitude. Nas duas partes do meu livro Carta aos anfíbios (2005), busco na primeira, através de um trabalho metafórico, e na segunda, através do metonímico, encontrar parâmetros est-É-ticos para uma pesquisa poética que, se deseja o conceitual, o metafísico e o invisível, busque no concreto, corporal e físico suas manifestações.

Os materiais, a lição: cinco variações

I.

pés úmidos em terra seca:
montar um cavalo morto
enregela-nos o movimento.

(beijo ao caminho, à poeira)

o fértil
revolve os olhos
e mal contém-se
em coice:

pata impressa
em ervas.

II.

conglomerado sem esforço,
o corpo reunido vinga-se
do ar, dispersão contínua.

(e despenca-me em chuva)

o úmido
opõe ao vento
o núcleo
do seu aposento:

o corpo persevera
no extenso.

III.

escalar-se em chamas,
deitar no próprio corpo
como na última cama.

(prefiro o consumo do outro)

nosso palpável
peito unido
lambe o milagre
da carne única:

a trindade
opera-se grávida.


IV.

fala e água: ao chocarem-se
em continentes de carência,
o conteúdo dita a forma.

(o líquido modela o copo)

o sangue
procura deter-se
num trecho de pele
um instante:

toque do anátema,
farol, ex-amante.

V.

consciência purgada na falta
que ama: enfim, só se é cauto
em sins de olhos fechados.

(fé do absurdo no obstáculo)

o cavaleiro
executa
no escuro
o movimento.

sem aposta de páscoa:
um cavalo, um moinho, um vento.


Ricardo Domeneck, Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2005)

Algo destas consequências pouco saudáveis é o que vejo retratado em um dos melhores filmes deste nosso século, baseado no romance de Elfriede Jelinek, acusando nossas neuroses. Michael Haneke é um mestre na est-É-tica do confronto de nossas neuroses e hipocrisias. Fui ao cinema 11 vezes para assistir esse filme, filme em que todas as secreções humanas comparecem, implícitas ou explícitas, em que as relações de poder entre os sexos se apresentam em toda a sua violência, pesquisei-o, assim como o romance, como base para minha própria intervenção contra a dicotomia hipócrita do sublime e do grotesco, em que o grotesco se torna, invariavelmente, o território do corporal, o que nos desemboca na violência.


(Michael Haneke, La pianiste, 2001, baseado no romance de Elfriede Jelinek)


No ensaio "Ideologia da percepção", escrevi sobre meu interesse pelo trabalho de Hilda Hilst, por demonstrar justamente uma busca por transcendência que jamais implica sublimação. Lembro-me de que, em debate com o poeta Dirceu Villa, ele viria a dizer que o que interessava a ele era a retomada, por parte de Hilst, de certas formas de Catulo. Aqui entraria uma discussão interessante sobre a imbricação entre forma e função, já que eu diria que estes dois aspectos do trabalho de Hilda Hilst irmanam-se: parece-me bastante acertada, por parte de Hilst, a escolha de Catulo como referência em um trabalho como o que descrevi acima, de uma poética de pés-no-chão, contextualmente consciente, sem sublimação do físico em nome de uma possível transcendência. Lembro-me da febre que tive ao ler Hilda Hilst pela primeira vez, de pé em uma livraria da Avenida Paulista, em 1997, abrindo seu romance Estar sendo. Ter sido, lançado naquele ano, e lendo o poema que o encerra, intitulado "A mula de Deus", aquele que termina com esta coisa maravilhosa: "Palha/ Trapos/ Uma só vez o musgo das fontes/ O indizível casqueando o nada/ Essa sou eu/ Poeta e mula", a mulher que escreveu:

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.


Hilda Hilst, Do desejo, 1992

Vejo isso em meu mestre eleito dentre os primeiros modernistas brasileiros, meu caríssimo Murilo Mendes, aquele que terminou um poema com o verso "eu estou no meu corpo" e, mesmo em busca por transcendência, conhecia sua condição carnal, ainda que, assim como Hilda Hilst, nem sempre se apaziguava com ela:

"Estou aqui, nu, paralelo à tua vontade,
sitiado pelas imagens exteriores.
Todo o meu ser procura romper o seu próprio molde
em vão! noite do espírito
onde os círculos da minha vontade se esgotam."


(Murilo Mendes, "O poeta na igreja", Poemas, 1930)

Vejo isso no trabalho de Orides Fontela, outro de meus mestres escolhidos, como no poema "São Sebastião":

São Sebastião

As setas
- cruas - no corpo

as setas
no fresco sangue

as setas
na nudez jovem

as setas
- firmes - confirmando
..................a carne


Orides Fontela, Trevo (São Paulo: Duas Cidades, 1988)

Intuo que houve outros tempos em que nossa relação com o corporal era mais saudável. Por isso me interesso por uma poética do grotesco, como a que Bakhtin descreve ter existido na Idade Média. Um dos problemas que tenho com certos parâmetros neoclássicos é por ver nessa atitude algo das causas por que perdemos esta saúde, a partir do Renascimento, por releituras (que vejo como equivocadas) do legado clássico, baseadas na sublimação do contextual, físico, histórico. Algo piorado pelo cartesianismo que a Europa viria a propagar, e contra o qual poetas como os do Cabaret Voltaire, do Grupo de Viena, da Internacional Situacionista ou indivíduos como John Cage e Frank O´Hara viriam a se rebelar.

Minha pesquisa est-É-tica contra esta sublimação do físico, contextual, histórico e corporal (vejo-os unidos) levar-me-ia a esta pesquisa do oral e da performance, por uma busca pela reunião entre língua e corpo. Isso geraria, por exemplo, os textos do livro a cadela sem Logos, em que tento buscar uma maneira de manter a oralidade implícita na escrita, tentando convocar e obrigar o leitor à sua performance.

falar hoje exige
elidir a própria
voz as transações
inventivas entre
interno e externo
demandam
que a base venha
à tona e a
superfície seja
da profundidade da
história ímpeto
denotando o
centrífugo
o corpo público
que exibo como
palco fruto
da ansiedade
do remetente
o interno ao longo
da epiderme
como emily
dickinson terminando
uma carta de minúcias
com “forgive
me the personality“


Ricardo Domeneck, a cadela sem Logos (São Paulo: Cosac Naify, 2007)


Isso geraria também meus primeiros vídeos, como o que vim a chamar de meu "oralfesto", o vídeo "Garganta com texto", em que busco fazer o dizer.


(Ricardo Domeneck, "Garganta com texto: um oralfesto", exibido pela TV Cultura em dezembro de 2006)

Há certas asserções bombásticas no vídeo, como afirmar que "poesia não é literatura", o que gerou desentendimentos e necessitaria de elaboração e discussão. Preparei o vídeo em pleno momento de "ativismo anti-literário" à la Zumthor, de certa forma, e sei que esta declaração merece reparos e argumentação. Poesia é também literatura, obviamente, especialmente após as transformações poéticas pós-Renascimento. Insisto, porém, ser um equívoco associar o trabalho poético primordialmente com a escrita, o que tem nos levado a uma tradição bastante limitada, que muitas vezes mais atrapalha do que ajuda.

.
.
.

2 comentários:

Angélica Freitas disse...

gosto muito desses teus poemas./ às vezes vejo os poetas como grandes cabeças, sem troncos, sem pernas, só cabeça, mais nada./ cabeça também é pra falar.

beijo.

Unknown disse...

Permite?!?
QUARTA TEMPORADA
HILDA HILST – O ESPÍRITO DA COISA
De 28 de agosto a 6 de setembro
Teatro Funarte de Arena Eugênio Kusnet
Endereço: Rua Dr. Teodoro Baima, 94 (em frente a igreja da consolação) – Vila Buarque
São Paulo (SP)
Telefone: (11) 3256-9463
Horários: sexta e sábado às 21h; domingo, às 20h
Ingressos: R$ 10 (meia entrada: R$ 5)
Bilheteria: aberta uma hora antes das sessões
Reservas para grupos pelo telefone: (11) 3662-5177
Gênero: drama
Classificação etária: 16 anos
Vida e obra de Hilda Hilst, considerada como um dos mais importantes nomes da literatura e da dramaturgia de língua portuguesa do século XX.
Pesquisa, concepção e atuação: Rosaly Papadopol
Direção: Ruy Cortez
Participação especial: Antônio Abujamra- Voz Off
Dramaturgia: Gaspar Guimarães
Informações: sp@funarte.gov.br
Teaser do espetáculo http://www.youtube.com/watch?v=e7S8IZk2mn0

Arquivo do blog