BUSH, KATE
Gostava da idéia de ler a frase como em um imperativo, fazendo de "kate" o verbo em ordem para o senhor Bush. Era a minha intervenção mínima para o momento, carregada à altura do peito, do miocárdio.
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Sim, seu trabalho é difícil, pois exige olhos e ouvidos abertos e sem pré---conceitos. Ela embaralha qualquer noção de "bom gosto", impede que se aborde seu trabalho com qualquer idéia engessada de qualidade. Suas letras e composições (seus poemas líricos) parecem-me impecáveis, surpreendentes, estranhíssimos.
Seu primeiro álbum de poemas líricos chamou-se The Kick Inside, trazendo a famosíssima "Wuthering Heights" e outras. Seguiram-se dois álbuns com algum sucesso, até que Kate Bush (nascida Catherine Bush, em 1958, em Bexleyheath, Kent, Inglaterra) toma as rédeas de seu destino musical e escreve e arranja sozinha aquele que é um dos grandes artefatos músico-poéticos do início da década de 80: o álbum de poemas líricos The Dreaming, com alguns dos poemas cantados mais estranhos e horripilantes da década. A poeta-performer segue com seus textos obscuros, enraivecidos e seus vídeos beirando a ofensa de todo bom gosto estabelecido, como na peça de abertura do álbum, chamada "Sat in the lap":
O álbum é brilhante, 10 poemas líricos que socam a cara tardo-vitoriana dos bongostistas. A quem se interessar, sugiro a audição dos poemas-líricos (também conhecidos entre a maioria como "canções") "There goes a tenner" e "Suspended in Gaffa", de preferência com seus exquisite vídeos esquisitos. Aqui, sem abusar de vossa goldenfishy attention span, imploro que você ouça o maravilhoso "Get out of my house" (tente ignorar as imagens do filme "The Shining", ainda que reze a lenda que o filme inspirou a música e esta seja tão assustadora quanto aquele):
Mais tarde, em uma entrevista, Kate Bush diria que The Dreaming era o seu "She's gone mad' album", mas os mais atentos perceberam que se tratava de uma obra-prima, com paisagens musicais horripilantes e o uso obsessivo do synthesizer Fairlight CMI. O álbum é um tour-de-force e foi recebido, obviamente, com estupor e as vendas foram parcas.
A resposta de Kate Bush foi aquela que se espera de um artista irritado. Sua resposta me faz imaginar Kate Bush pensando assim: "Vocês querem pop, queridinhos? Eu vos darei pop"... sua resposta foi produzir o brilhante álbum Hounds of love, com algumas das maiores pérolas pop da década de 80, incluindo esta coisa aqui:
A tensão espiritual necessária para fazer com que artistas produzam coisas desta natureza é gigantesca demais para durar sem que o coitado despenque. Dura o quê? 10 anos? O tempo necessário para alguém como Almodóvar nos legar sua trilogia ("Carne tremula", "Todo sobre mi madre" e "Hable con ella") e depois cair no profissionalismo? Ou Lars Von Trier nos doar a sua ("Breaking the waves", "Idioterne" e "Dancer in the dark") e depois fazer panfletos? O tempo em que um poeta produz seus trabalhos assustadores e depois se dedica ao profissional impecável? Reside na célula de onde Hilda Hilst arrancou Qadós e A obscena senhora D.? De onde Clarice Lispector desentranhou A maçã no escuro, A paixão segundo GH e A hora da estrela?
Apenas artistas extremamente corajosos permitem-se a liberdade de viver fora dos gostos estabelecidos, usando o que for necessário, seja melodrama misturado com Platão ou ficção científica com pitadas dantescas, para seus documentos do "sentimento trágico" de que falou Miguel de Unamuno.
Kate Bush entre eles e elas, herdeira das trobairitz Beatriz de Diá, Maria de Ventadorn, Azalais de Porcairagues ou a matriarca Tibors de Sarenom.
Espero um dia, velho em ossos e pelancas, dar alguma entrevista, para que o repórter me pergunte a clichética
"Qual é sua maior influência poética, Sr. Domeneck?"
e eu possa responder com uma gargalhada interna (que, naquela idade, talvez me mate):
"Kate Bush, meu querido, Kate Bush."
2 comentários:
kb também influenciou a björk.
wuthering heights no brasil, é praticamente um hino da embromation. babushka virou trilha sonora de comercial de sapato no RS. a letra de babushka é ótima! outra canção de que gosto muito é army dreamers.
foi vc que chamou minha atenção pra kb. mais uma vez, merci.
Angie,
poetas em comunidade servem para isso! Obrigado por Anne Carson este mês!
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