§ - Na companhia de E.T.A. Hoffmann, no Mercado dos Gendarmes.
A editora Cosac Naify lançou este ano, pela primeira vez no Brasil, o último relato do alemão E.T.A. Hoffmann (1776 - 1822), intitulado Des Vetters Eckfenster (1822), traduzido por Maria Aparecida Barbosa como A janela de esquina do meu primo (São Paulo: Cosac Naify, 2010), com ilustrações de Daniel Bueno, quarta-capa de Modesto Carone e posfácio de Marcus Mazzari.
O relato é bem diferente do que nos acostumamos a associar com Hoffmann, sendo considerado um precursor da literatura realista que se tornaria hegemônica em pouco menos de duas décadas. O relato seria também uma das primeiras instâncias em que a "multidão" se torna personagem do texto literário, influenciando Edgar Allan Poe e seu "The Man of the Crowd" (1844), mais uma vez mostrando-se precursor do que passaríamos a associar com a modernidade, a partir, por exemplo, do trabalho poético de Charles Baudelaire. De qualquer forma, não é sobre isso tudo que vou escrever aqui. Como o relato se passa em Berlim, mais precisamente na praça do Gendarmenmarkt (Mercado dos Gendarmes), a Cosac Naify convidou-me para escrever um texto sobre o local hoje. Há duas semanas, com o livro de Hoffmann na sacola, peguei o bonde e fui para a praça, onde passei umas horas e alguns copos de vinho na antiga taverna onde Hoffmann costumava se embebedar. A editora publicou este fim-de-semana, no blog que mantém, o texto que produzi naquela tarde. Convido os generosos leitores deste espaço a visitarem o blog da editora e, caso se interessem, podem ler abaixo meu pequeno relato.
Mercado dos Gendarmes
No Berlimbo, abril é o mais temperamental dos meses. Após alguns dias de primavera enganosa, retorna o fim de inverno úmido, e os berlinenses e metecos preparam-se para mais uma ou duas semanas de hibernação. Como dizem os alemães, April macht was er will, abril faz o que quer. Ponho na sacola a edição brasileira do último conto de E. T. A. Hoffmann, o esquisito, e me ponho em marcha para o Gendarmenmarkt, ou Mercado dos Gendarmes, onde tanto se passa a história do alemão, como também é onde viveu o próprio Hoffmann nos últimos anos de sua vida, na esquina da Charlottenstrasse com a Taubentrasse. Havia, até então, estado duas únicas vezes no Gendarmenmarkt. A primeira delas para um concerto, no qual meu amigo Ulrich Grau tocava a trompa, com a Nona Sinfonia inacabada de Anton Bruckner e a estreia mundial do Concerto para violino do compositor contemporâneo alemão Jörg Widmann no programa daquela noite, na Konzerthaus. A segunda vez em que estive na praça que abriga, além da Casa de Concertos, a Igreja Alemã e a Igreja Francesa, foi para visitar com amigos o tradicional Weihnachtsmarkt que ocorre ali todos os natais, um costume que teria um paralelo com as festas juninas no interior de São Paulo e outros estados, com as barracas de bebidas quentes.
Segui com o bonde M1 até a Friedrichstrasse, lendo Hoffmann e pensando sobre os antigos gendarmes que deram nome ao local, há muito desaparecidos. De qualquer forma, outro nome de caráter militar, numa cidade onde ainda encontramos crateras das últimas loucuras militares. É pensando em Hoffmann, nas mudanças vertiginosas por que passou esta cidade desde os seus dias, transformações e catástrofes marcadas por ensandecidas campanhas militares, de gendarmes ou não, que eu desço a Friedrichstrasse, área por onde passo com pouca frequência.
Há uma cãibra no ar, uma tensão estranha, policiais espalhados por todos os cantos. Lembro-me então de que estamos muito próximos do dia 1° de maio, este gracioso “Dia Internacional do Trabalho”, mas também chamado, pelos moradores desta que é a cidade onde Rosa Luxemburgo foi assassinada, de Kampftag der Arbeiterbewegung (Dia de Luta do Movimento Trabalhista), quando ocorrem as manifestações anuais, choques por vezes violentos entre protestantes e a polícia que se aglomera na capital do país. Caminho com os olhos buscando as placas que sinalizam a direção para o Gendarmenmarkt, quando ouço alguns gritos e vejo um aglomerado em frente a uma das boutiques típicas nesta rua principal da cidade. Talvez guiado por aquela vertigem de rua, chego mais perto e vejo, entre as pernas dos transeuntes, agora espectadores, quatro policiais rendendo, com violência, um homem que segue gritando em uma língua que não conheço. Um dos policiais tem o joelho nas costas do homem, quase à sua nuca, e o homem, já algemado e ainda gritando, tem ainda outros dois policiais com os joelhos sobre si, abaixo da cintura e sobre suas pernas, na dobra dos joelhos. Meu corpo estrangeiro se encolhe todo, como um animal acuado, reflexo de imigrante, meu estômago revira-se em ressaca de asco por aqueles policiais. Se o aglomerado de transeuntes estivesse olhando para o alto, eu teria esperado o Anjo de Benjamin, ou ainda melhor, o do Apocalipse.
Chego ao Gendarmenmarkt com o frio cortando a cara e o estômago ainda nublado, e começo a procurar a antiga taverna Lutter & Wegner, que fica bem abaixo de sua antiga janela e onde Hoffmann costumava se embebedar. A esta altura, um copo de vinho tinto gritava em minha imaginação, pedindo para ser ingerido, quem sabe até o nível alcoólico permitido. Pela lei? Não, apenas pela minha capacidade de escrevinhar. Demorou um pouco para que encontrasse a taverna, porque buscava a que existia em minha imaginação, alguma sala escura, algo saído dos próprios contos de Hoffmann, não aquele restaurante sofisticado que hoje ali existe sob o mesmo nome. De qualquer maneira, aquilo espelhava, para mim, as próprias transformações por que passou esta parte da cidade desde a época do escritor. Se o último conto de Hoffmann descrevia a movimentação vivíssima de uma área residencial, as ruas que cercam hoje o Gendarmenmarkt conhecem, de mercado, apenas o que grandes lojas de designers internacionais têm a oferecer, além dos hotéis mais caros da cidade, como o Hilton e o Regent. Sabendo que não teria dinheiro para comer naquele lugar, entrei mesmo assim na então-taverna-boêmia, hoje-restaurante-rico, com a efígie de Hoffmann em homenagem à entrada. Que o leitor perdoe o hábito folclórico de escritor jovem, esta vontade de estar entre as mesmas quatro paredes que abrigaram um antepassado grande e famoso. Sonho de osmose.
O garçom com cara de tédio demorou, como sempre acontece em Berlim, até que eu pudesse pedir o idolatrado salve-salve copo de vinho tinto. Com o livro na mão, pus-me à janela, à espera e esperança que passassem, se eu tivesse sorte, alguns jovens moços alemães, bonitos como potros. Mas eu tinha pouca esperança e mesmo esta se frustrou. No restaurante, apenas senhores e senhoras antiquíssimos, com certa auréola de bolor, provavelmente fingindo viver ainda na década de 30 ou 40. Quando vejo estes velhotes alemães, com suas estruturas ósseas de cristal que parecem poder se quebrar ao toque da brisa, é justamente a pergunta que não consigo evitar: estavam onde, meus queridos, lá pelos idos de 1939, jubilavam pelas ruas ou se escondiam em porões? Depois do número de copos de vinho que meu parco orçamento de poeta permitia, saí da taverna, com o delírio de talvez ter inspirado algum vírus que resistira desde os tempos de Hoffmann, despregando-se das paredes e narinas adentro. Decidi caminhar alguns minutos pela praça, apesar do vento insuportável, indo da Igreja Alemã à Francesa e vice-versa, cercado por turistas, com seus exemplares atualíssimos de Let´s Go Germany, e eu por fim penso Let´s Go, Germany. Nem um moço sequer na praça, me pergunto se Hoffmann era bonito. As pinturas não prometem muito. Caminho então de volta para a minha caverna na antiga Berlim Oriental, cortando caminho pela multidão, que se mudara do Gendarmenmarkt para a sucessão de boutiques nas ruas adjacentes, entre o consumo e a consumação.
Ricardo Domeneck
Berlim, abril de 2010
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NOTA: Leituras do fim-de-semana, como sugestões:
§ - o poeta latino Marco Valério Marcial; os mexicanos Xavier Villaurrutia e Salvador Novo; uma antologia de 1955, encontrada num sebo, que reúne os expressionistas germânicos, intitulada Lyrik des expressionistischen Jahrzehnts, ou "Poesia da Década Expressionista", com introdução de Gottfried Benn; e o último livro do brasileiro Marco Catalão, chamado O Cânone Acidental (2009).
Essa semana devo finalmente começar a ler o famoso Ferdydurke (1937), de Witold Gombrowicz, numa edição que trouxe de Buenos Aires há 4 anos.
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segunda-feira, 17 de maio de 2010
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