domingo, 3 de janeiro de 2010

Entrevista para o jornal "O Estado de S. Paulo", na íntegra

Foi publicada hoje, no caderno "Cultura" do jornal O Estado de S. Paulo, uma resenha de Francisco Quinteiro Pires para o meu Sons: Arranjo: Garganta, assim como o Ambiente de Walter Gam e o Mapoteca de Felipe Nepomuceno. Publico abaixo, na íntegra, a entrevista que Quinteiro Pires conduziu comigo durante minha viagem ao Brasil, a quem possa vir a interessar.


Entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo
concedida a Francisco Quinteiro Pires
em dezembro de 2009.



Você inverteu, entre outros, o poema "Áporo". Por que desestruturá-lo dessa maneira? Isso revela, de algum jeito, a sua poética?


Meu interesse na corporalidade da escritura e na relação entre esta e a oralidade me levou a trabalhar com vídeo e performance, assim como o que se convenciona chamar de poesia sonora. Você se refere aos poemas em que trabalho com a noção de "som que faz sentido" e "sentido que faz som". A "inversão" do poema "Áporo", de Carlos Drummond de Andrade, ocorre na segunda parte do primeiro. Essa pesquisa revela certos elementos da minha poética, pois é a radicalização da ideia que sigo, de que não importa o que o poeta diz, mas o que ele faz. Também naquilo que chamo de "poética de implicações", as implicações do que o poeta fez com a língua. Neste exemplo, eu radicalizo isso. O que está sendo feito ali? Na primeira parte, eu uso o poema fonético "Karawane", de Hugo Ball, como "forma fixa". No poema de Ball, são "sons sem sentido", trata-se de poesia sonora. Parecia-me interessante reproduzir o exercício de Hugo Ball, mas com palavras que têm sentido, ainda que em línguas que eu não entendo. Nesse primeiro texto, eu uso palavras do holandês (os outros dois poemas usam o polonês e o húngaro, línguas que não conheço), palavras que têm exatamente o mesmo número de letras dos "fonemas" de Hugo Ball. O que me interessa são as implicações linguísticas disso, que cada um tirará por si mesmo se estiver interessado nisso, nas relações entre som e significado, fonema e signo, sua arbitrariedade ou não, interpretação do sistema fônico, etc. Há também um certo sarcasmo em questionar a noção de "forma fixa", já que eu trato o poema fonético de Hugo Ball, um dos fundadores do dadaísmo, como outros trataram a sextina de Arnaut Daniel ou os sonetos dos poetas renascentistas. Para muitos leitores isso poderá parecer conceitual demais, chato, mas esses textos são realmente uma radicalização disso. Na segunda parte, investigando a relação agora da escritura com o oral, do signo visual com o sonoro, eu tomo poemas canônicos das três línguas que comparecem no livro (português, espanhol e inglês), e faço a inversão deles, questionando mais uma vez as relações entre o visual e o sonoro, sentido e nonsense, construção e desconstrução, através de poemas de Carlos Drummond de Andrade, Jorge Guillén e Wallace Stevens. Essas escolhas não foram arbitrárias. Nesse caso, posso descrever o que fiz sem correr o risco de explicar o que está dito, pois a interpretação das implicações disso dependerá de cada leitor e apenas se ele estiver interessado nessas questões, não espero ou exijo de forma alguma que todos estejam.


Existe uma temática, se não entendi de modo equivocado, em Sons: Arranjo: Garganta sobre uma vontade recorrente de ser arrebatado, assaltado, de perder mesmo os limites da individualidade. O que isso significa?


Eu sempre fiz do questionamento de dualidades um dos pontos principais do meu trabalho. Há também o fato de que me considero um poeta lírico. A temática amorosa, mesmo que disfarçada, é a mais recorrente nos meus poemas. Há poemas de amor disfarçados em outros temas, assim como há poemas críticos disfarçados de poemas de amor. É por isso que me interessa, unindo a temática amorosa com a quebra de dualidades, a noção de dissolução do EU no OUTRO. Isso pode ser visto de várias maneiras, na dissolução entre nacional e estrangeiro também. Na década de 80 e 90, por influência de João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos, havia a preocupação de evitar uma poética subjetiva demais, fazendo com que a poesia se tornasse mais seca, preocupada com a descrição objetiva do mundo exterior e com processos de linguagem. A diferença hoje é que muitos poetas não tentam mais obliterar o subjetivo, mas o tentam expor através dos jogos da linguagem. Parece-me uma outra noção de consciência de linguagem, mesmo que poetas mais velhos discordem.


Outro tema constante é a perplexidade diante dos afetos em embate. É isso mesmo?


Voltando um pouco à questão anterior, a temática amorosa me interessa, me fascina. Ela nos acompanha desde a poesia lírica de Safo de Lesbos. Meus poetas favoritos sempre foram aqueles dos embates entre o sujeito e o outro, como Safo, Catulo, os trovadores medievais. Sempre me fascina mais o poeta lírico, sem deixar de me preocupar intensamente com a historicidade do trabalho poético. É uma ilusão crer que apenas o poeta épico se interessa pela historicidade. Vou cometer uma blasfêmia agora para muita gente, mas a verdade é que em muitos momentos prefiro Safo a Homero, Catulo a Virgílio, Arnaut Daniel a Dante Alighieri, qualquer trovador medieval a todos os literatos renascentistas juntos, a lírica de Camões à sua épica. Gosto demais da poesia amorosa atormentada, seja a mística de San Juan de la Cruz, Gerard Manley Hopkins e Murilo Mendes, ou a pessoal de Hilda Hilst, Wislawa Szymborska e Mina Loy. Sou obcecado por filmes como "A professora de piano", de Michael Haneke; "Dolls", de Takeshi Kitano; "Não amarás", de Krzysztof Kieslowski; "Hiroshima Mon Amour", de Alain Resnais, entre outros que pesquisam os "afetos em embate", como você disse. Ou, como Drummond encerra o poema "Amar": "a água implícita e o beijo tácito e a sede infinita."


Você poderia comentar a ação do caos em Sons: Arranjo: Garganta?


Quando eu estava crescendo e me formando como poeta na década de 90, todos elogiavam a poesia daqueles que eram concisos, secos, econômicos, racionais, construtivos. Eu me sentia um pato-feio/peixe-fora-d´água, pois eu preferia justamente os que eram arrebatados, febris, atormentados, sem que perdessem a noção de artesania. Mesmo em João Cabral, que era o santo padroeiro dos partidários da secura, eu preferia poemas como "O cão sem plumas" ou o super-construído e ao mesmo tempo atormentado "Uma faca só lâmina". No entanto, meu mestre sempre foi Murilo Mendes, sem mencionar Carlos Drummond de Andrade, que foi mestre de todos. O poema brasileiro que mais me fascina e com o qual mais aprendi é "Janela do caos", de Murilo Mendes. É por isso que dialogo com ele (e com John Cage, o partidário do acaso) por todo o livro, mas especialmente no último texto, que me consumiu muito tempo, chamado "cage of chance jaula do caos". Pode parecer caótico, mas é construído em sua composição de correspondências caóticas. Eu me interesso por uma aceitação adulta do caos, com a consciência da artificialidade das nossas construções que tentam escondê-lo. Além do mais, diria como João Guimarães Rosa: "Prefiro crer que uma ordem secreta impera." Essa ordem seria a "Máquina do Mundo"? Jogar com a sua sugestão e inexistência me interessa.


Como você responderia a Wittgenstein: Como a sua dor de dente se diferencia da minha?

Ler Ludwig Wittgenstein foi um dos maiores redemoinhos por que já passei. Ele é uma das fontes principais de tudo o que pesquiso sobre uma poética de implicações, com suas proposições filosóficas que às vezes parecem koans de um mestre zen ou parábolas de um rabino. Ele era um mestre da escrita que une o "dizer" e o "fazer". Não há como "explicar" suas proposições, o fascinante é começar um processo pessoal em que você passa a responder às implicações delas. Como um dos meus interesses principais é recuperar uma pesquisa corporal, especialmente no Brasil, que é "país do carnaval" mas ignora seus artistas da performance e do corpo, pois está sempre fascinado com o construtivismo abstrato dos europeus. Muito mais afeitos ao êxtase, deixam-se fascinar pela ascese. O interessante é unir os dois. Não estou fugindo da resposta: Wittgenstein interessa muito a uma poética corporal. É apenas passando pelo corporal que poderíamos começar a pensar nas implicações de sua pergunta: "Como a sua dor de dente se diferencia da minha?" Mais uma vez, retornamos ao que falávamos antes, sobre a dissolução do EU no OUTRO, nas dualidades pouco saudáveis que separam o subjetivo do objetivo, o concreto do abstrato, o corporal do espiritual. Tudo isso está ligado.


Você poderia falar um pouco sobre a sua formação intelectual e o seu cotidiano profissional em Berlim, por favor? Seria interessante falar da influência de outras esferas como a música e o vídeo na sua arte...

Entre 1998 e 2000, estudei (oficialmente) filosofia na USP, ainda que, aos poucos, me ligasse mais e mais a um grupo de estudantes de teatro, formando a Tribo de Teatro Tumutupugá, com quem encenei o espetáculo "1999" em junho de 1999, no Teatro Laboratório da ECA - USP. Assim, Kierkegaard, Pascal e Espinoza foram aos poucos substituídos por Brecht, Artaud e Grotowski. Tudo isso está intimamente ligado à minha pesquisa de quebra de dualidades entre o mental e o corporal. Tudo isso se intensificou quando passei a trabalhar com Luzia Carion e seu grupo de pesquisa corporal baseada nas técnicas do coreógrafo mineiro Klauss Vianna. Ao mesmo tempo, passo a trabalhar como DJ, esfera de trabalho em que é clara a interação entre o artista e seu público. O poeta escreve sozinho e raramente sabe a reação de seus leitores. Com o DJ, ou o público dança, ou não dança. A relação é imediata e clara. Isso passou a me interessar quando fui convidado a dar leituras públicas do meu trabalho. Voltamos aqui à questão do poeta literário e do poeta oral e as diferenças de pesquisa, algo que permeia a escrita deste meu Sons: Arranjo: Garganta. O trabalho com o vídeo permitiu finalmente o registro do corporal e do oral, independente do papel. Artistas como Marina Abramovic, Lygia Clark, Pipilotti Rist e Janaina Tshäpe passaram a ser tão importantes para mim quanto poetas. Hoje eu tento entender as especificidades do trabalho poético por escrito, do trabalho poético em vídeo e do mesmo em poesia sonora. Na Alemanha, sigo trabalhando como DJ e organizando eventos com apresentações de artistas multimidiáticos como Planningtorock, Wolfgang Müller, Bruce LaBruce, Kevin Blechdom, Tetine, entre outros, sem distinguir muito entre criação e curadoria.


Você é poliglota, tem uma forte formação erudita, características que permeiam a sua poesia. Isso é inevitável? O que você busca por meio da poesia?


Isso não é inevitável, é apenas uma escolha e tem sua função. De qualquer forma, gostaria de insistir que as referências ditas "eruditas" não aparecem em meu trabalho como "aura de autoridade", para fazer meus poemas integrarem a esfera da alta cultura. Muitíssimo pelo contrário. É importante ressaltar que as referências que poderiam ser chamadas de eruditas vêm na companhia de referências ao cinena, onde o erudito e o popular se unem, e também do mundo da cultura pop. Se eu cito Wittgenstein, eu também cito Kate Bush. Se eu cito Gertrude Stein, também cito Elizabeth Taylor. Mesmo assim, eu nem vejo Stein ou Wittgenstein como referências eruditas. John Cage, que é um vulto importante no livro, tinha pavor da noção de erudição, ainda que fosse um homem extremamente culto. Falo outras línguas por circunstâncias biográficas: estudei nos Estados Unidos, vivo há anos na Alemanha. É apenas honesto de minha parte que isso seja integrado em meu trabalho, já que insisto tanto na ligação entre vida e obra de qualquer artista e não defendo purismos. Espero que os poemas em outras línguas não pareçam mera arrogãncia. É importantíssimo notar, por exemplo, que a colagem que fiz em espanhol foi composta na Argentina. Há aí, mais uma vez, o que chamo de poética de implicações, além da relação vida/obra. Talvez como Drummond escreveu: "É preciso escrever um poema sobre a Bahia. / Mais eu nunca fui lá."

.
.
.

7 comentários:

Tião Martins disse...

Sei não Ricardo, sei não. Acho até a poesia que eu faço muito chata.

Ricardo Domeneck disse...

Bom, Tião, não conheço a sua poesia, mas não seja tão duro consigo mesmo, a minha deve ser bem mais chata. Mas acho que é o que você está insinuando, de qualquer forma.

beijo

Domeneck

Tião Martins disse...

Ahahahahah! A resposta foi melhor que nossos poemas então. Mas sua entrevista foi boa!
Feliz 2010.

baga defente disse...

Cheguei a esta entrevista via Poesia Hoje e, mesmo sem conhecer você ou seu trabalho, comecei a lê-la, pois concordo que vida e obra são inseparáveis. ouvir um poeta muitas vezes é melhor do que lê-lo.

gostei do que li aqui e fui atrás da obra. parabéns; caótica, porém coesa.

tb desenvolvo pesquisas poéticas e utilizo o Caos e o Acaso como principais ferramentas, utilizando imagens, frases e sons encontrados ao longo do dia e da vida.

ficarei de olho nos seus trabalhos.
e você, se tiver curiosidade, pode encontrar um pouco do meu no site.

um ótimo ano para todos nós!

M-A disse...

Parabéns, camarada, pela entrevista! Lendo o blog e deixando um abraço.

Anônimo disse...

Olá Ricardo,
não nos vemos há tempos, e embora isso não seja lá tão importante, saiba que sempre gostei de seus escritos...alguns mais, outros achava meio forçado...ou difícil, sei lá...em todo caso, aqui, sozinho e bêbado direto de belém do pará, não resisti em fazer esse comentário: sua entrevista está "caetânica"...essencialmente quando nega a erudição em nome da oralidade (sempre muito performática e pensada e repensada e anotada em prosa e verso e música...) no mais, um abraço...estando em sampa vê se aparece..carlo eugênio nogueira.

Ricardo Domeneck disse...

Querido Carlo Eugênio,

faz realmente muitos anos que não nos vemos. Estive com seu irmão em São Paulo há poucas semanas, quando fui ao Brasil para o lançamento do meu último livro. Talvez eu esteja vendo você com o conhecimento que tenho de seu irmão, mas eu diria que, vindo de um Nogueira, chamar um texto meu de "caetânico" é bastante "violento". (veja aqui neste espaço um sorriso meu).

De qualquer forma, creditarei à sua bebedice o entendimento confuso do que disse, pois não creio ter "negado" a erudição em nome da oralidade. Parece-me uma oposição ideológica sua. Nem insinuo uma "naturalidade" da oralidade contra uma "artificialidade" da escrita. Qualquer composição, seja oral ou escrita, eu vejo como artificial, para piscar o olho à sua "acusação" de "forçados" para alguns dos meus poemas.

Confesso, desta vez aqui em minha ideologia, que tentar soar "erudito" ou "cosmopolita" anda me parecendo bastante "provinciano". Talvez eu incorra no erro ao tentar evitá-lo, mas o que se há de fazer?

Agradeço a visita e conversa, que sempre acho estimulante. Você faz o que em Belém do Pará? Está trabalhando ou seguindo com os estudos?

Abraço

Ricardo

Arquivo do blog