especial para a Modo de Usar & Co., 05 de março de 2014.
Hoje, Pier Paolo Pasolini teria completado 92 anos, ainda estivesse vivo. Não houvesse sido massacrado naquela praia de Óstia na noite de 2 de novembro de 1975. Tivesse sobrevivido a outras violências. É apenas especulação, sei bem, imaginar se Pasolini ainda estaria entre nós hoje, tivesse sido dado a ele o direito de morrer, como dizemos no Brasil, de velhice. Sua lucidez poderia ser, hoje, não uma luz na escuridão, como gostamos de dizer sobre guias, mas talvez uma sombra para o aparente excesso de claridade, nesses tempos em que presenciamos nova escalada nas bipolarizações que se alardeou como mortas na década de 90. Pasolini parecia saber navegar entre duas margens. Contraste, essa era a habilidade luminar de sua inteligência, para percebermos melhor os contornos do que, sendo ameaças, possuem quinas, cantos. Esta não é uma postagem comum. A biografia de Pasolini é conhecida, seria fácil obter os títulos de seus livros. Este texto é uma homenagem, um lamento, ou outra coisa inútil qualquer à qual vocês talvez queiram dar o nome.
Eu penso no discurso de Alberto Moravia no velório de Pasolini, em sua fúria e indignação e sinto, quase 40 anos depois de sua morte, algo dela. Talvez seja apenas imaginação. Há uma passagem no ensaio "Lírica e sociedade", de Adorno, em que ele diz, de certa forma, que compreende o porquê os esbirros de Franco precisaram assassinar Lorca. Adorno queria-o como exemplo em sua defesa de uma lírica que ataca e se torna perigosa pela negação do mundo ao redor. Que acusa pela ausência. Que se faz insuportável para o poder por abster-se de participar da divisão dos despojos, que sempre foi coisa dos vencedores sobre os vencidos. Por mais que aquilo me emocionasse como jovem poeta aprendiz, sabia que aquilo turvava a imagem de Lorca e sua participação completa na comunidade de seu tempo: com sua poesia, com seu teatro... com seu próprio corpo de homem que negava a violência do patriarca. A violência do vencedor.
Pasolini é, na Itália, mais que o cineasta como é visto ao redor do mundo e mesmo no Brasil, poeta. Talvez seja apenas natural que a sua linguagem cinematográfica seja mais conhecida no mundo, já que a poesia segue nas margens do marginal. A lírica de Pasolini sonhava com uma terra de infância idealizada e perdida no Friûl, mas jamais se absteve de participar da vida de sua comunidade, os pés sobre as cinzas de Gramsci. O homem que os esbirros da direita italiana odiavam e precisaram matar atacava com sua poesia, seu cinema, seus romances, seus artigos... e seu corpo de homem que negava a violência do patriarca. A violência do vencedor. Nunca se abstendo, mas imiscuindo-se na vida de sua comunidade. Política.
Mahmoud Darwish falou certa vez sobre a história de Troia, contada por um poeta grego, por um poeta do povo vencedor. Aquele que divide entre si os despojos. Mas grande poeta que foi, tenha ou não sido um único homem, sente-se em Homero a tristeza em meio à divisão dos despojos. Assim como em Eurípides, As Troianas são as troianas mas são também as mulheres da ilha de Melos, devastada pelos atenienses no ano em que Eurípides escreveu As Troianas. A poeta canadense Anne Carson reuniu suas traduções para quatro tragédias de Eurípides num livro chamado Grief Lessons. Lições em luto? Lições em aflição? Minha mãe dizia: "Não peça paciência a Deus, que ele manda provação". Eu gostaria de um dia encenar As Troianas com soldados norte-americanos e mulheres afegãs. Mas, ora, por que não com soldados brasileiros e mulheres dos Munduruku? Por que não com policiais militares paulistanos e as mães negras da periferia? Por que não com machos violentos quaisquer e transsexuais tão despojados de direitos quanto as troianas?
Como para os gregos o espectro frio de Aquiles valia mais que o sangue quente de Polixena, também para os esbirros da direita italiana o espectro frio de sua masculinidade bélica valia mais que o sangue quente irrigando uma mente como a de Pier Paolo Pasolini. A História se repete ad nauseam. Quem dera tivesse realmente fim, como dizia a propaganda do fim de século.
Não quero generalizar sobre a natureza da poesia ou falar sobre o poeta usando um artigo definido, ah, sempre masculino. Mas os poetas que mais amo são aqueles que sempre se colocam, de uma maneira ou de outra, entre os povos menores. E se tenho hoje fome e, como poeta, tenho dois alugueis atrasados, ao menos os poetas ainda podem dizer que não estão dividindo os despojos com os vencedores. Não, isso não é uma apologia da pobreza ou a velha desculpa metafísica do poeta como outsider. Marina Tsvetáieva escreveu que todo poeta é um judeu, no tempo em que estes eram um povo menor. É melhor que um poeta esteja do lado dos povos menores de seu tempo. Que serão sempre subjugados. Pasolini escreveu: "Sexo, consolação da pobreza". Porque ele, poeta, sabia como os povos menores do território que hoje chamamos de Brasil que "o outro sempre chega". E eu gostaria de acreditar, como o Pasolini dos poemas amorosos, que nem sempre o outro chaga.
--- Ricardo Domeneck
§
POEMA DE PIER PAOLO PASOLINI
O sonho da razão
Jovem do rosto honesto
e puritano, também tu, da infância,
preservas além da pureza a vileza.
Tuas acusações te fazem mediador que leva
tua pureza - ardor de olhos azuis,
fronte viril, cabeleira inocente -
à chantagem: a relegar, com a grandeza
do menino, o diverso ao papel do renegado.
Não, não a esperança, mas o desespero!
Porque quem virá, no mundo melhor,
terá a experiência de uma vida inesperada.
E nós esperamos por nós, não por ele.
Para nos assegurar um álibi. E isto
também é justo, eu sei! Cada um
fixa o impulso em um símbolo,
para poder viver, para poder pensar.
O álibi da esperança confere grandeza,
acolhe na fila dos puros, daqueles
que, na vida, se ajustam.
Mas há uma raça que não aceita álibis,
uma raça que, no instante em que ri,
se recorda do choro, e no choro do riso,
uma raça que não se exime um dia, uma hora,
do dever da presença invadida,
da contradição em que a vida jamais concede
ajustamento nenhum, uma raça que faz
da própria suavidade uma arma que não perdoa.
Eu me orgulho de pertencer a esta raça.
Oh, eu também sou jovem, claro! Mas
sem a máscara da integridade.
Tu não me apontes, fazendo-te forte
dos sentimentos nobres - como é a tua,
como é a nossa esperança de comunistas -,
na luz de quem não está nas fileiras
dos puros, nas multidões dos fiéis.
Porque eu estou. Mas a ingenuidade
não é um sentimento nobre, é uma heroica
vocação a não se render nunca,
a jamais fixar a vida, nem sequer no futuro.
Os homens bons, os homens que dançam
como nos filmes de Chaplin com mocinhas
tenras e ingênuas, entre bosques e vacas,
os homens íntegros, em sua própria
saúde e na do mundo, os homens
sólidos na juventude, sorridentes na velhice
- os homens do futuro são os HOMENS DO SONHO.
Ora minha esperança não tem
sorriso, ó humana omertà:
porque ela não é o sonho da razão,
mas é razão, irmã da piedade.
(tradução de Maurício Santana Dias, originalmente publicada
no quarto número impresso da Modo de Usar & Co.)
:
Il sogno della ragione
Pier Paolo Pasolini
Ragazzo dalla faccia onesta
e puritana, anche tu, dell’infanzia,
hai oltre che la purezza la viltà.
Le tue accuse ti fanno mediatore che porta
la sua purezza - ardore di occhi azzurri,
fronte virile, capigliatura innocente -
al ricatto: a relegare, con la grandezza
del bambino, il diverso al ruolo di rinnegato.
No, non la speranza ma la disperazione!
Perché chi verrà, nel mondo migliore,
farà l’esperienza di una vita insperata.
E noi speriamo per noi, non per lui.
Per costruirci un alibi. E questo
è anche giusto, lo so! Ognuno
fissa lo slancio in un simbolo,
per poter vivere, per poter ragionare.
L’alibi della speranza dà grandezza,
ammette nelle file dei puri, di coloro,
che, nella vita, si adempiono.
Ma c’e una razza che non accetta gli alibi,
una razza che nell’attimo in cui ride
si ricorda del pianto, e nel pianto del riso,
una razza che non si esime un giorno, un’ora,
dal dovere della presenza invasata,
della contraddizione in cui la vita non concede
mai adempimento alcuno, una razza che fa
della propria mitezza un’arma che non perdona.
Io mi vanto di essere di questa razza.
Oh, ragazzo anch’io, certo! Ma
senza la maschera dell’integrità.
Tu non indicarmi, facendoti forte
dei sentimenti nobili -
com’è la tua, com’è la nostra speranza di comunisti -
nella luce di chi non è tra le file
dei puri, nelle folle dei fedeli.
Perché io lo sono. Ma l’ingenuità
non è un sentimento nobile, è un’eroica
vocazione a non arrendersi mai,
a non fissare mai la vita, neanche nel futuro.
Gli uomini belli, gli uomini che danzano
come nel film di Chaplin, con ragazzette
tenere e ingenue, tra boschi e mucche,
gli uomini integri, nella salute
propria e del mondo, gli uomini
solidi nella gioventù, ilari nella vecchiaia
- gli uomini del futuro sono gli UOMINI DEL SOGNO.
Ora la mia speranza non ha
sorriso, o umana omertà:
perché essa non è il sogno della ragione,
ma è ragione, sorella della pietà.
(in
Poesia in forma di rosa, Garzanti, Milano, 1964, p. 158-159.)
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