Foram dez dias fora do Berlimbo, passando pela Áustria, Eslovênia e Itália, recheados de encontros com poetas bastante interessantes nos vinhedos de Medana, na fronteira eslovena e italiana. Já participei de vários festivais desde a publicação do meu primeiro livro em 2005, posso dizer com segurança que este foi um dos mais interessantes, com uma seleção muito boa.
§ - Klagenfurt, Áustria
Cheguei a Klagenfurt num domingo e a cidade estava completamente deserta. Decepcionei-me em minha crença na famosa cultura-do-café austríaca. Talvez ela se aplique apenas a Viena. Imagino que Ingeborg Bachmann possa ter tido uma infância dos sonhos por aqui na década de 30, com o lindíssimo Wörthersee ao lado, mas entendi, em Klagenfurt, a fúria anti-nacionalista dos melhores escritores austríacos, em especial no pós-guerra. Basta pensarmos em Thomas Bernhard, no Grupo de Viena ou os artistas/interventores do Aktionismus.
Klagenfurt é a capital da Caríntia, no extremo sul do país, região onde nasceram dois outros poetas austríacos de que gosto muito, a obscura Christine Lavant e o influente Peter Handke. Na verdade, tanto aqui como na Eslovênia, há a sensação de ainda estarmos num ambiente cultural que um dia esteve politicamente unido sob a dinastia da Casa de Habsburgo. Europa Central (o termo é controverso) ou portal entre o oeste e leste europeus, os países desta região ainda me parecem irmanados, mesmo que o período comunista se faça sentir na Eslovênia, não apenas na arquitetura.
§- Liubliana, Eslovênia
Tive apenas um dia em Liubliana (Ljubljana), infelizmente não pude ver muito. A cidade é bastante pequena, com pouco mais de 250.000 habitantes, muito bonita, com muito pouco de arquitetura soviética monstruosa, claramente uma antiga cidade que pertenceu ao Império Austro-Húngaro. A cidade tem como ponto central a estátua de seu poeta nacional, France Prešeren (1800-1849). A letra para o hino nacional esloveno foi tirado de uma estrofe deste poeta romântico, que imagino ter sido uma espécie de Gonçalves Dias deles ou, como disse um dos poetas russos: "Deve ter sido o Pushkin deles."
Antes desta viagem à Eslovênia, conhecia pessoalmente apenas dois poetas do país: Tomaž Šalamun (n. 1941), um dos poetas europeus vivos mais conhecidos e traduzidos hoje, e o mais jovem Aleš Šteger (n. 1973), envolvido com a organização do festival. Šalamun é um ótimo poeta e um cavalheiro, um homem muito gentil. Tive a honra de ler com ele três vezes, pela primeiro vez no Festival de Poesia de Berlim, em 2008, no festival European Voices do mesmo ano, também na capital alemã e, em março deste ano, no primeiro Festival Internacional de Poesia de Dubai, onde conheci Aleš Šteger pessoalmente. Já conhecia a poesia de Šteger, havia lido vários poemas seus em um antologia de poesia eslovena contemporânea traduzida e editada aqui na Alemanha.
Šalamun estava em Medana na noite em que li e na seguinte, sempre muito educado e encorajador, com comentários críticos pontuais sobre o trabalho de outros poetas. Abaixo, o vídeo da leitura de Tomaž Šalamun no importante "Lunch Poems", série de leituras na Universidade da Califórnia em Berkeley.
(Tomaž Šalamun, série de leituras "Lunch Poems", Universidade da Califórnia em Berkeley, 5 de fevereiro de 2009)
Na primeira noite eslovena, fui levado para a pequena cidade de Ptuj, onde li 5 poemas, ao lado do cíprio (de língua turca) Mehmet Yashin (n. 1958), da francesa (nascida na Tunísia) Nicole Gdalia (n. 1956) e do esloveno Gorazd Kocijančič (n. 1964). As leituras foram muito boas.
Mehmet Yashin é um ótimo oralizador dos próprios textos e nossas conversas foram muito estimulantes. Yashin é professor de Literatura Comparada e Tradução em universidades da Inglaterra, Turquia e Chipre. Durante o jantar, iniciou-se uma discussão sobre os gregos Odisseus Elytis e Giórgos Seferis, ganhadores do Nobel, dois gregos modernos por quem jamais consegui me interessar muito. Quando me perguntaram, disse apenas que confessava não me interessar muito por Seferis e Elytis, ainda que gostasse de muitos poemas de Seferis, mas que os gregos modernos que eu amava sempre foram Konstantinus Kavafis, Nikos Gatsos e Yannis Ritsos. A face de Mehmet Yashin se iluminou e passamos a conversar sobre Cavafy, sobre quem ele escreveu muito e a quem ele considera uma de suas maiores influências. Como Cipriota, Yashin tem o privilégio de pertencer tanto à cultura poética grega como à turca.
Ainda durante o jantar, Nicole Gdalia perguntou-me se eu gostava de Hilda Hilst. Foi a minha vez de iluminar o rosto inteiro e falar sobre a influência de Hilst sobre o meu trabalho. Gdalia dirige a editora Editions Caractères, e publicou em 2005 dois livros de Hilda Hilst na França, as coletâneas de poemas De l’amour e Poèmes maudits, jouissifs et dévots num único volume, e a novela Rutilant Néant. Como não gostar de uma mulher que encerra uma conversa com a declaração: "Tenho orgulho de ter perdido dinheiro editando Hilda Hilst!". Com Gdalia conversei ainda muito sobre Pierre Albert-Birot (ela se supreendeu que um brasileiro o conhecesse e o houvesse traduzido) e o maravilhoso Edmond Jabès.
Gorazd Kocijančič é um cavalheiro, uma das criaturas mais interessantes que conheci no festival. O homem é poeta e filósofo, além de nada menos que o tradutor das obras completas de Platão para o esloveno. Meus três companheiros de leitura inspiravam, cada um à sua maneira, muito respeito.
Partimos na manhã seguinte para a vila de Medana, onde ocorreria nos próximos quatro dias o festival. Escrevo sobre estes dias nos vinhedos de Medana e sobre os outros poetas nas próximas postagens. Abaixo, a tradução para o inglês de um poema muito bonito do cíprio Mehmet Yashin.
Piero I want to die at your hands
Mehmet Yashin
Piero I want to die at your hands
my self is a load too heavy to bear to Venice
I´m looking for the fast lane to suicide
I parked my motor-cycle Piero with you
they don´t care about traffic at this hour, My Lord
Kill me before the red light changes
I started this song in Athens Piero
you silver-bodied other-world of the icons
I a burning prayer-candle Piero
Oh Lord Most High extinguish my flame
Piero my little death angel
aiming his bow at me in naked stone
this world is full of evil Piero
please take me to paradise
for Piero I cannot surrender to life
I can neither hold my tongue nor run away
probably I can no longer live in this world
So Piero may I be buried in you tonight
Piero my little death angel
I want to die at your hands
Piero let´s go.
Atenas, 1988. tradução para o inglês de Taner Baybars e Linda Stark.
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sexta-feira, 4 de setembro de 2009
Primeira parte do pequeno relatório de uma viagem
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4 comentários:
Que bom, meu amigo: bela experiência, edificante, enriquecedora, Abração. E.
Meu caro amigo,
foi realmente muito enriquecedor.
Abraco. R.
juro que posso ouvir morrissey cantando piero i want to die at your hands. muito bom.
Angie,
também curti muito. E você precisava ouvir o cara lendo o poema. Muito bom.
beijos
R.
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