sábado, 17 de outubro de 2009

Uma canção favorita: "In the pines", entre a voz e a escrita.

Descobri a canção "In the pines", também conhecida como "Black girl" e "Where did you sleep last night?", como a maioria das pessoas que conheço, através da versão de Kurt Cobain, quando se gravou o famoso concerto "acústico" do Nirvana, em 1993. Cobain diz, durante a gravação, que se tratava da versão de uma canção alheia, mencionando o cantor americano Lead Belly (1888 – 1949) como autor. Pesquisando mais tarde, descobri que se tratava de uma canção muito mais antiga, composta provavelmente na região da cordilheira dos Apalaches, uma espécie de berço para grande parte da cultura folk norte-americana. A versão de Lead Belly é uma das gravações mais antigas da canção.

(Lead Belly, "In the pines", "Black girl" ou "Where did you sleep last night?")

A letra da canção foi transcrita pela primeira vez em 1917, e já passou pela voz de Bob Dylan, Joan Baez e Dolly Parton. Cobain chama Lead Belly de seu "favorite performer" e apresenta o que me parece uma versão muito bonita para "In the pines", chamando-a por seu título alternativo, "Where did you sleep last night?".

(Kurt Cobain, acompanhado pelo Nirvana, "Where did you sleep last night?")

Durante a década de 90, não fui grande fã de Cobain, do Nirvana ou de qualquer banda daquilo que ficaria conhecido como movimento grunge. Por aquela época, minha atenção estava voltada para a música brasileira e para as Ilhas Britânicas, onde nascia por esta época o que ficaria conhecido como trip-hop, com grupos como o estupendo Portishead, da poeta lírica Beth Gibbons, poetas líricos individuais como Adrian Thaws, conhecido como Tricky, ou ainda de grupos como o Massive Attack. Além destes, sempre me interessei pelos grupos que tomaram a melhor influência dos anos 1980, dos Cocteau Twins, Sonic Youth ou The Jesus and Mary Chain, para grupos como o dos shoegazers do My Bloody Valentine ou o estranho-no-ninho do britpop: o Radiohead de Thom Yorke. Após a morte de Kurt Cobain e o naufrágio da inflacionada imprensa ao redor do grunge, pude ouvir o lindo, lindo rapaz com mais calma.

A propósito, chamo criaturas como Beth Gibbons e Adrian Thaws aqui de "poetas líricos", simplesmente baseado em um dos conceitos originais da tradição da poesia clássica. O romantismo transformou/distorceu o conceito de "poesia lírica", mas a poesia escrita para ser cantada seguiu sendo praticada e recebendo muitíssima atenção do público, enquanto literatos se descabelam. E enquanto estes se descabelam, a poesia lírica de sua venerada tradição continua sendo a arte mais popular do planeta. Talvez devêssemos apenas passar a chamá-la, já que a lira e a flauta já não são mais instrumentos para poetas, de "poesia guitarrítmica", assim como há hoje entre os poetas visuais a "poesia laptóptica"?

(Adrian Thaws, conhecido como Tricky, "Poems")


Qualquer poeta que se dê ao trabalho de conhecer a tradição completa e complexa da poesia, deveria saber que poetas cantando suas composições, com acompanhamento musical próprio ou alheio, é algo bem mais antigo que a prática de empilhar letras em folhas de papel. Não quero criar uma hierarquia, nem dizer que são a mesma coisa. Milênios de Literatura geraram características bastante específicas para o trabalho poético, diferentes da poesia oral e musicada. Tudo o que digo e creio é que "tradição" é algo muito mais complexo do que alguns querem fazer crer.

Um dos problemas está no hábito de transcrever textos orais, como textos escritos, e então julgá-los como Literatura, quando a poesia oral talvez devesse ser julgada por uma crítica também oral. Tenho praticado este exercício, iniciei uma série de "textos orais críticos", tentando encontrar uma maneira de criticar oralmente a poesia que foi composta para ser oralizada.

No entanto, é claro que o ponto de equilíbrio deve ser encontrado, como fizeram grandes poetas como Safo de Lesbos ou Arnaut Daniel, compondo poemas líricos, de tamanha qualidade literária, que sobreviveram por séculos apenas no papel, quando nasceram para a voz. São grandes textos literários, mas não podemos nos esquecer de como nasceram e qual a natureza de sua composição original. É claro, porém, que certas pesquisas poéticas podem ser feitas apenas como Literatura ou poesia visual, prescindindo dos aspectos sonoros e vocais da tradição poética, da mesma maneira como certas pesquisas poéticas podem ser feitas apenas oralmente, prescindindo dos aspectos visuais, ou até mesmo verbais, desta mesma tradição poética. A questão é simples: no Brasil, em grande parte, "signo" e "materialidade da linguagem" são entendidos como exclusivamente visuais. Para piorar tudo, essa obsessão por hierarquias e dicotomias tem gerado uma neurose insuportável.

Abaixo, "Cowboys", de Beth Gibbons, acompanhada pelo Portishead, um dos mais belos poemas líricos da década de 90, na opinião deste pobre literato que vos escreve, quando preferiria estar cantando.

(Beth Gibbons, acompanhada pelo Portishead, "Cowboys")

Sei que muitas pessoas não entendem minha obsessão por este debate, quando eu mesmo sou, basicamente, um "poeta-escritor", com apenas parte de minha pesquisa poética sendo feita como poesia oral. Sei também que alguns escritores verão a coisa toda como diletantismo, mas eu tenho tentado desenvolver o máximo de paciência possível para com eles, vários amigos estão entre estes. Sim, eu estou disposto a buscar respostas para minhas perguntas e perguntas para minhas respostas tanto em Bergson, Wittgenstein ou Benjamin, como em Arnaut Daniel, Guido Cavalcanti ou Murilo Mendes, sem deixar de buscá-las também em Björk, Portishead ou Tricky. A alguns ofende, eu sei, ler ou ouvir referências a estes nomes, de campos e "estratos" distintos, na mesma oração. Com estes: paciência, paciência.

Mas a questão me obceca também por suas implicações est-É-ticas. Neste caso, aquilo que ocupa minha mente/corpo é a tendência de separar corpos e mentes, todas as dicotomias derivadas e a neurose que daí resulta, em minha opinião. Parte de minha pesquisa como poeta, em tanto que escrevo, leio, filmo, assisto, vocalizo e ouço, é saber de que maneira a relação entre escritura e oralidade está entrelaçada nesta neurose. Seriam mesmo uma neurose, estas dicotomias e dualidades todas? Quando surgem? Com o aristotelismo? Com o nominalismo? Com o cartesianismo? De que maneira a voz e a escrita podem trazer-nos maior saúde? Mladen Dólar estaria certo ao dizer que a "voz é o que mantém unidos linguagem e corpo"? Isso nos ajudaria? Como encontrar uma maneira de evitar o que Ernest Becker chamava de the denial of death, ou uma cultura em que possa ser encarada de forma mais adulta?

Perguntas, perguntas para as quais busco respostas escritas e orais.

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3 comentários:

marcelo sahea disse...

Perfect.
Onde eu assino?
Abreijos!

Ricardo Domeneck disse...

Sahea!

Companheiro na busca de uma tradição mais complexa, grande abraço, meu caro.

beijo do Domeneck

nora disse...

Ah, Ricardo. Algumas pessoas se mexem.
Paciência com os que não.
Fiquei feliz com a coincidência de pensar em música e poesia , eu de uma forma muito pessoal e até inocente no post que coloquei no meu blog. Gostei de vir aqui e ver seus ( e agora nossos) questionamentos. "
Poesia guitarrítmica é bom demais!
O seu livro é um dos que conto para minhas transformações.

bjs,

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