Voltei ontem de Barcelona, com uma de minhas perguntas obsessivas zumbindo entre as orelhas, ricocheteando dentro do crânio, pergunta que desperta a cada leitura, a cada performance: qual a relação entre oralidade e escritura, entre o signo visual e o som material, entre a página e a voz do poeta?
É muito difícil discutir isso no Brasil, onde tenho a sensação de que as fronteiras entre estas dualidades seguem em vigor, onde se discute, da maneira mais primária, ainda, aquele velho debate sobre poesia literária e letra-de-música, em termos que às vezes me deixam boquiaberto, no pun intended.
Para os poetas da mais recente onda neoclássica, imagino que a mera discussão sobre poesia sonora ou sobre oralidade vá parecer veleidade "vanguardística", desejo de novidade. Na tradição limitada destes poetas, que acreditam defender valores estéticos eternos, mas vivem em um ambiente forjado no século XIX, com pitadas de século XVI, poesia segue sendo apenas e tão-somente Literatura, letra no papel, com sua contagem de versos, pés e estrofes, ignorando muitas vezes o quanto esta contagem de versos, pés e estrofes um dia foi guiada pela preocupação que poetas tinham justamente em manter saudável a relação entre oralidade e escritura.
Gostaria de deixar claro, aos que se interessam por este debate e também pela maneira como tenho tentado conduzi-lo, que "vanguardismo" é a última de minhas preocupações. A própria expressão /// "vanguarda" ///, com seu tom militarista, assim como o debate nas últimas décadas sobre o seu fim, já denuncia, em poetas tão distintos como Haroldo de Campos ou Antonio Cicero (entre os que se ocuparam com este debate nos últimos tempos), uma visão linear evolutiva que me parece extremamente problemática. De qualquer forma, estes poetas precisam defender esta visão sobre a vanguarda e seu fim para justificarem suas práticas poéticas, como todos nós fazemos em nossas defesas e ataques de qualquer conceito.
Prefiro alinhar-me a poetas como Jerome Rothenberg, pois sabemos (cuidado com meu truque retórico, ao usar a primeira pessoa do plural) que há práticas poéticas ativas e dormentes, prestigiadas ou esquecidas, que retornam, renovam-se, caem em desuso por séculos, florescem numa região e língua enquanto tornam-se risíveis em outras. Ao pesquisar poetas ligados à revista DADA e ao Cabaret Voltaire, como Hugo Ball, Hans Arp, Kurt Schwitters e Tristan Tzara, comecei a perceber sua ligação a práticas poéticas européias medievais, assim como a de outras línguas e geografias, algo que guia, por exemplo, o trabalho crítico de Rothenberg.
Acontece, também, que não considero as tais "vanguardas históricas" todas iguais ou emanações do mesmo espírito crítico e est-É-tico. Para mim, há diferenças brutais entre DADA e o Surrealismo, entre estes dois e o Futurismo e, neste, entre o russo e o italiano. É nossa historiografia literária preguiçosa que necessita unificar tudo em um único sistema. Usemos uma analogia para deixar clara a minha posição, e apenas uma delas: se DADA foi a Reforma, o Surrealismo foi a Contra-Reforma. Isto é, obviamente, uma declaração ideológica minha, pois aprecio a maneira como DADA representou um retorno a práticas poéticas que estavam em desprestígio, mas que sempre pertenceram à tradição, remontando à poesia medieval, antes de neoclássicos turvarem as águas no século XVI e dos surrealistas turvarem as águas no XX.
Em um ensaio sobre um poeta oral contemporâneo, escrevi sobre a "tradição que teve em Arnaut Daniel (1150 - 1210), Bertran de Born (1140 – 1215), Raimbaut d`Aurenga (1147 – 1173) e outros poetas occitanos seu momento de hegemonia e ápice artístico, no trabalho do poeta como escritor, vocalizador e performer. Com o naufrágio desta cultura occitana durante a Grande Peste do século XIV e as transformações políticas da Europa, a partir do Renascimento há um gradual deslocamento de atenção e prestígio (ou seja, hegemonia crítica), levando o poeta a privilegiar o trabalho poético como escrita acima de tudo, ainda que a tradição da poesia oral e cantada tenha seguido saudável. O ápice desta nova hegemonia (a literária) ocorre em 1897, com o Coup de dés mallarmeano, momento em que claramente o poeta se torna consciente da página como campo de composição poética, mais do que mero registro do oral, gerando a tradição a que pertencem poetas visuais, concretos e conceituais do século XX e XXI. No entanto, esta mesma hegemonia receberia seu primeiro golpe mortal pouco menos de 20 anos após a criação de Mallarmé, com os poetas-performers do Cabaret Voltaire, que religam a poesia a sua tradição pluralista medieval." Percebam que não estou insinuando um golpe mortal contra a escritura e sua manifestação na página e em livro, mas contra a sua hegemonia na percepção crítica do poético.
De qualquer forma, ao contrário do que muitos pensam, geralmente por desconhecimento, o trabalho de muitos dadaístas tem alta qualidade literária, como nos belos poemas de Hans Arp ou mesmo nos de Tristan Tzara, ainda que os manuais de Literatura reproduzam apenas aquele "Como fazer um poema dadaísta", mesmo assim ignorando as mui frutíferas implicações críticas do último verso.
Como disse, não pesquiso a poesia oral e sonora, assim como a performance, pela veleidade de querer ser vanguarda. Sei que essas práticas pertencem a uma tradição milenar. Eu também prefiro pensar no "News that stays news", definição (uma delas) de Pound para a poesia, como "Notícia que permanece notícia", pois prefiro essa ao tom levemente distorcido de "Novidade que permanece novidade", que os neoclássicos e anciens usam como desculpa para voltarem a defender, incessantemente, algum "l´art pour l´art", este argumento fácil, já que ninguém ousaria defender algum utilitarismo para a poesia. No entanto, parece-me equivocado tentar transformar a legítima preocupação formal de todo poeta, em zelo xiita pelo que já foi feito. É um dos truques mais comuns: querer associar "formalismo" com "tradicionalismo".
Assim como, em minha opinião, MAKE IT NEW é muito mais um "RENOVE" do que um "DÊ-NOS NOVIDADES". MAKE IT NEW é o desejo de não deixar engessar ou paralisar-se, não permitir que a poesia se torne peça de museu ou assunto apenas para especialistas.
Em meu trabalho pessoal, meditar sobre a oralidade é um desdobramento que eu vejo como coerente com a pesquisa que se dá também em minha escritura. Em minha busca por uma relação mais saudável com as dicotomias que herdamos de certo Ocidente, com sua separação violenta entre corpo e mente, matéria e espírito, sem mencionar outras (para não exagerar na polêmica), sempre busquei, em minha escrita e a partir de minha est-É-tica, que minhas imagens, metáforas, metonímas, símiles viessem de meu corpo, do corpo humano. Queria, como nos últimos versos do poema de exórdio do meu trabalho, o primeiro da Carta aos anfíbios, escrever "como uma garganta / enrijece-se rápida / para resistir à faca."
Antes mesmo de começar a trabalhar com a oralização de textos, já buscava, de alguma forma, viver na fronteira entre a escrita e a oralidade, como na longa sequência "Dedicatória dos joelhos", que abre minha coletânea a cadela sem Logos. Ou, ao querer tratar disso pela primeira vez, decidi não escrever um texto, mas busquei unir o FAZER e o DIZER, fazer/dizer, preparando algo como meu vídeo "Garganta com texto".
Apenas recuso a noção de uma hierarquia entre o trabalho poético oral/sonoro e o literário/visual. Há, no entanto, diferenças grandes no processo de cada prática. Como conciliá-las? É necessário conciliá-las? Talvez sejam complementares?
Já escrevi em outros textos sobre minha busca por uma POESIA TESA, preferindo este adjetivo a outros como "concreta" ou "densa". Eu acredito que um poeta buscando uma poesia TESA chega a resultados e processos muito distintos daqueles que procuram uma poesia CONCRETA ou DENSA. São focos de pesquisa distintos. Não se trata de melhor ou pior, mas creio necessário debater a implicação de cada.
Voltando de uma performance, devo mais uma vez meditar muito a respeito disso tudo. Aviso que passarei esta semana escrevendo sobre isso neste espaço.
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8 comentários:
Ricardo Domeneck, boa noite
eu sou Adeilton e escrevo contos e poesias. Separar som, performance, letra, poesia... pra mim, não tem sentido nenhum.A palavra pode ser declamada, cantada, pintada, instalada.Poesia pra mim não é o que se vê ou o que se ouve, isso pra mim é poema. Poesia pra mim é a satisfação, a alegria de escrever algo, de encontrar o termo certo para um texto.Poesia é vontade de escreve e poema é o que se escreve.Poesia não tem fronteira de limitação.É isso...
A Poesia também pode e deve tornar-se espetáculo.
Caro Adeilton,
há focos distintos de pesquisa. Todos os poetas separam estes focos em seus trabalhos. Pouquíssimos podem realmente dizer que são ou foram verbivocovisuais, para usar um termo comum no Brasil. Nem mesmo os do grupo Noigandres, que quase nada têm de poesia sonora. Os trovadores occitanos, ao que tudo indica, foram os últimos a unirem todos estes elementos. Ninguém é obrigado a uni-los. Há pesquisas que são estritamente visuais, outras sonoras, algumas textuais em um sentido mais amplo. Fico feliz, porém, que você tenha resolvido o problema para si e não precise deste debate.
Abraço,
Domeneck
Caro Carleto,
se a poesia DEVE tornar-se performance (imagino que você se refira a isso, ao usar o termo "espetáculo"), não sei. Não quero impor leis ou regras. Há vários poetas que me interessam muitíssimo e que são primordialmente ESCRITORES, como Lyn Hejinian e Emmanuel Hocquard. No entanto, creio que os poetas literários brasileiros ganhariam muito se levassem a oralidade em consideração, assim como os poetas orais ganhariam muito se atentassem mais para o trabalho literário.
Grande abraço,
Domeneck
Ricardo, procuro acompanhar seu trabalho e tenho o maior respeito por ele. Sua Estética está clara, agora (como vc mesmo anota Est-É-tica, dois conceitos em uma só relação, um entranhado no outro, esta é a ideia, a tentativa) não consigo "visualizar" sua ética, ela não fica clara. Tento pensar "ética" em várias vias: moral, cultural, dogmático etc. Poderia escrever sobre isso? Abraços,
Antônio Bastos
Pô, legal. Vamos estar por aqui.
Essa linha evolutiva que você, de certa forma, contesta me parece ser o grande inimigo de uma poesia mais plural. A poesia em linha (pra fazer uma metaforazinha) me parece mais um caixa de ferramentas, onde você acaba usando só as de cima. Me perece mais bacana colocar todas as ferramentas na parede, como numa oficina. Pra gente poder olhar pra todas elas e escolher a que for conveniente. Combinar duas ou mais. Ou descobrir um uso novo para uma ferramenta velha. Me parece mais prazeroso assim.
Caro Antônio,
tentarei abordar isso em um artigo.
Abraços
Domeneck
Silveira,
meu caro, gostei da imagem das ferramentas na parede.
Abraço,
Domeneck
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