Leitura e conversa, e ainda dos colaboradores da Modo:
Fabiano Calixto
Dirceu Villa
William Zeytounlian
Fabiana Faleiros
Victor Heringer
Reuben Da Cunha Rocha
Apresentação vocal: Sandra Ximenez (Axial)
O SARAU DOS HUSSARDOS, organizado pelos editores Vanderley Mendonça (Selo Demônio Negro) e Eduardo Lacerda (Editora Patuá), no Hussardos Clube Literário, reúne poetas, prosadores, editores, artistas e interessados em literatura para leituras e apresentações, encontros, perfomances, debates e cerveja para promover o encontro entre os diversos agentes da cadeia do livro, possibilitar acesso à publicação e pôr frente a frente escritores iniciantes e editores que têm protagonizado as novas tendências do mercado editorial brasileiro.
Sai hoje em Nova Iorque o primeiro lançamento do trio THE WAVES & US, do meu amigo e colaborador idolatrado Markus Nikolaus salve salve, com Maayan Nidam e meu mestre zen Louis McGuire. Deem uma olhada, ouçam, espalhem.
THE WAVES & US - "With Any Future" (Wolf + Lamb Records, 2014)
Queridos, segue aqui um convite ao poetariado, especialmente aos mais jovens que ainda têm energia para aventurices. Começa na sexta-feira, 12 de setembro em Tiradentes - MG, o Festival Artes Vertentes 2014. Eu fiz a curadoria de literatura, e me considero o primeiro e mais sortudo por poder passar 10 dias na cidade mineira com autores do naipe de Leonardo Fróes, Harryette Mullen e Ricardo Aleixo, além de gente que admiro dentro da minha geração e da novíssima, como Reuben Da Cunha Rocha, Matilde Campilho, Andriy Lyubka, Eduard Escoffet e Paula Abramo. Lançaremos uma antologia com textos de todos eles.
Se você mora em BH ou outra cidade mineira, ou está em qualquer outra cidade, livre e podendo viajar, eu realmente acho uma oportunidade muito legal para conviver com alguns poetas muito ótimos. Venha ver as leituras e performances (que são gratuitas), tomar um café conosco, conviver. Cada vez mais considero isso essencial. Não estou querendo apenas ibope pro festival, acho apenas uma coisa boa, especialmente para os poetas mais jovens.
Durma no carro, acampe.
Se alguém estiver a fim, mas com dificuldades, me mande uma mensagem particular e eu vejo se posso ajudar de alguma maneira.
Infelizmente, apenas 2 poetas ficam no Brasil um pouco mais de tempo, Matilde e Andriy, portanto tentarei organizar algo pequeno com eles no Rio.
Tendo acabado de passar uma linda semana em Salvador, onde ministrei uma oficina na Fundação Cultural do Estado da Bahia, fiz uma fala na Universidade Federal da Bahia e conheci pessoas adoráveis, faço minha homenagem à terra da primeira Capital do país com uma pequena seleção de meus poemas favoritos de poetas baianos.
§
António Vieira (1608 - 1697)
Sermão da Sexagésima (excerto)
Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum aruit, quia non habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suffocaverunt illud; trigo comido: Volucres caeli comederunt illud; trigo pisado: Conculcutum est. Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na ilha dos Aroãs; houve missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocatins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra bem o Notum aruit, quia non habebant humorem! E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos homens: Conculcatum est! Não me queixo nem o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados sim, mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidos e pisados.
Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? -- Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que aqueles animais da carroça de Deus, «quando iam não tornavam»: Nec revertebantur, cum ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que «aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou corisco»: Ibant et revertebantur in similitudinem fulgoris coruscantis. Pois se os animais iam e tornavam à semelhança de um raio, como diz o texto que quando iam não tornavam? Porque quem vai e volta como um raio, não torna. Ir e voltar como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho. Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta e última parte do trigo se restauraram com vantagem as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum.
Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram es pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá também? Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Porque não terá também o seu Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? -- Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui porque eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo aos sermões que vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.
§
Gregório de Matos (1636 - 1696)
Anjo Bento
Destes que campam no mundo
Sem ter engenho profundo
E, entre gabos dos amigos,
Os vemos em papafigos
Sem tempestade, nem vento:
Anjo Bento!
De quem com letras secretas
Tudo o que alcança é por tretas,
Baculejando sem pejo,
Por matar o seu desejo,
Desde a manhã té à tarde:
Deus me guarde!
Do que passeia farfante,
Muito prezado de amante,
Por fora luvas, galões,
Insígnias, armas, bastões,
Por dentro pão bolorento:
Anjo Bento!
Destes beatos fingidos,
Cabisbaixos, encolhidos,
Por dentro fatais maganos,
Sendo nas caras uns Janos:
Que fazem do vício alarde:
Deus me guarde!
Que vejamos teso andar
Quem mal sabe engatinhar,
Muito inteiro e presumido,
Ficando o outro abatido
Com maior merecimento:
Anjo Bento!
Destes avaros mofinos,
Que põem na mesa pepinos,
De toda a iguaria isenta,
Com seu limão e pimenta,
Porque diz que o queima e arde:
Deus me guarde!
/
[Carregado de mim ando no mundo]
Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como ando por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.
O remédio será seguir o imundo
Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mais ornadas,
Do que anda só o engenho mais profundo.
Não é fácil viver entre os insanos,
Erra, quem presumir, que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.
O prudente varão há de ser mudo,
Que é melhor neste mundo em mar de enganos
Ser louco cos demais, que ser sisudo.
§
Luiz Gama (1830 - 1882)
O Barão da Borracheira
Na Capital do Império Brasileiro, Conhecida pelo — Rio de Janeiro, Onde a mania, grave enfermidade, Já não é como dantes, raridade; E qualquer paspalhão endinheirado De nobreza se faz empanturrado - Em a rua chamada do Ouvidor, Onde brilha a riqueza, o esplendor, À porta de uma modista de Paris, Lindo carro parou — Número — X — , Conduzindo um volume, na figura, Que diziam alguns, ser criatura Cujas formas mui toscas e brutais Assemelham-na brutos animais.
Mal que da sege salta a raridade, Retumba a mais profunda hilaridade. Em massa corre o povo, apressuroso Para ver o volume monstruoso; De espanto toda a gente amotinada Dizia ser coisa endiabrada!
Uns afirmam que o bruto é um camelo, Por trazer no costado cotovelo, É asno, diz um outro, anda de tranco, Apesar do focinho d'urso branco! Ser jumento aquele outro declarava, Porque longas orelhas abanava. Recresce a confusão na inteligência, O bruto não conhecem d'excelência. Mandam vir do Livreiro Garnier, Os volumes do Grande Couvier; Buffon, Guliver, Plínio, Columella, Morais, Fonseca, Barros e Portela; Volveram d'alto a baixo tais volumes, Com olhos de luzentes vagalumes, E desta nunca vista raridade Não puderam notar a qualidade!
Vencido de roaz curiosidade O povo percorreu toda a cidade; As caducas farmácias, livrarias, As boticas, e vãs secretarias; E já todos a fé perdida tinham, Por verem que o brutal não descobriam, Quando idéia feliz e luminosa, Na cachola brilhou dum Lampadosa Que excedendo em carreira os finos galgos, Lá foi ter à Secreta dos Fidalgos; E dizem que encontrara registrado O nome do colosso celebrado: Era o grande Barão da borracheira, Que seu título comprou na régia-feira!
§
Serei Conde, Marquês e Deputado
Pelas ruas vagava, em desatino, Em busca do seu asno que fugira, Um pobre paspalhão apatetado, Que dizia chamar-se - Macambira.
A todos perguntava se não viram O bruto que era seu, e desertara; Ele é sério (dizia), está ferrado, E tem o branco focinho, é malacara.
Eis que encontra postado numa esquina, Um esperto, ardiloso capadócio, Dos que mofam da pobre humanidade, Vivendo, por milagre, santo ócio.
Olá, senhor meu amo, lhe pergunta O pobre do matuto, agoniado; “Por aqui não passou o meu burrego Que tem ruço o focinho, o pé calçado?”
Responde-lhe o tratante, em tom de mofa: “O seu burro, Senhor, aqui passou, Mas um guapo Ministro fê-lo presa, E num parvo Barão o transformou!”
Ó Virgem Santa! (exclama o tabaréu, Da cabeça tirando o seu chapéu) Se me pilha o Ministro, neste estado, Serei Conde, Marquês e Deputado!... §
Pedro Kilkerry (1885 - 1917)
É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa.
Olha-me a estante em cada livro que olha.
E a luz nalgum volume sobre a mesa...
Mas o sangue da luz em cada folha.
Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa.
Penso um presente, num passado. E enfolha
A natureza tua natureza.
Mas é um bulir das cousas... Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.
Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu passo,
Asa que o ouvido anima...
E a câmara muda. E a sala muda, muda...
Áfonamente rufa. A asa da rima
Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda
Novo, um fantasma ao som que se aproxima.
Cresce-me a estante como quem sacuda
Um pesadelo de papéis acima...
.......................................................................
E abro a janela. Ainda a lua esfia
últimas notas trêmulas... O dia
Tarde florescerá pela montanha.
E ó minha amada, o sentimento é cego...
Vês? Colaboram na saudade a aranha,
Patas de um gato e as asas de um morcego.
§
O verme e a estrela
Agora sabes que sou verme.
Agora, sei da tua luz.
Se não notei minha epiderme...
É, nunca estrela eu te supus
Mas, se cantar pudesse um verme,
Eu cantaria a tua luz!
E eras assim... Por que não deste
Um raio, brando, ao teu viver?
Não te lembrava. Azul-celeste
O céu, talvez, não pôde ser...
Mas, ora! enfim, por que não deste
Somente um raio ao teu viver?
Olho, examino-me a epiderme,
Olho e não vejo a tua luz!
Vamos que sou, talvez, um verme...
Estrela nunca eu te supus!
Olho, examino-me a epiderme...
Ceguei! ceguei da tua luz?
§
Cetáceo
Fuma. É cobre o zênite. E, chagosos no flanco,
Fuga e pó, são corcéis de anca na atropelada.
E tesos no horizonte, a muda cavalgada.
Coalha bebendo o azul um largo vôo branco.
Quando e quando esbagoa ao longe uma enfiada
De barcos em betume indo as proas de arranco.
Perto uma janga embala um marujo no banco
Brunindo ao sol brunida a pele atijolada.
Tine em cobre o zênite e o vento arqueja e o oceano
Longo enfroca-se a vez e vez e arrufa,
Como se a asa que o roce ao côncavo de um pano.
E na verde ironia ondulosa de espelho
Úmida raiva iriando a pedraria. Bufa
O cetáceo a escorrer d’ água ou do sol vermelho.
§
Sosígenes Costa (1901 - 1968)
O pavão vermelho
Ora, a alegria, este pavão vermelho, está morando em meu quintal agora. Vem pousar como um sol em meu joelho quando é estridente em meu quintal a aurora.
Clarim de lacre, este pavão vermelho sobrepuja os pavões que estão lá fora. É uma festa de púrpura. E o assemelho a uma chama do lábaro da aurora.
É o próprio doge a se mirar no espelho. E a cor vermelha chega a ser sonora neste pavão pomposo e de chavelho.
Pavões lilases possuí outrora. Depois que amei este pavão vermelho, os meus outros pavões foram-se embora.
§
Duas festas no mar
Uma sereia encontrou um livro de Freud no mar. Ficou sabendo de coisas que o rei do mar nem sonhava.
Quando a sereia leu Freud sobre uma estrela do mar, tirou o pano de prata que usava para esconder a sua cauda de peixe. E o mar então deu uma festa.
E no outro dia a sereia achou um livro de Marx dentro de um búzio do mar.
Quando a sereia leu Marx ficou sabendo de coisas que o rei do mar nem sonhava nem a rainha do mar.
Tirou então a coroa que usava para dizer que não era igual aos peixinhos. Quebrou na pedra a coroa.
E houve outra festa no mar.
§
O pôr-de-sol do papagaio
O papa-vento nos jardins de maio e o verde no seu mar de leite. O mar já não é azul, é verde-gaio num clarão que é relâmpago de azeite.
Se o mar é belo sem que a tarde o enfeite quanto mais se o enfeitar o sol de maio. O mar do papa-vento é o papagaio e o céu do verde papa é o papa-leite.
Latadas cristalinas em desmaio. Tombam flores do céu, meu papagaio. E o papa-vento é de cristal e leite.
Deite leite, meu mar, pro papagaio. Que o papagaio em verde se deleite e não se enfeite de outra cor em maio. § Erthos Albino de Souza (1932 - 200)
(Nota: nascido em Minas, produziu grande parte de sua obra na Bahia,
onde editou a importante revista Código)
§
Elomar Figueira Mello (Vitória da Conquista, 1937)
§
Caetano Veloso (Santo Amaro da Purificação, 1942)
A terceira margem do rio
Oco de pau que diz:
Eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, triztriz
Risca certeira
Meio a meio o rio ri
Silencioso, sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira
Água da palavra
Água calada, pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai
Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O rio riu, ri
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas
Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai
Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai
§
O estrangeiro
§
Gilberto Gil (Salvador, 1942)
§
Waly Salomão (1943 - 2003)
Sonho o poema de arquitetura ideal cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra, tornei-me perito em extrair faíscas das britas e leite da pedras. acordo. e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo. acordo. o prédio, pedra e cal, esvoaça como um leve papel solto à mercê do vento e evola-se, cinza de um corpo esvaído de qualquer sentido. acordo, e o poema-miragem se desfaz desconstruído como se nunca houvera sido. acordo! os olhos chumbados pelo mingau das almas e os ouvidos moucos, assim é que saio dos sucessivos sonos: vão-se os anéis de fumo de ópio e ficam-se os dedos estarrecidos. sinédoques, catacreses, metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros sumidos no sorvedouro. não deve adiantar grande coisa permanecer à espreita no topo fantasma da torre de vigia. nem a simulação de se afundar no sono. nem dormir deveras. pois a questão chave é: sob que máscara retornará o recalcado?
(mas eu figuro meu vulto caminhando até a escrivaninha e abrindo o caderno de rascunho onde já se encontra escrito que a palavra “recalcado” é uma expressão por demais definida, de sintomatologia cerrada: assim numa operação de supressão mágica vou rasurá-la daqui do poema)
pois a questão chave é: sob que máscara retornará?
§ Vapor Barato
§ Duda Machado (Salvador, 1944)
Meridiano
tempestades sem céu de noites em claro
em que o espírito rasga a carne e a memória se contrai ante um mapa
de linhas equívocas cujos pontos foram percorridos ao vivo entre gestos hipnoticamente acesos
ignorantes inacessíveis estrelas: viver também pode ser longe acordar é raro breve
um cochilo, piscar de olhos por onde irrompe o entrevisto espanto do que somos acordar é um sonho
despertar es raro breve §
Antônio Risério (Salvador, 1953)
Via Papua
desamarra a quilha, canoa
desamarra a quilha
e voa
(vai pelo ar
pelo mar
e sobre a ilha;
voa sobre o que
se armadilha)
mas voa leve, canoa
e leva uma estrela
na ponta da proa
cruza o mar, a névoa
o peito, a boca, a língua
almas que invadem nuvens
dobras de angra e de íngua
(mas voa leve, canoa
há uma estrada inteira
na ponta da tua proa)
e que o ar mais leve a leve
e faça das algas do céu
a minha única
e exclusiva
coroa,
canoa.
§
Abaite ya
para augusto de campos
"Their concept of a garden is a reproduction on a dwarfish scale of nature they see around themselves. It makes a characteristic contrast with the modern horizontal park dotted with geometric patterns of flower-beds and shady trees planted at regular intervals in parallel lines as in French gardens of the Cartesian age." - Shunkichi Akimoto.
morai mizu
yumê-sakura
no chão
da lagoa escura
yumê ah
ah yumê ah
ah yumê
yumê-sakura
no chão
da lagoa escura
o sol bashô
à doce brissa
caracol
ka-dô
lua branca
areia branca
uma polegada
escura
odô ya
a conta de vidro kai
o som da água
graveto kanji
kioto ketu
uma cidade:
mairi
asagao ya
oh ipoméia
abaité ya
a ideia
de uma
orquídea
sereia no ideograma
areia no brinquedo
ipupiara em ikebana
semilua em leque
a mulher bem nua
dama kasa não é minha
yamakochi
nem é tua:
sozinha sozinha
a mulher flutua
yamabuki
exu samurai
terreiro kabuki
sendas de okunrin
satoriki
um jardim enfim
onde eu ronin
onde eu chonin
diga sim ao sim
lua na neve
okê aro
me sento dentro
de uma peça nó
noite de outono
emi hakuryo
nenhum hagoromo
os olhos no cio
alakorô alakorô
oh oxotokanxoxô
o rei menos o reino
o cheiro de uma cor
§
Aviso à praça O humano é um engano do humano. Divide o humano em humano e desumano. Sonho insano de se ver a salvo De crivos e crises e crimes Cravados no alvo. Bobagem. Nenhum capitalismo é selvagem. Puta não é cadela. Nem a vida, feroz. O homem é o homem do homem. Todos juntos e a uma só voz. Humana é a sala de tortura, A napalm, a navalha, a metralha no gueto - a pele esfolada no porão. Humana, humaníssima, a escravidão. Humano é o arame farpado O estripador branco, o estuprador preto, Carndiru, Somália, Khmer, Bopal O massacre na Praça da Paz Celestial. Humana a fissão do átomo Humana a fissura do FIM. Não consta que roseiras e gaivotas ajam assim. § Karina Buhr (Salvador, 1974)
§
João Filho (Bom Jesus da Lapa, 1975)
Louvação ao Morão de Privintina
É Ojasso Margoso
farinhando seu sustento
na curva da duna
alinhavando lamento
na lombada da ponte
todo esforço é nulo
bovinamente bolando
a touceira e o pulo.
É fundura de cova
que tatu não se arrisca
e todo o seu incêndio
no meu capim é faísca
escancarada feito retina
em noite defunta
chumbo espalhado no ar
quenãoseajunta.
É Ojasso Margoso
farinhando proveito
pois a desavença o empurra
prum buraco estreito
a míngua é muita
a cama-de-quiabento
na estirância seca
desse campo restinguento.
Corpo boiando sem peso
na desausência do farto
feiúra pra mais de metro
abarrotando seu quarto
É Ojasso Margoso
garantindo guarnição
raspando até escama
de traíra, lambú e azulão.
É nêgo Bizuíto bizorando
no borralho da quebrada
gamela d’astúcia cheia
por todos ignorada
mas não se fie fidalgo
em luz de ponta-de-faca
da treita sua folia
das tripas sua capa.
O tempo nos assalta
com bala, ruga, confissão
carpindo, curvo, coxo
agregado no gibão
agentingole sapo
sapo, já engoliu brasa
e vai anjo gago, demente
depenar sua própriasa
Tira fina de córgo
vencendo lajedo
na embolada ladeira
malocando seu medo
avesso a ferro e lonjura
enfurecido engodo
comido pela metade
mas já morrido de todo.
Tá no eito largado
sem riso cuia ou lenha
larga logo um gemido
feito cadela prenha
mas é liso gongazeiro
evita beco, barulho
sabe que meganha é guariba
e pocomã engolintulho.
Nos vasos magros do mês
lambança deu embolia
sobrou as estacas do cercado
cruezas de casa vazia
desusos dum déu de desejo
de velhas usanças
despejo de verbos alheios
no meio da contradança.
Pipocam clarões
no lado esquerdo das esquinas
Tõin gongá releva
mas já não tarantina
o que vai dentro da treva
côa sua resina
é zabelê ciscando rumo
no descompasso da chacina.
§
Karina Rabinovitz (Salvador, 1977)
§
Lívia Natália (Salvador, 1979)
Sobre o tempo
Se este vento persistir ainda alguns verões
e a flama acesa ainda banhar a mesa
e dançar nas paredes com suas sombras luminosas,
teremos pão. Teremos corpo,
e algo de um silêncio que não nos corte muito fundo.
Teremos a lâmina com seu fio imperfeito tangendo os tempos.
Em persistindo o vento sobrelevando as estações
Ainda serão seus cabelos que lamberão minha virilha
e terei seus olhos fechados me tateando no ar.
Em persistindo,
para além da chuva imensa e do acre que devora o verão
esta alegria descortinada e estes olhos de lágrima e brisa,
mais seremos um para o outro,
e estaremos mergulhados neste entreentranhas que,
quando venta,
somos nós.
§
Orisa didê
Arranca as percatas de seu cavalo
e nele galopa com os pés no chão.
Solta um grito que se espeta no alto
e,
repetido,
saúda a terra com a majestade de sua presença.
Dança sem a calma das horas,
pois seus braços se erguem para fora do tempo.
Caminha com sua carne de mito
e, quando vai, não parte.
Apenas se banha em seu próprio mistério.
§
Rodrigo Damasceno (Feira de Santana, 1985)
Kosí Ewé, Kosí Òrisà
para Maria Dolores
Onde não tem mato mas mesmo assim folha - estou.
Onde não passa rio mas mesmo assim pássaro - estou.
Onde não bate mar (coração) mas mesmo assim onda - estou.
Onde não pega fogo mas mesmo assim chama - estou.
Onde não chega gente mas mesmo assim vamos - estou.
Aqui Restou
§
Os peixes vermelhos
estou contando os peixes que passam: somo os vivos aos mortos - e conto todos; e em seguida ao centésimo de cor azul, de cor pedra, de cor fogo, vou acender um teu cigarro e mergulhar (apneia, agonia, certo sufoco)(vou em teu cavalo terreno, este bicho louco - enxame de músculo e osso - e ponte): e passarei com eles, com os peixes roxos, aos pés de quem nos conte, a todos, esteja eu vivo esteja eu morto.
§
Portugal não descobriu o mundo, mas eu conheço gente que vive em Maputo, que viu o Japão, que ama o Porto - e este poema é escrito com acento luso. Conheço um português, (ele é o dono desta pensão), que já não tem sotaque, já não tem saudades: ao falar-me de sua cidade, comparou-a com o sertão, ele pensa que eu vim do sertão (que bom, pensa que sou como ele, então) Portugal não descobriu o mundo, mas eu conheço gente que quer voltar para o Rio de Janeiro, que já não suporta o caos, já não suporta o cheiro mau do rio Pinheiros - será que este também vai morrer no meio do mar? Portugal não descobriu o mundo, não é o dono do mar, mas eu conheço gente, conheço gente, conheço gente. §
Uyatã Rayra (Feira de Santana, 1987)
§ Encerro esta postagem com 3 poemas, de 3 poetas com quem convivi durante os dias de oficina em Salvador. Meu abraço a todos os novos amigos na Bahia.
Alex Simões (Salvador, 1973)
poesia, pai dê uma
poesia é
é round
é play-ground
é underground
é all-around
quem não gosta de brincar
não desce da plêiade
e põe a culpa no Pound
§
Marcio Junqueira (Feira de Santana, 1981)
Ele não era louro, era gallego (Para ler ao som de "Quero ser justo" - Caetano Veloso) ele não era louro era gallego gallego da galícia há muitos anos seu avô tinha vindo de lá cá teve duas filhas a mais nova - ainda muito nova - engravidou casou/separou e teve esse menino que não era louro esse menino gallego que comia terra brincando com o avô no quintal em paciência esse avô que era louro e mais que isso era : gallego gallego (seus pais (os bisavós do menino) eram primos) essa parte da historia ele não contou mas eu imagino muito magro e muito branco tomando chocolate e assistindo doug frágil e assombrado como agora (quando o avô já não é mais quando paciência é um lugar longe onde, de vez em quando, ele vai) sentado no sofá azul na fotografia que não tirei falando coisas que não ouço concentrado que estou na sua boca ou mais cedo com luva amarela de borracha mexendo mingau de maizena e cantando mr. sandman daqui a pouco vou beijá-lo depois disso vão existir duas noites e dois dias mortos até ressuscitar ao terceiro dia e me fazer feliz e me fazer infeliz depois mas antes disso eu olho ele ele me olha e nem mesmo saturno visto de um telescópio o livro das perguntas de neruda uma pessoa pintada e deitada na grama ou uma casa de legos habitada por playmobils consegue ser mais bonito.
§
Ederval Fernandes (Feira de Santana, 1985)
O cobrador da van disse
oxeee, mô fio,
é ba-rril.
nego pagou foi pau.
né, moral,
tu num viu?
tu vai pá rua,
pacêro?
simbora, qui é passe.
dinhêro né mato,
que nasce à toa.
amanhã é dumingo,
viu, coroa?,
e cabucives é sagrado...
sem baratino,
no barro, só de boa.
e é isso meismo.
mar menino.
se alterar o plantão,
tu já num sabe?
é daquele jeito,
mô fio.
é dá um mole,
o pipoco vem.
vai, sá-cana -
é-só-o-barril.