terça-feira, 21 de agosto de 2012

Fragmentos e notas de um ensaio que eu talvez jamais termine

Fragmentos e notas de um ensaio que eu talvez jamais termine

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Será o papel da poesia e literatura manter viva na História a memória de um crime? Nada me dissuade, por exemplo, desta compreensão da máxima de Pound sobre a poesia ser news that stays news. A notícia que permanece notícia, mesmo em nossa sociedade insaciável por tragédias, esquecendo os mortos de ontem pelos que, mal nasce o dia, já começam a se acumular hoje. A narrativa histórica que se quer científica faz com os fatos (aqueles que compõem o mundo, segundo Wittgenstein) o que a ciência faz com o conhecimento: abstrai-os. Numera-os, classifica-os, generaliza-os. Transforma o acontecimento natural em fórmula. Já foi dito que esta é a diferença entre a ciência e a arte: se, para alguns, ambas funcionam como busca do conhecimento da verdade pelos humanos, a primeira o faz pela abstração deste conhecimento, a última por sua concreção. Talvez por isso o objeto artístico em si transforme-se em parte do mundo, em objeto, em fato, ele próprio permitindo-se entregar ao discurso científico, por exemplo, da crítica: como parte integrante do mundo.

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Talvez haja algo disso na proposta do correlato objetivo de Eliot? De que maneira esta compreensão da Literatura está guiada por minha formação cristã, a que sempre prega o Verbo que se faz Carne? Como compreender o conceito teológico de figura nesta discussão?

Tenho-a descrito assim: "FIGURA: acontecimento histórico que se liga a outro acontecimento histórico, prefigurando-o, dois fatos distintos e temporalmente segregados prevendo um último acontecimento (a parúsia?) que revelaria seus significados, além da noção de intervenção do sagrado no profano (o verbo feito carne, a história feita mito)."

Realidade histórica, ainda, como prefiguração de um acontecimento espiritual: exemplo: a saída dos Hebreus do Egito, guiados por Moisés, como prefiguração da libertação pelo Messias de um mundo materialista.

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Ainda falaríamos sobre Gulags, ou falaríamos da mesma forma, sem a prosa de Soljenítsin, sem os versos de Akhmátova? Dos KZ, sem Celan, Jabès e Pagis?

Pensar em como a Era Vargas se nos torna muito mais concreta através da poesia de Carlos Drummond de Andrade e da prosa de Graciliano Ramos.

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O que sabemos, em concreção, da Era Collor? Algo através da Geração 90?

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Não se trata, é claro, apenas do trabalho de salvaguardar uma narrativa sobre nossos destinos coletivos, as valas comuns onde terminamos de bruços. Se Soljenítsin mostrou-nos o destino de milhares no Gulag através de um único homem fictício chamado Ivan Denisovich Shukov, devemos a poetas líricos como Tsvetáieva e Mandelshtam a possibilidade de conhecer as agruras e tragédias pessoais de homens e mulheres sob regimes totalitaristas. Pois ao fingirem as dores que deveras sentiam, revertendo-as em textualidade nos seus poemas, ficcionalizavam-se para que pudéssemos nos identificar com suas cicatrizes, e, identificando-nos com suas cicatrizes, reconhecermos nossas gangrenas.





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2 comentários:

Fábio Romeiro Gullo disse...

Ricardo, suas ideias me pareceram mto interessantes e, até onde me é dado saber, originais. Eu particularmente n acho q seu desenvolvimento completo em forma de ensaio acrescente mais do q mera redundância na forma de exemplos, explicações, etc. Naturalmente, o stablishment pensa o contrário. Eu mesmo estou trabalhando num ensaio bastante complexo intitulado A superioridade “extática” da poesia e Finnegans Wake como SuperOmega textual (sic), há um bom tempo, por partes, em etapas, e n creio q saia antes de mais alguns intervalos e retomadas; talvez o seu ensaio possa se completar dessa maneira. Boa sorte!

Ricardo Domeneck disse...

Fábio,
eu concordo com sua proposição da "completude do fragmento". Ele é, em tantos casos, "bastante".
abraço grande
RD

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