sexta-feira, 16 de julho de 2010

Traduzindo Frank O`Hara ao som de Tim Buckley, enquanto Homero e Camões agitam-se nas entranhas e a saudade me eviscera

Na última postagem, comentei um pouco e mostrei o original e algumas versões de uma das minhas canções favoritas, "Song to the siren", de Tim Buckley (1947 - 1975), composta em parceria com o poeta Larry Beckett. O que não comentei é que esta canção sempre me lembra e acaba entrando, dentro da minha cabeça e em minha garganta, em diálogo com um dos meus poemas favoritos de Frank O´Hara, "To the harbormaster", publicado em Meditations in an emergency (New York: Grove Press, 1957). Tanto o poema como a canção entregam-se a um trabalho metafórico em que a linguagem das embarcações e das águas transformam-se em canto amoroso. Eu sempre acreditei que este tipo de linguagem tem tanto efeito sobre nós porque ainda ecoa dentro da água do nosso corpo a jornada de Ulisses e, ainda mais forte, o Nekuia homérico. A nós lusófonos há ainda o ecoar dos cantos de Camões e todos os diálogos de poetas posteriores com o texto do épico português, chegando à mística de Fernando Pessoa em Mensagem (1934) e a de Jorge de Lima em Invenção de Orfeu (1952). A base dessa potência aquosa em nossas poéticas talvez resida, por fim, na fonte mítica das águas como caos primordial do qual emerge toda ordem, como Mircea Eliade descreve em quase todos os seus livros. Daí a mística do batismo como morte e renascimento, retorno ao caos original e ressurgir, não apenas lavado, mas reconstruído, não apenas limpo, mas novo. Isso é fundador em meus poemas da Carta aos anfíbios (como o título já indica) ou mesmo em vários momentos de a cadela sem Logos.


difícil convencer todas
as partes do meu corpo
do sentido
de uma ação e
assim pôr em
movimento as roldanas
da corpulência em
direção ao
abstrato cruzar
o oceano tantas
vezes umedece
os propósitos faz
querer uma cama
no fundo
não não
é irônico
que bas jan ader in search
of the miraculous afunde
desapareça em meio
oceano


(a cadela sem Logos, SP: Cosac Naify, 2007)

Lembro-me de ir a uma homenagem a Camões na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, na qual Arnaldo Antunes oralizou a tradução (creio que de Haroldo de Campos e Augusto de Campos) para o "Canto I" dos Cantares de Ezra Pound, que por sua vez era a tradução do americano para a tradução para o latim, de Andreas Divus, do "Canto XI" da Odisséia. Lembro-me de ter sentido as águas do Caos Primordial batendo contra o casco do meu crânio. Se você nunca leu este canto de abertura do épico de Pound, recolha a âncora e lance-se ao mar, lendo-o ao fim desta postagem.

Ontem e hoje, enquanto ouvia Tim Buckley de forma obsessiva durante o dia, decidi começar a traduzir aquele poema favorito que mencionei acima, "To the harbormaster", de O´Hara, que você pode ler agora no original:

To the harbormaster
Frank O´Hara

I wanted to be sure to reach you;
though my ship was on the way it got caught
in some moorings. I am always tying up
and then deciding to depart. In storms and
at sunset, with the metallic coils of the tide
around my fathomless arms, I am unable
to understand the forms of my vanity
or I am hard alee with my Polish rudder
in my hand and the sun sinking. To
you I offer my hull and the tattered cordage
of my will. The terrible channels where
the wind drives me against the brown lips
of the reeds are not all behind me. Yet
I trust the sanity of my vessel; and
if it sinks, it may well be in answer
to the reasoning of the eternal voices,
the waves which have kept me from reaching you.



Há algo de extremamente simples neste poema, que parece ressoar em algum ponto muito primordial dentro de nossa poeticidade. Para mim, "To / you I offer my hull and the tattered cordage of my will" é uma coisa muita linda. Sempre gostei de repetir para mim mesmo, em momentos de sufoco, o verso "Yet / I trust the sanity of my vessel;"

Mostro a vocês minha tentativa de tradução.

Ao capitão do porto

Quis certificar-me que eu chegaria a você;
embora minha nau estivesse a caminho, embaraçou-se
em certas amarras. Estou sempre a ancorar-me
e então decidindo partir. Em tormentas e
no ocaso, com as bobinas metálicas da maré
cercando meus braços abissais, sou incapaz
de entender as formas de minha vaidade
ou mal estou a sotavento com o leme
à mão e o sol a se por. A você
ofereço meu casco e o cordame esfarrapado
de meu querer. Os canais aterradores onde
o vento me lança contra os lábios barrentos
dos juncos ainda não ficaram para trás. Mesmo
assim, confio na sanidade de minha embarcação;
e se naufragar, tanto poderá ser em resposta
ao raciocínio das vozes eternas,
as ondas que me impediram de chegar a você.

(tradução de Ricardo Domeneck)

Impossível traduzir este poema sem que as águas se agitem dentro de mim. Impossível é também escrever "A você / ofereço meu casco e o cordame esfarrapado / de meu querer" sem fazer dele este você, impossível sussurrar estas palavras sem que eu pense nele; e ainda que ele esteja na mesma cidade, é como se estivesse tão longe. Um dia sem sua voz e a cada toque do telefone a decepção de não ser ele que fala do outro lado. Que o visor dos celulares hoje em dia mostre o número e identidade de quem liga apenas acelera as decepções. Então eu canto com Tim Buckley, porque cada segundo de espera pela sua voz é como se ela dissesse apenas como na canção, "Touch me not, touch me not, / Come back tomorrow"; ah, moço!, moço, my heart / shies from the sorrow. Moço, quem me dera você fosse lusófono, para eu cantar um Vinícius de Moraes ou Chico Buarque ao pé do seu ouvido, com metáforas marítimas, cantarolando de "Metade de mim" que você leve os teus sinais, que a saudade dói como um barco, que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais. Faz só 24 horas que não vejo você, e já o medo, medo, medo, medo do que uma semana, um mês fariam de mim. Esta postagem era para ser toda literária e crítica, toda intelectualóide, mas você entrou nela, como entra em tudo.



Ah, amar um não-lusófono, para quem eu não posso cantar isso:


O que mais eu posso dizer, Moço?
Sem você, só me restaria a catabase.
E aqueles que quisessem falar comigo, só através do Nekuia. Posso ousar escrever aqui uma linha digna de cartão para dia nos namorados?

Moço, amar é ter a quem se agarrar durante o Dilúvio.


§


Canto I
Ezra Pound


And then went down to the ship,
Set keel to breakers, forth on the godly sea, and
We set up mast and sail on that swart ship,
Bore sheep aboard her, and our bodies also
Heavy with weeping, and winds from sternward
Bore us onward with bellying canvas,
Circe's this craft, the trim-coifed goddess.
Then sat we amidships, wind jamming the tiller,
Thus with stretched sail, we went over sea till day's end.
Sun to his slumber, shadows o'er all the ocean,
Came we then to the bounds of deepest water,
To the Kimmerian lands, and peopled cities
Covered with close-webbed mist, unpierced ever
With glitter of sun-rays
Nor with stars stretched, nor looking back from heaven
Swartest night stretched over wreteched men there.
The ocean flowing backward, came we then to the place
Aforesaid by Circe.
Here did they rites, Perimedes and Eurylochus,
And drawing sword from my hip
I dug the ell-square pitkin;
Poured we libations unto each the dead,
First mead and then sweet wine, water mixed with white flour
Then prayed I many a prayer to the sickly death's-heads;
As set in Ithaca, sterile bulls of the best
For sacrifice, heaping the pyre with goods,
A sheep to Tiresias only, black and a bell-sheep.
Dark blood flowed in the fosse,
Souls out of Erebus, cadaverous dead, of brides
Of youths and of the old who had borne much;
Souls stained with recent tears, girls tender,
Men many, mauled with bronze lance heads,
Battle spoil, bearing yet dreory arms,
These many crowded about me; with shouting,
Pallor upon me, cried to my men for more beasts;
Slaughtered the herds, sheep slain of bronze;
Poured ointment, cried to the gods,
To Pluto the strong, and praised Proserpine;
Unsheathed the narrow sword,
I sat to keep off the impetuous impotent dead,
Till I should hear Tiresias.
But first Elpenor came, our friend Elpenor,
Unburied, cast on the wide earth,
Limbs that we left in the house of Circe,
Unwept, unwrapped in the sepulchre, since toils urged other.
Pitiful spirit. And I cried in hurried speech:
"Elpenor, how art thou come to this dark coast?
"Cam'st thou afoot, outstripping seamen?"
And he in heavy speech:
"Ill fate and abundant wine. I slept in Crice's ingle.
"Going down the long ladder unguarded,
"I fell against the buttress,
"Shattered the nape-nerve, the soul sought Avernus.
"But thou, O King, I bid remember me, unwept, unburied,
"Heap up mine arms, be tomb by sea-bord, and inscribed:
"A man of no fortune, and with a name to come.
"And set my oar up, that I swung mid fellows."

And Anticlea came, whom I beat off, and then Tiresias Theban,
Holding his golden wand, knew me, and spoke first:
"A second time? why? man of ill star,
"Facing the sunless dead and this joyless region?
"Stand from the fosse, leave me my bloody bever
"For soothsay."
And I stepped back,
And he strong with the blood, said then: "Odysseus
"Shalt return through spiteful Neptune, over dark seas,
"Lose all companions." Then Anticlea came.
Lie quiet Divus. I mean, that is Andreas Divus,
In officina Wecheli, 1538, out of Homer.
And he sailed, by Sirens and thence outwards and away
And unto Crice.
Venerandam,
In the Cretan's phrase, with the golden crown, Aphrodite,
Cypri munimenta sortita est, mirthful, oricalchi, with golden
Girdle and breat bands, thou with dark eyelids
Bearing the golden bough of Argicidia. So that:


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4 comentários:

m. sagayama disse...

Não conhecia esse poema do O'Hara. Tenho visto que quem se liga em lírica acaba se atirando/ligando à água, ao mar. Sempre me pego repetindo os versos "we are afloat/ on our dreams as on a barge made of ice" de Ashbery (my erotic double).
mas vim aqui pra dizer que por causa da sua insistência, fui ler a Orides e gostei muito!

Ricardo Domeneck disse...

Mario,

este poema me parece realmente atípico, dentro do trabalho do O´Hara, mas é um dos meus favoritos, juntos com "Morning" e alguns dos mais famosos do fim da década de 50 e início de 60.

É, eu também tenho alguns destes mantras, de poemas da Szymborska, do Creeley, do Murilo...

Que bom que você gostou da Orides, ela tem uma recepção contraditória... conheço gente que a respeita muito, e gente que a considera "poeta menor".

Eu amo a mulher.

"a um passo
do pássaro
res
piro"

beijo

R

Paulodaluzmoreira disse...

O'Hara é mesmo desses poetas cheios de poemas atípicos, todos especiais. Legal, o post.

Ricardo Domeneck disse...

Caro Paulo,

Há um certo módulo de composição em O`Hara, nos poemas chamados "I do this I do that", que é inconfundível, mas ele realmente manteve grande liberdade em sua escrita, até liberdade de si mesmo.

grande abraço

Domeneck

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