Passei os últimos dias trabalhando na tradução de um de meus poemas favoritos, o belo "Inniskeen Road: July Evening", do irlandês Patrick Kavanagh (1904 - 1967). Creio ter lido o poema pela primeira vez há cerca de dez anos, na seção de língua inglesa de uma grande livraria de São Paulo, onde encontrei a bonita edição da Penguin para os seus Selected Poems. O texto é o que gosto de chamar de soneto sutil, algo que encontramos com frequência em Kavanagh. Não se trata apenas da matéria de importância desinflada que compõe em grande parte o trabalho do irlandês, mas também algo de muito delicado no ritmo e andor do soneto, com seus enjambements e quebras-de-linha, que parecem, aos meus ouvidos, fazer com que as rimas não soem tão tonitruantes quanto se poderia esperar. Se decomposto, seria talvez possível, a alguns, dizer que nada há de novo (este adjetivo muitas vezes apenas preguiçoso da crítica contemporânea) ou especial no poema. Segue o esquema dos sonetos de Shakespeare, ABAB CDCD EFEF GG, assim como o iambic pentameter, com rimas simples como tonight/delight, contemplation/nation, king/thing. Mas trata-se de um daqueles exemplos de poemas que elidem as tentativas de mera decomposição formal. Afastando-se das belas meditações de Shakespeare, Kavanagh usa a forma para apresentar um quadro bastante telúrico, com uma estrada de província (algo como a "estrada de Minas, pedregosa" de seu contemporâneo, Carlos Drummond de Andrade), com a imagem tradicional do poeta solitário em meio à natureza, em aparente contemplação romântica, para então subverter o esperado louvor do natural com uma espécie de ânsia pelo cultural e humano.
Inniskeen Road: July Evening
Patrick Kavanagh
The bicycles go by in twos and threes -
There's a dance in Billy Brennan's barn to-night,
And there's the half-talk code of mysteries
And the wink-and-elbow language of delight.
Half-past eight and there is not a spot
Upon a mile of road, no shadow thrown
That might turn out a man or woman, not
A footfall tapping secrecies of stone.
I have what every poet hates in spite
Of all the solemn talk of contemplation.
Oh, Alexander Selkirk knew the plight
Of being king and government and nation.
A road, a mile of kingdom, I am king
Of banks and stones and every blooming thing.
Em meio à aparente simplicidade e até facilidade, encontramos algumas pérolas, como, por exemplo, o belo neologismo de "wink-and-elbow", que usa palavras comuns como "wink" (piscada) e "elbow" (cotovelo), trabalhando a partir da referência à expressão "a wink and a nudge", ou seja, algo como uma piscada e uma cotovelada, para criar uma bela imagem de cumplicidade e flerte entre os ciclistas que se cruzam na estrada, a caminho de uma festa. Em uma tradição tão forte como a do verso inglês, ele nos refresca com versos sublimes como "Upon a mile of road, no shadow thrown" e seu companheiro-de-rima em "A footfall tapping secrecies of stone". Além disso, Kavanagh combina o esquema de rimas shakesperiano ao uso italiano da oitava que propõe e o sexteto que contrasta ou responde, mas com uma leveza retórica que surpreende.
Confesso que meus olhos têm, hoje em dia, mais prazer no soneto inglês do que em seu irmão italiano, praticado com muito mais frequência no Brasil, e sei que essa diferença gráfica influi grandemente nesta sensação de sutileza, que tento aqui indicar no texto de Patrick Kavanagh. Qualquer olho minimamente treinado reconhece o soneto italiano como soneto antes mesmo de ler a primeira palavra, gerando toda uma série de expectativas que, após tanto debate modernista, acaba frustrando a individualidade essencial de todo e qualquer poema, independente da forma fixa a que se filia. Requer-se certa energia crítica (por vezes cansativa) para não fazer de todo e qualquer soneto uma espécie de arena estético-ideológica, a partir do século XX.
No Brasil, o soneto inglês teve poucos praticantes. Penso, entre os modernistas, em Manuel Bandeira (1886 - 1968), que escreveu o bonito "Soneto inglês n° 2":
Soneto Inglês no. 2
Manuel Bandeira
Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar um grito de ódio a quem o fez.
As delicias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao gênero sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer de esperança nem de espanto,
Nada pedir, nem desejar, senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé num mundo além do mundo. E então,
Morrer sem uma lágrima que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.
Neste novo século, um poeta que o pratica de maneira impressionante é o paulista Érico Nogueira, que publicou uma série com 24 deles em sua coletânea de estreia, intitulada O Livro de Scardanelli (São Paulo: É, 2008), série da qual reproduzo abaixo também o de número 2:
Soneto número 2 da série "Cancioneiro Inglês ou de Sandra Gama"
Érico Nogueira
Para que seja próprio, distinguido,
um mal precisa, não modificar
as vias que o têm feito se inflamar
desde um tempo remoto, há tempos ido.
Ele precisa, barco destemido
ante a borrasca e o furacão do mar,
ser com um câncer mau, que vai voltar
por quantas vezes seja removido.
Mal que adoece de causas ancestrais
e coalha o sangue que fervilha agora
e que fervilha para nunca mais,
fruta chupada, derretida amora.
A boca antiga, então, se mostra hábil
para falar do que corrói o lábio.
Publiquei na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., ontem, duas tentativas minhas de tradução para o soneto sutil de Patrick Kavanagh. Na primeira, afastei-me no terceiro quarteto do esquema de rimas shakesperiano, nem pude reproduzir muito do ritmo de Kavanagh.
Estrada em Inniskeen: Noite de Julho
As bicicletas rondam em trios e duplas -
Há festa no celeiro de Billy Brennan hoje
E há o código do mistério que sussurra
No prazer da língua de pálpebra-e-toque.
Oito-e-meia e não há mancha qualquer
Em uma milha de estrada, nem sombra
Que possa tornar-se homem ou mulher,
Sapato a arrancar segredos das rochas.
Eu possuo aquilo que todo poeta detesta
Apesar de elogios solenes da contemplação.
Ah, Alexander Selkirk conhecia a maldição
De ser o governado e o que governa.
Uma estrada, império de uma milha, sou mestre
De margens e rochas e tudo o que floresce.
(Patrick Kavanagh: tradução de Ricardo Domeneck)
Alexander Selkirk (1676 – 1721) foi o náufrago que teria inspirado a personagem de Daniel Defoe em seu Robinson Crusoe (1719). Se publico esta versão, é por ter tido prazer em algumas de suas soluções, tentando fazer com que o soneto funcione em português. Talvez tenha sido mais feliz, em termos de tradução, digamos, nesta outra versão:
Estrada em Inniskeen: Noite de Julho
As bicicletas seguem em trios e duplas -
Baile no celeiro de Billy Brennan à noite
E há o mistério que em código murmura
E a língua do piscar-e-gesto em posse.
Oito e meia e não há mancha qualquer
Em uma milha de estrada, nem gleba
Que venha a suster homem ou mulher,
Som de passos a tatear psiu de pedras.
Eu possuo aquilo que todo poeta abomina
Apesar de falas pomposas de contemplação.
Ah, Alexander Selkirk bem sabia da sina
De representar rei, parlamento e nação.
Estrada, uma milha de império, sou mestre
De margens e pedras e tudo o que floresce.
Deixo o julgamento aos leitores deste espaço, e a colegas muito mais competentes que eu, como Érico Nogueira, Dirceu Villa, João Filho e Marco Catalão. De qualquer maneira, eficiente ou não minha tentativa de tradução, espero que este artigo e o da Modo de Usar & Co. sirvam como incentivo a procurar mais do trabalho belíssimo de Patrick Kavanagh.
Há, porém e ainda, um outro aspecto do trabalho do irlandês que me parece muito interessante para o debate poético brasileiro, a que aludi no título deste artigo, chamando o irlandês de "poeta paroquial". Na apresentação do poeta na Modo, escrevo que Kavanagh está entre os poetas modernistas que se mantiveram, em certos aspectos, ligados à linguagem e à vida de sua província, algo como o brasileiro Carlos Drummond de Andrade, o americano William Carlos Williams, o espanhol Antonio Machado ou o italiano Guido Gozzano, o que os torna bastante conhecidos em suas comunidades linguísticas mas os mantém obscuros para a narrativa crítica oficial do chamado "Modernismo Internacional", que privilegiou a dicção tida como "cosmopolita", ou, digamos, "urbana" e "metropolitana" de poetas como Eliot, Ungaretti ou Apollinaire. No volume Da Poesia à Prosa (São Paulo: Cosac Naify, 2007), o crítico italiano Alfonso Berardinelli argumenta em favor da modernidade destes poetas "da província", no interessante ensaio "Cosmopolitismo e provincianismo na poesia moderna", tecendo seu "elogio do provincianismo" ao discutir poetas italianos como Marino Moretti e Guido Gozzano, com implicações interessantes também para uma discussão da poesia brasileira moderna. Lendo os poemas localistas do irlandês, seria fácil confundir tal escrita com as poéticas nacionalistas que frutificaram entre os vários modernismos nacionais, não apenas no Brasil. Patrick Kavanagh, porém, chegou a defender a ideia de uma poética paroquial, ou seja, um localismo que buscava salvaguardar as várias diferenças enriquecedoras, mesmo dentro de um pequeno país como a Irlanda, contra aquilo que ele via como a criação de uma simbologia genérica de unidade nacional fictícia, tornando-se um crítico feroz da geração anterior, a do Irish Literary Revival, de autores como Lady Gregory, J.M. Synge e o mais famoso deles: W.B. Yeats. Isso teria implicações muito interessants para a discussão de nosso modernismo, que também buscou criar uma simbologia genérica de identidade nacional, que hoje flagramos em toda a sua artificialidade e ficção. Não deixa de ser interessantíssima a maneira como Kavanagh combateria o nacionalismo com uma espécie tão intransigente de localismo, em um trabalho extremamente complexo e talvez cheio de contradições. Em 1942, o irlandês publicou o importante The Great Hunger, em que se alinha à tradição bárdica das ilhas, com antepassados como Taliesin (c. 534 - c. 599) e seu contemporâneo Aneirin. Mais tarde, Kavanagh rejeitou neste poema o que ele chamaria de sua "compulsão messiânica", criticando nele a "Tragédia", que o poeta, no fim da vida e na introdução de seus Collected Poems, descreveria como "Comédia subdesenvolvida". Para ele, o cômico passaria a ser alvo muito mais alto que o trágico, afirmando que todo grande poeta deveria possuir humorousity. Pessoalmente, encontro tanto o trágico como o cômico em The Great Hunger, e aprecio imensamente a maneira como ele vincula religiosidade e sexualidade, algo que, no Brasil, apenas Murilo Mendes e Hilda Hilst parecem ter praticado.
Maguire was faithful to death:
He stayed with his mother till she died
At the age of ninety-one.
She stayed too long,
Wife and mother in one.
When she died
The knuckle-bones were cutting the skin of her son's backside
And he was sixty-five.
O he loved his mother
Above all others.
O he loved his ploughs
And he loved his cows
And his happiest dream
Was to clean his arse
With perennial grass
On the bank of some summer stream
(excerto de The Great Hunger)
O louvor do localismo em sua poesia pode ser sentido em toda a sua inteligência em outro de meus all time favorites, seu soneto "Epic":
Epic
Patrick Kavanagh
I have lived in important places, times
When great events were decided, who owned
That half a rood of rock, a no-man's land
Surrounded by our pitchfork-armed claims.
I heard the Duffys shouting "Damn your soul!"
And old McCabe stripped to the waist, seen
Step the plot defying blue cast-steel -
"Here is the march along these iron stones."
That was the year of the Munich bother. Which
Was more important? I inclined
To lose my faith in Ballyrush and Gortin
Till Homer's ghost came whispering to my mind.
He said: I made the Iliad from such
A local row. Gods make their own importance.
Conceitos como nacionalismo e localismo ainda são interessantes para uma discussão não apenas da poesia modernista brasileira, mas mesmo a das duas últimas décadas. O nacionalismo modernista brasileiro encontrou sua uncoolness de forma óbvia entre os poetas da década de 90, que pareceram querer evitar qualquer sombra dele ao se refugiarem em uma dicção que claramente se queria "universal", esta outra ficção. Nos últimos anos, em poetas tão distintos quanto os já mencionados Érico Nogueira, Dirceu Villa ou João Filho, assim como, de maneiras também divergentes, em Angélica Freitas, Marcus Fabiano Gonçalves ou Fabiano Calixto, acredito haver uma relação mais intricada a triangular o universal, o nacional e o local, relação que começou a receber elegias ou sátiras mais complexas, seja na impossibilidade que Érico Nogueira descobre ao tentar "encontrar faias na América do Sul", ou o samba que não chama Angélica Freitas pelo nome, para mencionar dois poetas quase opostos em atitude est-É-tica, mas que poderíamos discutir em aspectos formais, funcionais e contextuais, além da frequente descontextualização trans-histórica da poética que foi comum e oficial na década de 90.
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