terça-feira, 21 de setembro de 2010

Quando o poema de um autor que até então lhe era desconhecido ilumina seu dia

Cá estava eu, preparando papéis para mil departamentos e ministérios e repartições alemãs, naquela vida de residente estrangeiro que precisa, de tempos em tempos, enfrentar a burocracia que faz com que se entenda na pele o que o adjetivo kafkiano pode significar, meteco a meter-se entre motins, quando alguém menciona, numa destas comunidades eletrônicas em que geralmente se repartem meras notícias de almoços e fodanças, o nome de um poeta de que você não se lembra de algum dia ter ouvido falar, e então o segue, mais uma vez pela rede eletrônica de informações verdadeiras, falsas, até pousar numa página com o poema abaixo, que doravante o ilumina, ao menos pelo resto do dia burocrático, e o qual você escolhe compartilhar com seus amigos visíveis, invisíveis, conhecidos ou não, para que eles também possam talvez sorrir por um segundo no dia de vitórias e fracassos.


O Poeta em Lisboa

Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.

Segue por esta, por aquela rua
sem pressa de chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror.

Entra no café.
Abre um livro fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha - numa música secreta, inaudível.

Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.

Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.

Sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
Um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.

Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.

Febre alta, violenta
e dois olhos terríveis, extraordinários, belos.
Fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.



António José Forte, Uma Faca nos Dentes (1983)

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