terça-feira, 16 de agosto de 2011

Com Góngora no Apocalipse: peça criada para as comemorações dos 450 de seu nascimento, em Córdova



Em janeiro deste ano, recebi um convite interessantíssimo e que me descabelou um pouco: criar uma peça vídeo-textual, na linha do meu trabalho, a partir das Soledades (1613) de Luis de Góngora, e estreá-la em Córdova, num evento chamado Soledades 2.0, dentro do tradicionalíssimo festival cordovês Poetas del Mundo en Córdoba, que este ano celebraria os 450 anos de nascimento do autor.

Aceitei o que se provou um grande desafio. Enviaram-me uma edição da coleção Catedra que restabelecia o texto e grafia do tempo de Góngora. Trabalhei na peça por mais de um mês, tentando algo que estivesse completamente baseado no trabalho de Góngora e ao mesmo tempo fosse uma peça pessoal minha, sem a ambição de verter de qualquer forma o trabalho do senhor barroco a tempos modernos ou criar apenas algo ilustrativo. Era um momento em que sentia meu trabalho talvez mais próximo de Lope de Vega que tanto de Góngora como do mestre Quevedo, mas foi uma experiência marcante. Mostro aqui o trabalho com a gravação em vídeo de minha apresentação em Córdova.

Apenas algumas palavras sobre o método e princípio usado na criação da peça: as Soledades me atingiram nesta leitura como extremamente apocalípticas. É claro que isso se deu porque todo o meu trabalho tem se dirigido, est-E-ticamente, para uma denúncia das distopias contemporâneas. Eu mesmo ando todo apocalíptico. Como escrevi no meu "Educação dos cívicos sentidos", estou buscando escrever uma poesia pré-distópica, parte do meu questionamento da falácia do pós-utópico. Para criar um clima ainda mais pós-apocalíptico, enquanto trabalhava na peça ocorreu o maremoto no Japão. O estado mental em que trabalhei nesta peça está patente no resultado.

Esta peça, que chamei de "Entrañas de las Soledades", foi composta com o princípio de colagem e apropriação. O texto é todo ele formado com palavras retiradas das Soledades. Alguns perceberão certas inconsistências ortográficas, mas é pelo fato de ter usado uma edição que mantém a grafia barroca de certas palavras. Ainda por cima, tomei certas liberdades. É um poema castelhano o que creio ter composto, mas tem suas peculiaridades. Misturei a esta est-É-tica, num texto todo sacado de uma matriz barroca, certos elementos da poesia expressionista germânica, em especial dos meus dois favoritos: Jakob van Hoddis (1887 – 1942, assassinado num campo de concentração) e Georg Heym (1887 – 1912). 

O vídeo, por sua vez, é todo composto pela apropriação e colagem de vídeos encontrados na Rede. A peça sonora foi composta por meu amigo Uli Buder. A edição do material em vídeo foi feita com meu amigo Daniel Reuter. Nada disso teria sido possível sem a assistência de Adelaide Ivánova na pesquisa do material visual.

O evento contou ainda com performances da madrilenha Miriam Reyes (n. 1974) e do chileno Eugenio Tisselli (n. 1972), e com uma exposição que trazia peças de poetas trabalhando com mídia alternativa, incluindo peças dos brasileiros Augusto de Campos e André Vallias.

Agradeço a António Jesus Luna, curador do evento, pelo convite.


Entrañas de las Soledades

ou, em seu título completo,

Entrañas de las soledades del último sobreviviente sobre la Tierra, sin nombre, escrito con fragmentos de un libro encontrado en las ruinas de la biblioteca de Córdoba y datado en julio del 2013





Entrañas de las Soledades
Ricardo Domeneck 

§ - Entraña primera

Era el año en que un vulcán, robador
del sol de Europa, borró el cielo.
Más tarde, sorbido y vomitado,
el oceano cubrió orillas, árboles
y aldeas en cenizas y carbunclo
como un can diligente, un Sísifo.
En la cuesta, la seca, contra ella
el viento, armas y perros. Mismo
las plantas abortaron. En los
campos, inundación. Último
sueño interrumpido del Occidente
fatigado, sobre la tierra estanque
la grana nace en ondas y en ondas
muere. El oceano divide metales,
abre sepulcros. Presagios
astronómicos, reinos al fin, fuego
en Egipto, Grecia en ruinas
de erudicción y pompa, hormigas
a esconder el camino, el cielo,
el polvo. Apócrifa, la política sigue.
Abriles, mayos, cual la arena
ardiente de Libia,
la luz que el día cedió al campo
estéril de ceniza, la que anocheció
aldea el fuego preside. Para la sed,
hay que beber el propio sudor.
Vence la noche y triunfa el silencio,
reina el gusano sordo, Noruega
seca como con dos soles, en Etiopía
restan dos estómagos. Diluvio.
Que vuestras cabras, vuestras vacas
se desaten, alimenten áspides,
vuestros descendientes.
Fin del Fénix del tiempo humano
y de las necesidades de opulencias.
Esfinge que se muere. El viento hereda
ahora Egipto, el Coliseo, Ícaro
hecho a su ruina, el polvo
cojea el pensamiento, en humo
se resuelven las aves.



§ - Entraña segunda


El mar era un arroyo sediento,
mucha sal su ruina.
Muros desmantelándose. Nudos
los bosques. La aurora:
muchas lágrimas y poca agua.
Deseo de hueso, contagio
de pescados nadando en sangre
y sangre, el propio clima una prisión
solicitando sepultar el sol
donde muere el día.
Que muera. Homicidio, mundo,
el oceano haga túmulo
para mis huesos ya que nada
yace en el mar sin besar la arena.
El cielo moderando la miseria,
pluvia de hierro, mordía huesos.
Fin de la comida, la más
seca de las gallinas domésticas.
Vomitando saliva, ronca todo.
Que el hueco exceda Cartago
o el fulminante fin de la República,
Roma de cabras. Nieve el agua.
Por comida, mármol. Ruinas
acusando la aurora, pesadumbre
de campo, sediento se bebe
espuma. Azotar los ojos, la lengua,
la muerte, fuga al horror. Huesos
de amantes a desatarse, cenizas
en los vientos. Llega el tiempo
del gusano, del monstruo
en el césped. Ya no vuelve
Proserpina. El último graznido.
Injuria de la luz, horror del viento.




(escrito com palavras - e em alguns casos versos - extraídas das Soledades de Góngora. Peça estreada em Córdova, na noite de 31 de março de 2011)

.
.
.

4 comentários:

Gláucia Machado disse...

emocionante, muchas gracias

Buscar disse...

Não teria como disponibilizar a ferramenta de busca do seu blog?? Procurar post por palavra...? Bjs

Ricardo Domeneck disse...

Que legal ter você por aqui, Gláucia!

beijo

R.

Ricardo Domeneck disse...

Meu caro,
mas a ferramenta de busca existe aqui no blogue, logo acima do nome do blogue, "Rocirda Demencock", há um campo onde digitar a palavra para a busca... vê se funciona aí para você, mas eu próprio a uso com frequência, deveria funcionar...

abraço

RD

Arquivo do blog