Desde que iniciei meu trabalho de pesquisa e tradução dos poetas dadaístas, muito de suas propostas tem me guiado na fundamentação de minha própria est-É-tica. O trabalho formal, ainda ignorado por grande parte da historiografia literária das vanguardas, de poetas incríveis como Hans Arp e Tristan Tzara, por exemplo, apontam para caminhos ainda interessantíssimos de escrita poética. Infelizmente, de Tzara tudo o que se divulga, quase como anedota, é o "Como fazer um poema dadaísta", ainda assim ignorando as fortes implicações est-É-ticas deste texto, com seu final auspicioso: "Le poème vous ressemblera."
Além do trabalho poético formal de Hans Arp e Tristan Tzara (quase nada há nos surrealistas que já não estivesse nestes poetas, ou em franceses independentes como Guillaume Apollinaire e Pierre Albert-Birot) e dos trabalhos visuais em colagem e montagem de Kurt Schwitters, Hannah Höch e Raoul Hausmann, há um outro trabalho importantíssimo dos poetas ligados ao Cabaret Voltaire, em minha leitura, e ainda mais ignorado, com que aprendo muitíssimo e do qual retiro implicações frutíferas para meu trabalho. Que obra importante é essa, tão ignorada, dos poetas ligados ao Cabaret Voltaire?
O próprio Cabaret Voltaire.
Se, como parcos exemplos de estímulos, ainda podemos encontrar, em Tristan Tzara, material para uma pesquisa sintática e imagética; se, em Hans Arp, o estímulo para um trabalho satírico e iconoclasta que se apropria das próprias formas e métricas da tradição; se em Hugo Ball estão as sementes para muito da pesquisa sonora e de performance do pós-guerra; se, com Schwitters e Höch, podemos iluminar algumas das estratégias de John Cage, do Fluxus, do Punk, da Pop Art e do Neoconcretismo de Oiticica e Clark; em grande parte, mesmo os historiadores e críticos interessados no Cabaret Voltaire e na revista DADA deixam de lado a importância das implicações da fundação do próprio Cabaret Voltaire, assim como da reunião destes artistas no local e as formas de intervenção e interação que ali se davam. A fundação do Cabaret Voltaire demonstra o desejo, por parte destes poetas e artistas, de uma interação e intervenção na própria comunidade em que viviam. Ali, a arte se tornava coletiva, a apreciação estética se confundia com o entretenimento e a criação individual com a celebração comunitária. Nada poderia estar mais em desacordo com a narrativa oficial sobre o modernismo internacional, como a que Hugo Friedrich tentou estabelecer em seu Estrutura da lírica moderna (1956), de uma "arte pura", desconectada de seu público, des-historicizada, aristocrática, difícil, narrativa que tem sido questionada por vários críticos contemporâneos, de Alfonso Berardinelli a Fredric Jameson e Marjorie Perloff.
Em Berlim, onde todas as vanguardas parecem se politizar fortemente, o dadaísmo assumiu seu caráter mais combativo em termos de intervenção política. Só a Internacional Situacionista, quatro décadas mais tarde, viria a unir a estética e a política com tamanha agressividade. Não preciso dizer que os dadaístas do entre-guerras e os situacionistas do pós-guerra estão no centro de meu pensamento crítico.
A crítica contemporânea segue dividindo os trabalhos dos artistas mais plurais do século passado em gêneros e categorias que já não faziam mais sentido mesmo no século XIX. Estuda-se a música de John Cage, mas não seus textos. Admiramos o trabalho visual de Jean Arp, mas não seus poemas, publicados como Hans Arp. A expressão "multimídia", em minha opinião, apenas desmascara a inadequação do discurso crítico do pós-guerra. É claro que há artistas excepcionais trabalhando dentro de gêneros específicos. Há poetas-escritores publicando ótimos livros e interessados de maneira legítima na pesquisa literária tão-somente, como há cineastas fazendo filmes excelentes e músicos interessados em música. Como, no entanto, analisar o trabalho dos que dançam entre gêneros e contextos?
Pessoalmente, a discussão me interessa por estar entre os que produzem nas fronteiras dos gêneros. Escrevo poemas para a página, escrevo poemas para a voz, poemas para a tela. Existe, no entanto, um aspecto do meu trabalho que é tão ligado ao contexto específico da comunidade em que vivo (retornando à discussão do Cabaret Voltaire), que apenas os berlinenses podem conhecer. Em muitos casos, trata-se do aspecto mais forte que muitos conhecem, em Berlim, do meu trabalho: além do meu trabalho como DJ, o de curador, há cinco anos e com o coletivo de que faço parte, de uma série de intervenções às quartas-feiras, no clube Neue Berliner Initiative, NBI. Fundamentado pelo trabalho precursor e exemplar do Cabaret Voltaire, temos nele nos espelhado para aterrar a trincheira entre criação e curadoria, por exemplo. Por alguns anos, organizamos o evento conhecido como "Berlin Hilton", um comentário irônico sobre o culto de celebridades de que Paris Hilton é exemplo. Este mês, relançamos o evento como "SHADE inc", nome tirado do documentário Paris Is Burning (1990), de Jennie Livingston. Escreverei especificamente sobre isso em breve.
Isso requer o retorno a uma noção do poeta inserido em sua comunidade. Aqui, a noção de coterie torna-se uma das ambições mais honestas do poeta. Veleidades de "Literatura Universal" são quase risíveis nesta perspectiva. O poeta talvez (note o talvez, meu querido) devesse querer atingir, ao máximo, em primeiro lugar a última fila dos expectadores presentes, aquele rapaz ou moça lá no fundo da sala, antes de querer ser lido por um ausente e hipotético estranho na Sibéria, Madagascar ou Poughkeepsie, em tradução.
Além disso, dentro de uma est-É-tica da presença, sigo acreditando que o melhor caminho para um desejo de resistência e intervenção política não é aquele proposto por Adorno, o da resistência pela negatividade, pela negação do exílio, como ele escreve no ensaio "Lírica e sociedade". Não estou condenando os que a escolhem. Apenas não creio em sua eficácia e decidi guiar-me por outros parâmetros. Talvez precisemos de ambos. De qualquer maneira, não creio que todos precisem trabalhar com essas questões. Não há obrigações. Tenho preferido a tática da guerrilha e da resistência interna, da sabotagem. Esse caminho é cheio de contradições, pois sei que é difícil separar, neste caso, o resistente do colaboracionista.
Mas um dos meus guias é o poema "Primavera nos dentes", do poeta português João Apolinário (1924 - 1988), poema que foi musicado por seu filho com a banda Secos e Molhados. Uma das minhas regras pessoais está em seus versos: "No centro da própria engrenagem / Inventa a contra-mola que resiste."
"Primavera nos dentes", poema de João Apolinário e música de João Ricardo, vocalizado por Ney Matogrosso, com a banda Secos e Molhados.
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quarta-feira, 21 de abril de 2010
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2 comentários:
Me interesso muito pelos dadaístas e concordo contigo em relação a poesia de Tzara. Sobre primavera nos dentes, letra e música geniais. Abraços.
Rafael,
aquele primeiro disco dos Secos e Molhados tem textos ótimos. Aquele "suave coisa nenhuma!" da canção "Amor" sempre me pega. "Primavera nos dentes" é excelente também.
abraço
Domeneck
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