Érico Nogueira nasceu em Bragança Paulista, em 1979. Conhecemo-nos em 1998, na Faculdade de Filosofia da USP, na qual ingressamos naquele mesmo ano, iniciando nossos estudos de lógica, estética e filosofia política com os professores daquela época: Ricardo Terra, Renato Janine Ribeiro, Marilena Chauí, Márcio Suzuki, entre outros; curso que eu viria a abandonar dois anos mais tarde, para unir-me ao grupo de teatrologia com que passei a estudar Brecht, Artaud e Grotowski, com alunos de Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes da USP (criando a peça "1999", que estreou em junho de 1999), e mais tarde ao grupo de pesquisa das técnicas do coreógrafo mineiro Klauss Vianna, com Luzia Carion e companheiros como Verônica Veloso, Lígia Borges e Paulina Caon, experiências que seriam determinantes para meu trabalho poético posterior. Érico Nogueira permaneceria no curso de filosofia, onde graduou-se e pós-graduou-se, sendo hoje mestre e doutorando em Letras Clássicas pela USP.
Dois hálitos (Érico Nogueira)
O sopro,
esmurrando a escarpa,
esmurrou também o estômago
de quem lá estava.
Ali,
da mão soube o peso,
a douta agulha e a linha
no corpo incoeso.
No lábio
pousou-lhe a perdiz:
não sabia que é alado
o que um soco diz.
Aproximamo-nos pelo interesse comum em poesia. Naquele momento (ele com 19 anos, eu com 21), como a grande parte dos jovens poetas, nossa admiração comum era, principalmente, por João Cabral de Melo Neto e Ezra Pound. No entanto, desde aquela época nossos interesses já se bifurcavam. Minha pesquisa levava-me a dividir minha atenção entre poetas, cineastas e artistas visuais. Érico Nogueira dedicava-se primordialmente à literatura e à filosofia, cada um de nós alertando o outro dos perigos do caminho escolhido. Meu caminho me levava a poetas e pensadores modernos e contemporâneos, como Gertrude Stein, Ludwig Wittgenstein ou John Cage; o seu, aos poetas e pensadores da Antigüidade, como Aristóteles e sua Poética, a Horácio, de quem li poemas pela primeira vez em tradução de Érico Nogueira, e Píndaro, que me foi mostrado também por ele. Enquanto isso, eu tentava convencê-lo da importância de perceber que a poesia não havia parado em Mallarmé ou, no mais tardar de sua perspectiva, em Rilke.
Nossa noção de sincronia deveria ser capaz de acomodar todas estas escolhas?
Tal relação com os parâmetros entendidos a partir das letras clássicas permaneceu forte entre poetas mesmo durante o Modernismo vanguardista. Basta pensar nas máscaras de Ezra Pound, na poesia tardia de H.D., Carlos Drummond de Andrade ou Salvatore Quasimodo. Penso na surpresa e entusiasmo de Sérgio Buarque de Holanda diante de um livro como Poemas, de Dante Milano, publicado em 1947. A surpresa diante da clareza estóica do que usa o mínimo da paisagem poética ao seu redor, e entrega-se a um arsenal meticuloso e preciso da tradição. Diante dos poemas que abrem aquele livro de Milano, eu penso nas escolhas atuais de Érico Nogueira, como em sua série de sonetos chamada "Estações", da qual este é o poema que a abre:
A noite, e tudo o que é escuro e cíclico
e liquefaz-se ao tempo do farol,
está predita em todos os testículos,
nas orquídeas que chegam com a estação,
embora não vejamos. Só o ouvido,
que pinça o inominado, pinça, então,
do rio a cuja beira estive, estou,
o ar da bolha, da que morre o grito.
Eu não ouvia bem naquele tempo
quando meu olho, então recém-aberto,
se iluminava, fixo no desenho
que as folhas têm olhadas mais de perto;
...tanto pior, tanto mais fria a noite
...de quem vai nu ao mar, vai nu ao monte.
Érico Nogueira e eu mantivemos uma correspondência intensa entre 2001 e 2004, por cartas, expondo nossas desavenças e discordâncias est-É-ticas com veemência e paixão. Talvez tenha aprendido mais, discordando de Érico Nogueira, do que concordando com outros poetas. A necessidade da formulação est-É-tica dos meus pensamentos em nossa correspondência, no início com longas cartas, mais tarde com mensagens eletrônicas esporádicas, fez com que eu fosse obrigado a estruturar meus princípios poéticos e a ideologia de minha percepção de tal forma, que me preparou para os debates e trincheiras que estavam por vir. Não foi apenas um gesto de amizade que me levou a dedicar meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (2005), a ele. É o reconhecimento da necessidade da discordância e do debate para o crescimento e amadurecimento de um posicionamento crítico e poético.
Mesmo hoje, há poucos poetas de quem discordo mais do que Érico Nogueira, e é mútuo o sentimento. Para ele, meu trabalho aproxima-se de forma perigosa de uma noção poética que leva ao culto da personalidade e ao vanguardismo vicioso. Para mim, seu trabalho aproxima-se de uma noção a-histórica da poesia, que leva poetas a tomarem a tradição como caixa de ferramentas acumulativas, com usos independentes do contexto histórico.
A poesia e a presença de Érico Nogueira, porém, servem-me de lição e prova da possibilidade de debate enriquecedor entre poetas com est-É-ticas distintas. Já chegamos a comentar um com o outro que, se não fosse nossa amizade, que nos leva à segunda, terceira, quarta leitura do trabalho do outro, para buscarmos ao menos entender seus propósitos, já teríamos dispensado o trabalho do outro com um dar-de-ombros, dizendo: "Inteligente, mas muito equivocado." É esta generosidade, que leva um poeta a primeiro entender o que o outro está tentando fazer e quais as implicações deste ato para depois discordar, que eu espero poder seguir na leitura de poetas que jamais encontrei. É a única crítica verdadeira e generosa, no melhor sentido da palavra. A crítica que o próprio Ezra Pound, nossa admiração em comum, praticou.
O que mais aprecio e respeito, além do apuro técnico de Érico Nogueira, é a maneira como ele consegue assumir suas máscaras de forma honesta, tentando reconhecer ao máximo o seu momento histórico e a possibilidade real de portar tal forma em seus poemas. Penso em um poema como "Bucólica", em que ele sabe estar impedido, histórica, cultural e geograficamente, de assumir a máscara pastoril de um poeta árcade, ainda que ele consiga ressuscitar certos tons de um Gonzaga:
Bucólica
Embaixo da
faia, eu
via sombras
caírem da
montanha;
o ar escuro,
a coruja,
outro vale.
Intocável
hoje sob um
sol estático,
sem que recorram as
estações,
recolho formas
plenamente iluminadas,
que se entregam fáceis,
e se calam.
§§§
Não há faias na
América do Sul.
As que eu
quero, nem no
Mediterrâneo mais.
Estão abstratas no
poema de
Virgílio,
são refúgio da
sombra,
...........desafio,
..............abismo.
Olho a montanha:
minha,
alheia.
Pasta aí
um
gado insípido,
a vaca indiferente que
temos de
cobrir.
Seu primeiro livro, terminado à mesma época que meu Carta aos anfíbios, só agora encontrou editor, após ganhar o prêmio da Secretaria de Cultura de Minas Gerais, como melhor original de poesia. O livro, que por muito tempo chamou-se Poemas, como o primeiro de Dante Milano, passou a chamar-se O Livro de Scardanelli, devido a uma série que encerra o livro, e sobre a qual Érico Nogueira escreveu:
"Os poemas de que se compõe este Livro seriam, de início, tradução de todos os vinte e três que o Hoelderlin tardio, completamente louco, assinou, com data e tudo, com o nome de Scardanelli. Não pude lograr o meu intento; ora mudava os motivos dos poemas, ora trocava o essencial pelo acidental, ora – circunstância onipresente – simplesmente não conseguia traduzir e então inventava o que me desse na telha. Ainda assim, se forem belos os dezoito em que mexi, é porque inexplicavelmente, apesar de toda a adulteração, manteve-se o sopro do seu autor; se não, isto se deve inteiramente ao tradutor – se é que se pode chamar assim a quem deliberadamente, ou quase, falsifica o que deveria conservar."
Abaixo, um dos 18 poemas da série:
À mesma
Já foi bastante – volta agora para a sombra
e acha o que dizer do tempo que te alumbra:
“ó tempo assim assado” – não o digas;
o tempo muda, tornam as fadigas.
Então reclina o dorso e fecha o olhos;
a pérola hipotética entre os teus escólios
não foi achada, se é que alguma há;
como trazer o sol de lá pra cá?
09/03/1940
Seu livro tem o lançamento programado para o fim deste ano, assim como outros livros que, creio, se mostrarão importantes para uma compreensão da poesia multifária desta década, ainda que tão diferentes entre si e talvez justamente por isso, como o volume Icterofagia, de Dirceu Villa; Cinco lugares da fúria, de Pádua Fernandes; o livro de estréia de Walter Gam; a reedição dos livros de Felipe Nepomuceno; entre outras possíveis surpresas.
Quando o livro de Érico Nogueira for lançado, gostaria de estar presente, para discordar com a mesma veemência do meu respeito.
INICIAÇÃO, poema de Érico Nogueira
In principio erat Verbum
João, 1, 1.
1. o espanto
como armas de
novo se
esbatendo
portas batiam quando
tempestade
janelas vento vento
quando tempestade
e alguém atrás da
porta
nu
observando apenas
lendo apenas
e temendo as areias e as
constelações
o hieróglifo impresso nas
ruínas
a música e a mágica ao
redor do fogo
2. pó
nem medo nem
nada oculto na
ampulheta
se a língua dos
mortos não diz
nada
mas se um grão de areia às
vezes brilha
e uma sentença brilha e
ilumina a tumba
a lupa é súbito um
telescópio
o grão microscópico uma
estrela
e àquele que nu observava
e lia e remexia nos
papiros
súbito neste um outro
mundo
ambos iguais na
impossibilidade
de que o corpo sobreviva aos
séculos
havendo neste novo apenas
a tela o pincel e a habilidade
de eternamente pintar um
céu cinzento
3. o anátema
um quinteto de
Mozart não
refaz o
mundo
inacessível mesmo a um
quadro de
Velázquez
o mundo rodopia e pára ao
mesmo tempo
há um
quando muito
aceno no tufão de
pó
e quer seja centrípeta ou
centrífuga
a maneira de
entalhá-lo num
espelho
o aceno
sempre se insinua e
passa
e a obra concreta e a
abstrata
a que calcula o
corpo e a que dá
peso ao
vento
o imitam bem se
o mostram num lampejo
mostrando nesta perfeição o
anátema
quer seja Mozart
quer seja Velázquez
de dar o mundo inteiro pelo
aceno
4. êxodo
nem mesmo no
silêncio
rarefeito
da montanha mais
alta ou dos
confins do
inferno
há formas depuradas
da sujeira
do nojo e da
diafonia
"há merda
em tudo o que se
decompõe e é
vivo
ou foi vivo ou
será
porém se a
forma pura
não existe neste
mundo ou não
existe
depure o artesão
o quanto possa
a peça imperfeita que
compõe"
pensando nestes termos
passado o espanto e
descoberta a sorte
incertíssima de
tudo o que se
move
ele entendeu a tempestade
e de posse das
sentenças
que os mortos disseram e
do anátema
cruzou a porta e
desapareceu
§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
artigo de Ricardo Domeneck.
Berlim, 25 de agosto de 2008.
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Um comentário:
Ricardo, fico feliz por seu caráter, pela clareza de suas idéias, pela noção clara do valor amizade, tudo isto exposto neste post.
Só o fato de vc colocar tantos poemas do Érico, significa que o respeita , mesmo que dele discorde.
Eu particularmente sou nova nesta praia, mas já vi que a critica pega sempre pesado em cima das criações, principalmente as que não compreende.
Mando resposta qto a isto no meu blog.
Desafio, troca,busca, experimentalismo, são acréscimos
dignos,e
a abordagem de uma crítica revela muito sobre quem a pratica.
Ótima a sua colocação de ir-se a fundo numa obra, olhando-a em aspectos múltiplos.
A primeira vez q estive com um critico tête- a tête foi ontem e fiquei pasma qdo ele disse que a critica xinga um poema e o poeta responde com outros palavrões.
E ai vai para o escambau.
por enquanto eu estava apenas lidando com pessoas interessantes, com realidades de escrita contemporãnea diferentes da minha, admirando , aprendendo, ou mesmo criticando como forma de crescimento.
dai de repente vem aquele q se frustou qdo criança ou sei la o que. Eu sei que me aguardam altas criticas em futuro próximo
porque pelo que tenho percebido, qto mais vc se dirige a outras paragens, mais vc irrita as pessoas tradicionais
A vc e ao Èrico, desejo que a amizade suba o grau , sempre acima seja lá do q for. bjs nora
a propósito eu mesma sou extremamnte critica, e desconfio sempre por princípio, do meu proprio trabalho e dos outros, mas a diferença pode estar na vontade com que aguardo ser surpreendida nos poemas que leio,
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