Quantos poemas e canções, lidos e escutadas por anos, aqueles que pensamos compreender, entender, à luz de uma nova situação parecem entrar de forma tão natural sob a nossa pele, a ponto de acreditarmos que pela primeira vez os compreendemos de verdade? Como se nunca antes os houvéssemos lido, escutado.
Alguns poemas e canções têm voltado à minha mente com um frescor estranhíssimo nos últimos tempos, como se eu agora, com 34 anos, vários pés-na-bunda, inúmeras ascenções de alegria e quedas em alergia, estivesse um tiquinho mais apto a compreendê-los. Um tiquinho só mais apto.
Há épocas em que certas textos, certas fotografias, cenas de filmes, começam a nos seguir na rua, uma companhia estranha, obsessiva. Vou compartilhar com vocês três companhias obsessivas dos últimos tempos, que eu sinto estar começando a compreender melhor, não com qualquer noção de inteligência besta, apenas uma sensação de que eles estão começando a me pertencer de uma maneira que antes não era possível. A primeira é a foto de Nan Goldin que abre esta postagem, uma de suas mais famosas, do livro The Ballad of Sexual Dependency (1986). Outra companhia é um poema famoso do Drummond.
Consolo na Praia
Carlos Drummond de Andrade
Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
O poema foi publicado em A Rosa do Povo, de 1945. À data de sua publicação, Drummond tinha 43 anos. Há novos ou outros sentidos que só compreenderei quando me aproximar desta idade? Ou os amores perdidos até esta data dos meus 34 anos já começam a me mostrar que consolo é este? Há perdas e consolos pela frente. Quantos poemas e canções ainda têm as portas vedadas para minha compreensão porque eu preciso perder mais um ou dois amores, um ou dois amigos, reconhecer uma ou outra impossibilidade?
Que susto hoje ao escutar pela milésima vez uma canção favorita, a "Running up that hill" da (suprema) Kate Bush, e sentir um halo de compreensão maior se abrir sobre as palavras cantadas, como se eu a estivesse escutando pela primeira vez! Aquelas palavras memorizadas ao longo de tantos anos se entregando de maneira nova, aquele início:
It doesn't hurt me
Do you wanna feel how it feels?
Do you wanna know, know that it doesn't hurt me?
Do you wanna hear about the deal I'm making?
You
It's you and me
And if I only could
I'd make a deal with God
And I'd get him to swap our places
I´d be running up that road
Be running up that hill
Be running up that building
If I only could
Às vezes me parece muito triste aquela ideia de Wittgenstein, nossa prisão dentro do eu pelo fato "do mundo ser sempre o meu mundo". Mas Wittgenstein jamais a chamaria de prisão, isso é patetice minha, pois Wittgenstein não acreditava na possibilidade de estar do lado de fora - e a aceitava.
E nesta luz, entre Wittgenstein dizendo que "o mundo é sempre meu mundo", e Kate Bush dizendo "Come on, angel / Come on, darling / Let's exchange the experience", será que há muita diferença? Tenho amigos que vão ficar bravos mais uma vez por eu misturar um filósofo com uma cantora de música pop, mas eu sou mesmo caso perdido neste aspecto.
Não, nós jamais chegamos a convencer Deus a trocar nossos lugares. Em algum momento, talvez, alguém chegue com as próprias pernas a perda ou alegria parecida, e só então uma compreensão mútua?
E então dizemos ao Outro, usando vocativos como angel e darling, dizemos estas palavras patéticas:
You don't wanna hurt me
But see how deep the bullet lies
But see how deep the bullet lies
A bala, como sempre, está funda demais em nosso couro para que o outro veja ou sinta.
"O inferno são os outros"? Não. Eu acho que prefiro pensar que o paraíso sou eu quando estou com os outros... ou com um outro bem específico, com nome e endereço.
Fique aí no Paraíso, você.
Quem sabe eu possa visitá-lo.
Ou, como Frank O´Hara terminou aquele poema,
of light we can never have enough
but how would we find it
unless the darkness urged us on and into it
I am dark
except when now and then it all comes clear
and I can see myself
as others luckily sometimes see me
in a good light
.
.
.
5 comentários:
as notícias correm mas a vida tb e eu esqueci de escrever um email pra vc.
o engraçado é que lendo esse post acho que vc já respondeu meu email antes de lê-lo.
gostaria que felicidade tb fosse transferível por conta bancária.
bjs bjs bjs bjs bjs bjs
e mais alguns bjs.
http://vimeo.com/1976212 - post lembrou esse video de uma instalaçao da miranda july. there's just walking forward, no final. not much else.
Como dizia Nelson Rodrigues, envelheçam meus jovens, envelheçam. Isso volta e meia acontece comigo, Ricardo. E é uma alegria comemorada. Acredito e compartilho o "tu", mesmo que, na maioria das vezes, ficamos na esfera de tornar o outro objeto, experienciando-o. Beijos.
Ricardo, um comentário simples mas sincero: mto bonita sua postagem. Vc está envelhecendo bem. Incrível como o tempo nos recria, não?
Queridos, obrigado pelas palavras. Mesmo. Beijos,
R.
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