domingo, 29 de janeiro de 2012

Pequena nota de despedida do Rio de Janeiro, com poemas de Lu Menezes, Alice Sant´Anna e Luca Argel, mais excerto do poema-livro de Marília Garcia

Marília e eu no Villarino, centro do Rio, após apresentação no MAM.
Foto de Alexandra Lucas Coelho.

Último dia no Rio de Janeiro, último dia no Brasil, último dia da viagem que me trouxe de Berlim, levou-me à Cidade do México, carregou-me a São Paulo, a Bebedouro e agora ao Rio de Janeiro. Revi algumas das pessoas mais importantes de minha vida, amigos milenares, a família que liga todas as minhas encarnações, amigos novos que já se tornaram indispensáveis para minha saúde. Esta noite, embarco de volta a Berlim, com uma sensação muito estranha que mal consigo descrever. Queria muito mais uma semana aqui, não sei se estou pronto para voltar para o inverno berlinense, para a cidade novamente dividida em dois hemisférios. Mas volto diferente. O lançamento do meu livro ontem aqui, com a leitura, foi como o ponto final que me dará forças para fazer aquele ato tão difícil de virar a página de nossa própria biografia. Porque eu quero virar a página. Abrir novo capítulo, sem enganar-me ou iludir-me que isso significa exilar-se em outro romance.

Estou feliz, queridos. Marquem seus calendários, o poeta maysado, douglas-sirkense e almodovaricado está feliz.

E estar feliz sempre me traz à mente o início do lindo Happily (2000), de Lyn Hejinian:


Constantly I write this happily
Hazards that hope may break open my lips
What I felt has taken place a large context a long yielding incessant
chance, and to doubt it would be a crime against it
Is happiness the name for our (involuntary) complicity with chance?


Lyn Hejinian, in Happily (2000).


A tarde de ontem foi novamente muito, muito bonita, como a noite no MAM. A sala do Baukurs encheu-se para o lançamento do poema-livro de Marília, chamado engano geográfico (7Letras, 2012), e para o meu Ciclo. Nossa convidada de honra, Lu Menezes, abriu a tarde e fez uma leitura de alguns poemas de seu onde o céu descasca (7Letras, 2011), um dos livros mais bonitos dos últimos anos no Brasil. Escreverei sobre ele em breve, quando estiver assentado no Berlimbo. Abaixo, um dos meus poemas favoritos no livro:

Luzes ao longe

Agora, é como se desse pedaço de vidro negro
com que pintores monocromatizam reduzindo
a tons, só tons a paisagem
("vidro de Claude")
vasta mortalha derivasse, nuvem íntima
da tinta que o polvo-mor tanto aspira,
petróleo
derramado sobre as 1001 cores de Bagdá
respingando
o Rio
da vida inteira quando na fila dos alvos de cá
sua vez
chegar enegrecendo o Corcovado verde-jade,
enegrecendo
palmeiras e azulejos do passado árabe-português,
enegrecendo
o Pão de Açúcar – sonho celeste chinês,

de tal maneira que não possas mais
preferir ver ao anoitecer
"noite, esperança e pedraria" através
do amado verso de Mallarmé
(teu vidro de Mallarmé)
porque
só em tempo de paz
segregam esperança as reentrâncias da pedraria;
só em tempo de paz
luzes ao longe – algum remoto bem
anunciam mesmo a quem o desespero tangencia

Lu Menezes, onde o céu descasca (7Letras, 2011).


Convidamos também a jovem poeta carioca Alice Sant´anna para ler conosco. A poeta estreou em 2008, com o volume Dobradura, também pela editora 7Letras. Gostamos bastante do trabalho dela. Abaixo, um poema recente, sem título:

a sandália nova branca com dedos
que se refestelam do lado de fora
como crianças que sabem o verão que vem
de repente a chuva mingua os planos
da calça jeans com sandália de dedos
uma combinação entre-estações
para não se sentir nem tão lá nem tão
cá os dedos curvados corcundas
como crianças tristes que sabem
o toró que se aproxima as unhas recém-cortadas
que planejaram se mostrar sobre a cadeira de rodinhas
que nada a água inundou a sexta
da janela os bambus se movem muito
chegam a parecer desesperados
as folhas penduradas são cabelos colados
que gritam novas rugas onde nada havia



Alice Sant´Anna, inédito em livro.


Uma das chances e descobertas, das mais felizes nesta minha viagem ao Rio de Janeiro, foi poder ter um pouco de contato e conhecer pessoalmente o jovem poeta Luca Argel, que na manhã de ontem mesmo teve 3 poemas inéditos publicados na página Risco, do jornal O Globo, editada por Carlito Azevedo. Já havíamos trocado algumas mensagens ao longo do ano passado, e ele havia me apresentado alguns de seus trabalhos visuais, mas fiquei muito tocado por seu lirismo tão direto, simples, delineado pelo enunciado da voz. Um lirismo de garganta seca, ligando-o a poetas tão diversos quanto Vasko Popa ou Diane Di Prima. Vou certamente acompanhar com muito interesse o seu trabalho e espero ter a chance no futuro de conviver mais tempo com ele. Abaixo, um dos poemas na Risco:

Para você aprender a palavra nacre

oi eu estou com seu casaco frio
oi eu estou dentro do seu casaco frio
oi eu estou cobrindo todo o meu rosto
com o capuz do teu casaco frio
agora eu não vejo mais nada
agora está ficando
mais difícil
respirar

Luca Argel, poema na página Risco, d´O Globo, editada por Carlito Azevedo.

Eu gostaria de terminar esta postagem com um excerto do poema-livro de Marília Garcia, a última a ler ontem à tarde, encerrando muito bem a tarde linda. Trata-se do excerto na quarta-capa do poema-livro engano geográfico (7Letras, 2012), sobre o qual escreverei em breve. O excerto talvez seja a melhor expressão do que sinto nesta estranha manhã chuvosa, esta manhã de deslocamentos, prestes a deixar o Rio de Janeiro e voltar a Berlim. Agradeço a todos que me salvaram com seu carinho. Estou partindo, mas c´est pas grave, partir, though it may look like (I feel it) like a disaster.


um engano geográfico estar aqui
uma cronologia trocada pensa
onde estão os bilhetes pergunta
aqui trocaremos de língua ela diz
o iogurte passou da validade c´est pas grave
é preciso aprender a dizer isso
em qualquer língua
é preciso aprender a dizer c´est pas grave
em qualquer lugar


Marília Garcia, engano geográfico (7Letras, 2012).


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2 comentários:

Marcel Fernandes disse...

wow...ual...senti suas mãos agarrando o Brasil daqui. e calor das lágrimas querendo regar este solo. wow...ual...

Unknown disse...

Bela camisa!

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