domingo, 18 de abril de 2010
Katyn.
Assisti este fim-de-semana a um dos últimos filmes do polonês Andrzej Wajda, intitulado Katyn (2007), sobre o massacre perpetrado pelo exército soviético contra prisioneiros de guerra poloneses, cerca de 22.000 pessoas, executadas com um tiro na nuca nas florestas de Katyn e arredores, na Rússia. Cerca de 8.000 eram oficiais do exército polonês. Os outros eram médicos, engenheiros, professores universitários, estudantes. A estratégia era procurar eliminar toda a intelligentsia polonesa, para, após a guerra, tomar justamente aquilo que os nazistas tentaram tomar: o país.
Os alemães descobriram as covas em 1943, o que levou à quebra de relações diplomáticas entre o governo polonês, exilado em Londres, e Moscou, que negaria (e, mais tarde, culparia os alemães) responsabilidade pelo massacre até 1990, quando o governo de Gorbachev decidiu confirmar a responsabilidade soviética pelo massacre.
Tal ação foi possível porque, quinze dias depois da Alemanha invadir a Polônia a oeste, a União Soviética invadiria a Polônia pelo leste, obviamente com a desculpa oficial de conter o avanço nazista. Era como se o país, na verdade, fosse disputado como um pedaço de carne por dois cães raivosos. Entre os massacres nazistas e os massacres soviéticos, o país seria deixado em frangalhos.
O filme trata dos anos da guerra, mas também dos anos imediatamente posteriores. Aqui, eu faria um comentário. No Brasil, impera com força a impressão do fim da guerra que foi divulgada pelos americanos, com imagens de alegria nas ruas de Nova Iorque, também em Londres e Paris. Como se o fim oficial da guerra houvesse realmente trazido paz completa para todos os territórios envolvidos. Berlim e a maior parte das cidades alemãs estavam em ruínas. O mesmo nas grandes cidades do Leste Europeu. Nos próximos anos, milhares daqueles que sobreviveram à guerra morreriam de fome e de frio nos invernos de 1945 e 1946. Nos países sob domínio soviético, os expurgos seguiriam, para garantir que os países se mantivessem sob seu domínio, eliminando muitos homens e mulheres da Resistência polonesa, como da Resistência em outros países, por representarem um perigo de revolta nacional contra o Kremlin. Homens e mulheres que sobreviveram a cinco anos de extermínio, escondendo-se em florestas, de onde comandariam ataques de guerrilha contra os alemães, seriam mais tarde arrastados de suas casas e lançados em prisões ou executados.
O poeta vocal / songwriter / cantautor polonês Jacek Kaczmarski (1957 - 2004) tem uma canção em que faz sua elegia aos mortos do massacre, chamada "Ballada Katyńska", da qual, infelizmente, ainda não consegui encontrar traduções.
Morar nesta parte da Europa, quando se é minimamente sensível a estes fluxos e refluxos históricos, pode ser por vezes bastante perturbador. Sente-se ainda no ar o vácuo deixado por tantos mortos. Berlim é uma janela privilegiada para o Caos contemporâneo, o dos nossos próprios massacres. Esta cidade, por onde caminhou Benjamin, o formidável, que me incita a olhar a cara do Anjo da História. O que é o mesmo que encarar o Abismo, o que dizem que o encara de volta.
Esta é uma postagem sobre os poloneses.
Ainda que pareça pueril dizer isso, já que não falo a língua do país, a poesia polonesa é uma das que mais amo. Tudo, obviamente, lido em traduções para o português, inglês ou alemão, mas mesmo assim importantíssimas para mim. Leio com admiração todas as traduções que encontro de dois poetas em especial: Zbigniew Herbert (1924 - 1998) e Wisława Szymborska (n. 1923). O mais famoso talvez tenha sido Czesław Miłosz (1911 - 2004), Nobel de 1980. Não creio que haja traduções muito vastas destes poetas no Brasil. O professor e tradutor Aleksandar Jovanović publicou suas traduções para poetas do Leste Europeu no importante Céu vazio: 63 poetas eslavos (São Paulo: Hucitec, 1996). O livro é uma preciosidade e, se você não o tem, procure-o. Há belos poemas de Herbert e Szymborska no volume.
De Herbert, amo imensamente, entre muitos outros, o poema "Relato de uma cidade sitiada", que está no volume da Hucitec, assim como todos os do volume Senhor Cogito (1974), livro satírico e pungente, que seria muito saudável traduzir e publicar no Brasil, onde por um par de décadas os poetas pareceram sofrer de fobia emocional. De Szymborska há vários poemas que amo. Já escrevi, certa vez, sobre o poema "Autotomia", sobre como houve uma época em que ele me ajudava a sair da cama e enfrentar o dia, assim como, entre outros, "The night", de Robert Creeley, ou "Amar", de Carlos Drummond de Andrade.
Outros poetas poloneses muito bons: Jarosław Iwaszkiewicz (1894 - 1980), também prosador, de quem o cineasta Andrzej Wajda já filmou algumas histórias; o ótimo Tadeusz Różewicz (n. 1921), e, entre os importantes poetas contemporâneos, muito traduzido por aqui: Adam Zagajewski (n. 1945). Entre os mais jovens, citaria Eugeniusz Tkaczyszyn-Dycki (n. 1962) e Adam Wiedemann (n. 1967), que tive o prazer de escutar no Festival de Poesia de Berlim de 2009, quando a Polônia foi um dos países convidados.
Compartilho com vocês dois de meus poemas favoritos em todo o Universo, de Herbert e Szymborska. Mostro-as aqui em tradução para o inglês, pois meu exemplar de Céu vazio: 63 poetas eslavos, infelizmente, ficou no Brasil.
Report from the Besieged City
Zbigniew Herbert
Too old to carry arms and fight like the others -
they graciously gave me the inferior role of chronicler
I record - I don't know for whom - the history of the siege
I am supposed to be exact but I don't know when the invasion began
two hundred years ago in December in September perhaps yesterday at dawn
everyone here suffers from a loss of the sense of time
all we have left is the place the attachment to the place
we still rule over the ruins of temples spectres of gardens and houses
if we lose the ruins nothing will be left
I write as I can in the rhythm of interminable weeks
monday: empty storehouses a rat became the unit of currency
tuesday: the mayor murdered by unknown assailants
wednesday: negotiations for a cease-fire the enemy has imprisoned our messengers
we don't know where they are held that is the place of torture
thursday: after a stormy meeting a majority of voices rejected
the motion of the spice merchants for unconditional surrender
friday: the beginning of the plague saturday: our invincible defender
N.N. committed suicide sunday: no more water we drove back
an attack at the eastern gate called the Gate of the Alliance
all of this is monotonous I know it can't move anyone
I avoid any commentary I keep a tight hold on my emotions I write about the facts
only they it seems are appreciated in foreign markets
yet with a certain pride I would like to inform the world
that thanks to the war we have raised a new species of children
our children don’t like fairy tales they play at killing
awake and asleep they dream of soup of bread and bones
just like dogs and cats
in the evening I like to wander near the outposts of the city
along the frontier of our uncertain freedom.
I look at the swarms of soldiers below their lights
I listen to the noise of drums barbarian shrieks
truly it is inconceivable the City is still defending itself
the siege has lasted a long time the enemies must take turns
nothing unites them except the desire for our extermination
Goths the Tartars Swedes troops of the Emperor regiments of the Transfiguration
who can count them
the colours of their banners change like the forest on the horizon
from delicate bird's yellow in spring through green through red to winter's black
and so in the evening released from facts I can think
about distant ancient matters for example our
friends beyond the sea I know they sincerely sympathize
they send us flour lard sacks of comfort and good advice
they don’t even know their fathers betrayed us
our former allies at the time of the second Apocalypse
their sons are blameless they deserve our gratitude therefore we are grateful
they have not experienced a siege as long as eternity
those struck by misfortune are always alone
the defenders of the Dalai Lama the Kurds the Afghan mountaineers
now as I write these words the advocates of conciliation
have won the upper hand over the party of inflexibles
a normal hesitation of moods fate still hangs in the balance
cemeteries grow larger the number of defenders is smaller
yet the defence continues it will continue to the end
and if the City falls but a single man escapes
he will carry the City within himself on the roads of exile
he will be the City
we look in the face of hunger the face of fire face of death
worst of all - the face of betrayal
and only our dreams have not been humiliated
§
Tortures
Wislawa Szymborska
Nothing has changed.
The body is susceptible to pain,
it must eat and breathe air and sleep,
it has thin skin and blood right underneath,
an adequate stock of teeth and nails,
its bones are breakable, its joints are stretchable.
In tortures all this is taken into account.
Nothing has changed.
The body shudders as it shuddered
before the founding of Rome and after,
in the twentieth century before and after Christ.
Tortures are as they were, it's just the earth that's grown smaller,
and whatever happens seems right on the other side of the wall.
Nothing has changed. It's just that there are more people,
besides the old offenses new ones have appeared,
real, imaginary, temporary, and none,
but the howl with which the body responds to them,
was, is and ever will be a howl of innocence
according to the time-honored scale and tonality.
Nothing has changed. Maybe just the manners, ceremonies, dances.
Yet the movement of the hands in protecting the head is the same.
The body writhes, jerks and tries to pull away,
its legs give out, it falls, the knees fly up,
it turns blue, swells, salivates and bleeds.
Nothing has changed. Except for the course of boundaries,
the line of forests, coasts, deserts and glaciers.
Amid these landscapes traipses the soul,
disappears, comes back, draws nearer, moves away,
alien to itself, elusive, at times certain, at others uncertain of its own existence,
while the body is and is and is
and has no place of its own.
.
.
.
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