quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Alguns pensamentos sobre a escrita de João Filho, sob o efeito da cafeína

A editora P55 Edições lançou há pouco o volume Ao longo da linha amarela, reunindo sete contos recentes do escritor baiano João Filho. Nascido em Bom Jesus da Lapa, em 1975, o autor chamou a atenção geral pela primeira vez com a publicação de Encarniçado (São Paulo: Baleia, 2004). Em seus trabalhos, João Filho demonstra sua capacidade incomum de aliar à experimentação em prosa uma espécie de ventriloquismo da naturalidade da fala, com uma mescla de registros distintos, que navega a braçadas de distância do prosaísmo e coloquialismo de grande parte da prosa contemporânea brasileira, sem despencar em artifícios pouco convincentes dos que se sonham esquisitos. Muitos paralelos têm sido traçados ao comparar o trabalho de João Filho com o de outros autores contemporâneos ou modernistas, como João Guimarães Rosa entre os mortos e Evandro Affonso Ferreira entre os vivos, mas a prosa de João Filho parece-me muito diferente dos experimentos calculadíssimos de Rosa, assim como muito mais tesa que a escrita insistentemente onomatopaica de Ferreira. Há no Brasil, de qualquer maneira, a tendência de agrupar quaisquer escritores que se distanciem da sintaxe ou vocabulário da prosa jornalística sob a mesma aba da "experimentação com a linguagem", apagando todas as mil-e-uma sutilezas em diferença ou até mesmo oposição entre eles, como os que forçam sob o mesmo lacre tanto James Joyce (1882 - 1941) como Gertrude Stein (1874 - 1946), estes antípodas da prosa em língua inglesa.

Em seus melhores momentos, penso na escrita de João Filho como próxima à de minha idolatrada salve salve Hilda Hilst, que demonstrava talento semelhante em fazer com que seus experimentos vocabulares e sintáticos soassem como o fluxo tagarelo inspirado do nosso querido próximo, aquele que você deveria amar como a si mesmo. Neste Ao longo da linha amarela, um exemplo estaria no texto "Cicerone cego", um dos meus textos favoritos em prosa lusófona, dentre os lidos nos últimos tempos.


55 anos de urbe e paisagem palpável. Sou rico, rigoroso e lírico. Te desagrada um guia cego? Como disse, já fiz uso de tudo que um corpo-espírito pode sentir pra saber sua cidade. Mas filhadaputamente sou cego de nascença. É o único sentido. Tragicômico, não? No tragicômico do mundo há o instante neutro? O azeitado? O nada-acontece? Possibilidades estatísticas. ----- João Filho, no texto "Cicerone cego"


Com isso, é natural que João Filho escolha, com frequência, a narrativa em primeira pessoa, permitindo que sua escrita jorre tesa como um pé-do-ouvido, ditado ao pé do ouvido, deixando à vontade de descrever apenas a opção da escolha dos impropérios. Em minha opinião, os melhores parâmetros para julgar a qualidade da escrita de João Filho nós encontramos naquela estante mental em que habitam trabalhos como Qadós, de Hilda Hilst (1930 - 2004) ou Catatau, de Paulo Leminski (1944 - 1989), mas também trabalhos como Abraçado ao meu rancor, de João Antônio (1937 - 1996).


1º deduragem –

Cabral casquetou – cogitas o quê, bostinha? décadas de coió e pretendes a lábia? desembuxa! do camburão no aperto. cataram-me na porta de casa, Xotinha inda encostou e França rosnou – circula, circula. dei de mal. também só apareceu patente: tenente dois, major um, pra me pegar. sexta'carnavalesca, eu mão na massuda, tirando anos, enroupando um e as patentes fecho'cercaram – se esticar no pé, esticado fica, seu bostinha! obedeço. a mana'caçula vacilou numa quebra do Morro, o degas-bostinha aqui que deu a presença e se samba-treiteou. peguei purga. a mana e a amiga, necas.
----- João Filho


Mas confesso que a referência a Hilda Hilst, em um texto que pretende ser apenas o pequeno relatório de algumas considerações pessoais sobre o trabalho de João Filho, por ocasião da publicação de seus últimos contos, surge aqui pontualmente também pela relação entre a prosa do autor baiano e a sua poesia. Assim como a escrita de Hilst surpreende ao parecer eleger, para a sua prosa, os parâmetros do assim-chamado Alto Modernismo e das vanguardas, e, para a sua poesia, os de poetas da tradição clássica (unindo Catulo a Beckett), também a escrita de João Filho parece por vezes dividir-se claramente entre modelos distintos, respeitando ainda os gêneros que muitos vêem cada vez mais como obsoletos.

Os dias grandes
João Filho


Manhã dissipadora,
azul e antifantasmas,
seu vasto lençol de luz
protege sem esconder,
materna como quem nutre.
Se todo o entorno aclaras
também a alma, ex-pavor,
deambula pela casa
menos dor e inflamada.
Nesta quarta-feira austera,
nítida como uma culpa,
ajuda-me a destecer
os caminhos começados,
quantas vezes a malha
no novelo esgarçada,
o linho-dádiva e sujo
nos quintais, campos e praças
e nas ocultas cisternas
que do berço à cova nos
dessedenta e maltrata,
como convém a essa doença -
mais tratada mais se espalha,
saúde que escalavra.
Manhã inédita e arcaica,
reverência contemplada,
apesar do dia sólido
em folha sorvendo sol:
totem desmistificada.



Assim, unindo à publicação de textos em prosa com trechos tais: "Baby-me, rasga-rasga, meu inevitável fantasma. que matéria-nome é passível de devastação? nada de retornança ao chão originário que com os séculos novamente seres. quero a dissolução sem indícios: termo outro que indique... nada! quero a negança do grafar disso. agora-manhã e o que fazes, dádiva-desgraça? assola esta perrengue carcaça com ruas por onde vagara de mãos dadas, lanchonetes onde maternalmente consolara e AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH. só berro: a imagem sonora que mais se aproxima dessa intensa, Baby-me, trauma. só", João Filho nos traz a escrita e composição de sonetos como este:


Das elegias: resoluta
João Filho


Não mais memória, não mais a vaidade
de durar em qualquer ponto do espaço;
agora a simples luz sobre a cidade,
conforto de mistério sem cansaço,

não fácil. A bendita brevidade
vivida, que cintila no meu braço
onde pousa veloz em raridade
canta e parte azulando o sanhaço que

cruza o parque e o círculo de clareza;
nos ipês altos, tão velhos, o vento
é apenas o vento, e na pobreza

digna dos vendedores atentos
os níqueis dão os pães da certeza, que
os pombos migalham no pavimento.



Assim, João Filho parece estar entre os vários talentosos poetas-escritores brasileiros que dedicam admiração (eu diria inexplicável, mas compreensível) ao Bruno Tolentino de A imitação do amanhecer, talvez sem perceber com clareza que são autores mais interessantes que o equivocado poeta carioca, como é o caso, por exemplo, também de Érico Nogueira, que eu considero muito melhor poeta que Tolentino. Prova de que, na poesia, não vale o ditado do "diz-me com quem andas que eu te direi quem és."

João Filho demonstra a melhor aplicação do soneto, eu creio, em seus textos satíricos e eróticos, nos quais poderíamos dizer que sua qualidade poética excede também a de Glauco Mattoso, como neste exemplo:

Cagando grapho o rigoroso ranço,
Ensebo o rabo da palavra cachorra;
Gláucico, merdoso melo e tranço
Um modo-merda: não corra.

Repare: não é na tripa seca o avanço
Que propala a pura-palavra-porra,
Nem posta postura de poeta panço,
Pois a forma é fixa e o tema é borra.

Tampouco é tara, mas peço engulho
(Por favor, purista permaneça atônito)
Bosta só presta se motiva vômito.

Sei. Nada revelo e não ganho tusta
E ainda guloso galo buça e bagulho,
Pois cagando grapho e muito me gusta.



Pessoalmente, prefiro e admiro os poemas de João Filho em que ele se aproxima dos caminhos entre caminhos trilhados por sua prosa, como no ótimo "Três ponteados e uma sabença":


Fragmentos de Três ponteados e uma sabença
João Filho

É Ojasso Margoso
farinhando seu sustento
na curva da duna
alinhavando lamento
na lombada da ponte
todo esforço é nulo
bovinamente bolando
a touceira e o pulo.



É fundura de cova
que tatu não se arrisca
e todo o seu incêndio
no meu capim é faísca
escancarada feito retina
em noite defunta
chumbo espalhado no ar
quenãoseajunta.


(...)


Intoca seu sal e adaga
no fojo que o sol atiça
sabe na brenha a fonte.
Lá fora esperneia à tarde
sem seiva, acama e arde
nos baixios depois do monte.



Mas mantrichã amou curiango
numa peleja sem valia
e despencou na incerteza.
Lá onde o vento encurva
pra vista ficar mais turva
e o corpo ser fera presa.


(...)


Porisso no tabuleiro o caniço físsil,
agulhando. Nas beiras o tato é cortante;
seco, apesar de parado, procura rixa:
no plástico, no flandres, no instante
em que areia é moída por sede errante,
deixando sedenta até lagartixa.



Seco grimpa na grés, o quê? só Deus sabe,
seco negreja na nascença, desampara;
reduz o fóssil a ferrugem, desnorteia;
(veja a linguagem – ao poeta é cara)
seco é áspero, a própria planície vara,
antes que vingue, ele disseca a veia.



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3 comentários:

Angélica Freitas disse...

quero ler o joão filho.

Giuliano Gimenez disse...

muito bom por aqui,domeneck. vim atrás do joão filho, do qual nem sabia que tinha parido mais um filho. puta grilo, realmente com o encarniçado, me parece que estamos na frente de um monstro.

vou acompanhar seu espaço, senão me engano você tem um texto escrito na revista inimigo, não tem?

aquelabraço

Ricardo Domeneck disse...

Angie,
eu gosto muito do trabalho do moço de Bom Jesus da Lapa.

Giuliano,
que bom que você curtiu. Sim, eu tenho textos publicados em alguns números da Inimigo.

beijos

Domeneck

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