terça-feira, 25 de maio de 2010

Um poema que nos transporta para o inverno russo de 1812

Foi Ezra Pound quem disse que o quanto um poema nos marca a memória pode servir de indicador, ou algo do gênero, de sua qualidade. Entre tantos jargões inventados por ele, alguns bem prejudiciais (mais por nossa culpa), eu diria que este ainda segue útil, talvez por sua grande simplicidade, assim como o bonito "only emotion endures". Há poemas que ficam na memória por nos emocionarem com grande potência, outros por se tornarem marcas de um momento que passou, bom ou ruim, outros por nos ajudarem às vezes a sair da cama. Já escrevi sobre isso aqui. Vários poemas destes me acompanham, falo sempre, como exemplos, sobre o "Autotomia", da Szymborska, que me salvou a vida, com o seu "Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida. / Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou"; o "This world", do Creeley, que me ajudou a sair da cama em manhãs de tristeza de todos os break-ups, sussurrando seu "let light // as air / be relief"; o "Amar", do Drummond, com o conselho de quem já carregava mais cicatrizes do que a possibilidade de se inflamar: "e na secura nossa / amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita." Esses são os poemas que nos acompanham. Por mais que falemos em estéticas e poéticas e políticas, no fim e ao cabo de tudo, é por causa destes poemas que escrevemos poesia e é, principalmente e mais importante, por causa destes poemas que queremos ler poesia. Nós queremos no fundo e na superfície, nos ossos e à flor da pele, ser arrebatados. É claro que há poéticas que exigem outras gamas de emoções e até mesmo a ausência delas. Precisamos de todos. Mas a maneira como muito da poesia brasileira do pós-guerra pareceu recusar-se a fornecer este arrebatamento está ligado ao parco público leitor que hoje temos. Afinal de contas, que obrigação os leitores têm de se interessarem por nossas meditações metalinguísticas? Nenhuma. Para acabar com o sentimentalismo, parecemos decidir obliterar a emoção. Sou o primeiro a vestir a carapuça, sei que muito de meu trabalho já foi chamado de frio e abstrato e intelectualizado.

Acho muito interessante notar que nem estou falando, aqui, dos poemas mais importantes ou famosos destes autores. "Amar" e "This world" são quase marginais na obra de seus autores. Poderia também falar sobre aqueles gigantes poéticos que praticamente transformam nossa maneira de pensar e imaginar, como, no meu caso particular, os sublimes e lindos "The Wreck of the Deutschland", de Hopkins, e "Janela do caos", de Murilo Mendes, sem mencionar livros como Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, Silence, de John Cage, ou as Investigações filosóficas, de Wittgenstein... estou me referindo aqui, na verdade, a poemas que são quase discretos. Minúsculos, marginais, carregam algo de tão poderoso em seu bojo que nos marcam como uma explosão.

Faço todo este preâmbulo para retornar à minha lista de all time favorites, e falar de um dos poemas que jamais saíram de meu crânio desde que o li, um pequeno poema de um poeta menor: trata-se de um texto do britânico Walter de la Mare (1873 - 1956), chamado "Napoleon".

Napoleon

'WHAT is the world, O soldiers?
.......It is I:
I, this incessant snow,
This northern sky;
Soldiers, this solitude
Through which we go
.......Is I.'


Walter de la Mare


Não sei se este poema é perfeito. Sei que me parece uma maravilha de intensidade. Lembro-me da primeira vez que o li. Era 1997, eu estava em São Paulo, para ser mais preciso, em um café do bairro da Liberdade, lendo uma antologia de poesia britânica, e eu me senti transportado para o inverno russo de 1812, para os campos nevados da retirada francesa, para dentro da cabeça de Napoleão. Quase tive uma vertigem. O poema, em seus sete versos, parece-me um épico de concisão. Sua tessitura sonora é bem mais interessante que as rimas simples poderiam indicar, com aquele "soldiers", repetido, ecoando em "solitude". A música que parece circundar o céu-da-boca naquele primeiro verso, "Whaaaat is the woooorld, oooh soooldiers?", sempre me dá vontade de declamar, de subir na mesa do café & address the multitude. Ele encena, de certa forma, a self-importance de seu personagem. Parece-me um retrato ao mesmo tempo jocoso e pungente, de um tirano, de um megalomaníaco, de um humano como você e eu, mas também de um romântico a projetar suas psicoses e neuroses e ego e paixão e mortalidade sobre a natureza e tudo ao redor. Não seria impossível ver neste poema uma espécie de diatribe em irrisão para o Romantismo. E - por que não? - para o poeta. Eu amo este poema.

Napoleão

O que é o mundo, ah! soldados?
.......Sou eu:
Eu, esta neve inextinguível,
Este norte, este céu;
Soldados, esta saudade
Que nos cerca como túnel
.......Sou eu.


(tradução de Ricardo Domeneck)


Walter de la Mare é mais conhecido como escritor de histórias infantis e algumas histórias de terror. Pertenceu a um grupo de poetas que, no início do século, tentaram reunir-se em antologias sob o título de Georgian poets (por escreverem sob o reinado de George V), tentando talvez imputar-se a importância dos Elizabethan poets. Não eram, alas, uns elizabetanos, ainda que eu tenha grande apreço por alguns deles, como D.H. Lawrence e Isaac Rosenberg.

Estas antologias incluíam, além de Walter de la Mare, outros poetas que seguem sendo lidos, como o ótimo (e obscuro no Brasil como poeta) D. H. Lawrence, os jovens Rupert Brooke e Isaac Rosenberg, o insuportável Siegfried Sassoon (em minha opinião), T. Sturge Moore e até mesmo Vita Sackville-West. O termo não é mais usado com muita frequência. O grupo via-se como "modernista", mas acabou alvo dos ataques de modernistas mais militantes, como Ezra Pound e Wyndham Lewis, que os viam como parte dos "conservadores" ou filhotes dos Yellow Nineties, como Pound gostava de dizer. Alguns dos poetas passariam, além do mais, a ser conhecidos como Great War Poets, por terem lutado na Primeira Grande Guerra, como Siegfried Sassoon, alguns nela tombando, como foi o triste caso de Rupert Brooke e Isaac Rosenberg. Já escrevi sobre estes poetas da Grande Guerra, num artigo tipicamente intitulado "Guerras Mundiais, utopia e distopia nas vanguardas, poesia e historicidade, função poética e referencial e outras obsessões, aos que encontram tempo para minhas loucuras.

No Brasil, teriam sido provavelmente chamados de "pré-modernistas", este rótulo que nos impede de ver a grande modernidade de um poeta des-lum-bran-te como Augusto dos Anjos, sem mencionar a maneira como esta narrativa crítica varre para debaixo do tapete nossos melhores poetas simbolistas da chamada "segunda geração", como Marcelo Gama e Pedro Kilkerry. Mas isso já é outra história.

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2 comentários:

Angélica Freitas disse...

sempre bom ler o teu blog. um beijo.

Ricardo Domeneck disse...

Obrigado, babe.
Saudades suas.
beijo grande
R.

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