domingo, 31 de julho de 2011
Comentários a um poema recente e a resposta a uma crítica malcriada e anônima
Na terça-feira passada, 26 de julho de 2011, publiquei neste espaço um poema recente, intitulado "O solteiro mais cobiçado do mundo", que parte da história de Cesárion, filho de César e de Cleópatra. Nos dias que se seguiram, recebi alguns comentários e conversei sobre o poema com algumas pessoas que respeito.
O poeta paulista Érico Nogueira me escreveu, por exemplo, comentando as inconsistências em minha grafia para os nomes das personagens históricas, aportuguesando uns e não outros. Após conversar com ele sobre algumas possibilidades, decidi que era realmente melhor usar a grafia em português para todos os nomes, e acatei algumas de suas sugestões, como mudar Caesarion para Cesárion, e, o que me agradou particularmente, sua sugestão de usar para Thea Filopator, o "sobrenome" de Cleópatra, a versão Diva Filopátor. Agradeço a ele, aqui, por suas sugestões.
Em outra mensagem, o poeta gaúcho Marcus Fabiano apontou para a possível inconsistência em usar, na linha "César ou meteco", referências a uma personagem histórica latina e a um conceito político da pólis grega. Após pensar a respeito, percebi que ele tinha razão, e que realmente havia espaço para esta interpretação, gerando mesmo uma mistura questionável, especialmente com a linha seguinte – "rei ou plebeu" – que cria uma equiparação historicamente mais plausível. Decidi mudar a primeira linha para "cidadão ou meteco". Agradeço a Marcus Fabiano por apontar esta inconsistência em aberto.
Marcus Fabiano também me perguntou se o poema dialogava ou partia de Kaváfis. Disse a ele que, ao escrevê-lo, eu tinha mais em mente a maneira como o poeta polonês Zbigniew Herbert e o alemão Heiner Müller usavam personagens e material histórico clássico, muitas vezes já trabalhados por outros. É claro que isso é forte em Konstantinos Kaváfis, mas no caso do grego trata-se de sua própria História, o que o leva a um tratamento do material razoavelmente diferente, pois ele pode assumir de forma mais plácida que seus leitores sabem do que ele está falando.
Esta semana, como acontece com certa frequência, recebi um comentário anônimo aqui no blogue. Na maioria dos casos, trata-se apenas de alguém incomodado ou irritado com minha existência e o oxigênio que a pessoa crê que eu desperdiço, tentando me ofender com comentários homofóbicos ou de outras categorias, comentários que eu regiamente ignoro. O último comentário, no entanto, comentava o poema e fazia uma crítica negativa a ele, e, apesar de seu tom malcriado e deselegante, aliado à falta de hombridade de assiná-lo, eu achei que valia a pena responder aqui, em uma postagem, pois a discussão pode ser interessante.
Primeiramente, confesso que jamais vou entender a prática de deixar comentários anônimos em blogues ou páginas alheias. Não entendo alguém que se interesse tanto pelo meu trabalho a ponto de ler meu blogue e ainda por cima fazer críticas, mas sem identificar-se. Em minha opinião, a assinatura é uma questão de hombridade, como disse acima (sim, estou assumindo que o comentarista seja do sexo masculino. Posso estar errado, mas me parece atitude típica de macho-alfa). Além do mais, como em geral trata-se obviamente de outro poeta, seria muito educativo para mim, por exemplo, ler o trabalho da pessoa para saber que parâmetros implícitos segue.
Não importa. Vamos ao comentário. Eis a opinião malcriada de meu leitor anônimo sobre o poema "O solteiro mais cobiçado do mundo":
"Kaváfis reciclado em poema prolixo e cabotino. Teus `reflexos´ históricos são intragáveis. Teu corpo não urge que volte a versar?"
Vejamos, por partes.
§ - Kaváfis
O poeta de Alexandria tratou de Cesárion em dois poemas, "Reis alexandrinos" e "Caesarion" (fáceis de encontrar na Rede), este diretamente dedicado ao jovem rei.
Neste último, após narrar sua leitura de epigramas compostos durante a Dinastia Ptolomaica, Kaváfis relata sua descoberta de uma pequena menção a Cesárion, que o leva a sua usual prática do louvor dos mancebos, sua própria reciclagem do tema do erômenos, sua imaginação do corpo e presença do jovem rei de 17 anos, como ele fez em tantos poemas maravilhosos sobre suas lembranças e encontros furtivos com jovens de Alexandria, mas apontando, neste caso, a uma discussão sobre a sede de poder que leva a assassinatos. Ele encerra com uma frase que Plutarco teria atribuído ao filósofo estóico Arius Didymus (creio que Ário Dídimo em português), supostamente dita a Otaviano para convencê-lo da necessidade do assassinato de Cesárion: "Não é bom haver Césares demais". Por sua vez, a linha seria um jogo de palavras com um verso de Homero.
É um lindo poema, sugiro a sua leitura neste link, em tradução para o inglês. No outro poema, intitulado "Reis alexandrinos", Kaváfis retorna a Cesárion, discutindo o vazio das pompas reais, tomando a passagem em que os filhos de Cleópatra são coroados em Alexandria. Os poemas são puro Kaváfis, sem minhas catulizações gender-sarcastic e chistes fisiológicos. Recomendo muito sua leitura.
§ - Reciclado.
Caso o comentarista veja a abordagem de temas clássicos já tratados como um problema, sinto muito por seus hábitos de leitura. O próprio Kaváfis foi mestre na reciclagem de temas. Escreveu sobre personagens e assuntos que já haviam sido tratados por outros poetas. Parece-me razoavelmente ridículo acreditar que nenhum poeta mais possa escrever sobre Cesárion, ou, por sua vez, sobre outras personagens, como Antínoo, Eleanor de Aquitânia e Ana Bolena (para citar algumas personagens que me fascinam e sobre as quais tenho escrito), ou qualquer outro, porque já se escreveu sobre eles. Quantos poemas foram escritos sobre Cleópatra e César, ou sobre Calígula e Cláudio, por exemplo? Isso, eu creio, não inutiliza poemas como os de Zbigniew Herbert, que reciclou vários temas clássicos para poder driblar a censura do regime comunista de seu país, ou as maravilhosas "reciclagens" de Heiner Müller para temas clássicos. O deles é o que gosto de chamar de "uso saudável e funcional da erudição".
Sinceramente, não sinto sequer a necessidade de acrescentar uma nota ao poema, informando que o tema já foi tratado por Kaváfis. Fica para os interessados em intertextualidade. Meu tratamento é obviamente diferente, e, como apontou um amigo, talvez muito mais próximo de Catulo que de Kaváfis. Pessoalmente, continuo achando que o poema deve MUITO MUITO MUITO mais a Zbigniew Herbert e Heiner Müller (aqui o agradecimento e louvor póstumo a estes meus dois mestres), em níveis mais profundos que o da "temática". Não sei se meu caro leitor anônimo conhece estes poetas, pouco traduzidos para o português.
§ - Prolixo.
Há um problema crítico sério no Brasil, que eu creio ter relação com este incômodo de meu caro leitor malcriado e anônimo. Trata-se da maneira como se confunde o "discursivo" com o "prolixo". É um equívoco sem tamanho, em minha opinião, tomar a discursividade como valor negativo em si, e a antidiscursividade como valor positivo. Nada há na História da Literatura que sustente esta visão. Agora, é bem certo que não posso assumir que nosso comentarista sofra deste defeito crítico. Talvez ele saiba bem a diferença entre o discursivo e o prolixo e veja versos e palavras realmente desnecessárias em meu poema. Talvez ele não esteja entre os que creem que seja um defeito ser capaz ainda de versejar em sentenças completas. Espero que ele não esteja entre os que acreditam que jogar algumas palavras desconexas sobre a página garanta a concisão. Me parecem problemas que ocorrem com quem leva muito ao pé da letra a velha história de que "importa mais o que o poeta deixa de dizer do que aquilo que ele realmente diz". É que eu gosto muito de escrever, sabe?
Deixo a meus leitores, anônimos ou não, julgar se meu poema, conscientemente discursivo, acaba sendo prolixo.
Eu tinha um efeito bastante específico em mente, e procedi de acordo, além do mais, com meu interesse por textos mais tesos que necessariamente concisos.
Vale a pena retornar, por exemplo, ao poema de Kaváfis. O grego o intitula com o nome de Cesárion, deixando claro desde o começo a quem se refere. Ora, Kaváfis era conterrâneo de Cesárion. Escreveu seu poema em grego e em Alexandria, onde ocorre a história. Ele pode simplesmente assumir que seus leitores saibam exatamente de quem e do que ele está falando.
Ao começar a ler meu poema, propositalmente intitulado com ares de revista de fofoca contemporânea (tento imaginar Kaváfis intitulando um poema "O solteiro mais cobiçado do mundo" e sou obrigado a sorrir um pouco), o leitor não sabe se o texto tratará de alguém como Cesárion ou, digamos como exemplo, o jovem modelo Francisco Lachowski, que tem a cara e o corpo que eu gosto de imaginar em Cesárion quando penso nele, ainda que meu poema não tenha tratado Cesárion como erômenos imaginário. Ok, talvez um pouquinho, mas é porque, como disse, sempre o imagino com a cara e o corpo de Francisco Lachowski.
Escrevendo em português e em 2011, a mim interessava compor o poema de tal maneira que ele "instrumentalizasse" qualquer leitor a entendê-lo, já durante a leitura, sem a necessidade da busca exterior de informação. Ninguém precisa saber quem foi Cesárion para ler o poema. Ao contrário, depois de ler o poema, passa a saber quem foi caso não soubesse. A alguns isso parecerá demasiado didático, algo também visto como problemático, mas faz parte do jogo.
§ - Cabotino.
O que talvez tenha parecido cabotino ao meu leitor anônimo e deselegante é que eu retorne a tal tema com implicações quiçá muito menos nobres e universais que as do mestre Kaváfis, pois aponto para nossa atual idolatria de celebridades que também assumem características divinizáveis, começando pelo uso do meu título, "O solteiro mais cobiçado do mundo", que poderia facilmente ser o título de um artigo de revista de fofoca qualquer. Acabo misturando a isso ainda minha discussão de certas questões políticas de gênero, como meu tratamento algo obsessivo e sarcástico da cultura do macho-alfa e seus delírios desejosos de épicos. Talvez meu uso do tema seja mesmo cabotino para algumas sensibilidades, talvez justamente por ter escondido, por contrabando, estas discussões políticas contemporâneas em um tema "nobre". Não sei se nosso ranzinza anônimo chama o poema de cabotino por ver nele uma piada de mau gosto ou exibição arrogante de conhecimento. Eu certamente entendo muito mais de cigarros, café e da anatomia masculina que da História Clássica, talvez devesse ter realmente voltado a Kaváfis e sua nostalgia do erômenos (algo que já fiz várias vezes), mas não será isso que limitará meus temas.
§ - "Teus `reflexos´ históricos são intragáveis."
Gostei deste toque, "reflexos" em vez de "reflexões", muito esperto e divertido o seu sarcasmo. Quem sabe, se meu trabalho não o incomodasse tanto, nós até pudéssemos tomar um uísque um dia, discutindo vivamente nossas visões provavelmente opostas sobre poesia?
Mas, ora, meu querido leitor anônimo, tudo o que posso sugerir, se você considera meus "reflexos" históricos intragáveis, é que você não leia meu trabalho. Este é meu blogue pessoal e eu não sou leitura obrigatória.
§ - "Teu corpo não urge que volte a versar?"
Esta é, na verdade, a única pergunta que você fez, já que você veio ao meio espaço pessoal para pontificar sobre sua opinião acerca do meu poema. Respondo-a:
Não.
Meu corpo não sente a menor urgência de "voltar" (significa que versei no passado?) a versar. Sabe Deus o que você quer dizer com isso, já que eu não sei quem você é e muito provavelmente ignoro o seu trabalho se o conheço.
Nunca houve como nas duas últimas décadas um divórcio tão gigantesco entre os poetas e prosadores brasileiros. É realmente algo inédito, já escrevi sobre isso, mencionando-o por exemplo em um ensaio a sair pela Fundação Casa de Rui Barbosa, cheio de meus "reflexos" históricos intragáveis.
Já deve ter ficado claro que eu não estou interessado em uma visão da poesia como gênero puro. Estou interessado em textos, cobrindo ou não a página de margem a margem, desde que sejam tesos. Não considero antidiscursividade um valor positivo em si, apenas no contexto do texto e dos efeitos que busca, dos parâmetros que segue. Kaváfis, mestre mestre mestre, é discursivo. Muito tênue a linha entre prosa e poesia em poetas como o alexandrino, ou como o polonês Zbigniew Herbert, ou como o alemão Heiner Müller.
Por fim, quero deixar muito claro que estou completamente aberto a críticas e sugestões, como as que Érico Nogueira e Marcus Fabiano fizeram. Nem acho que meu poema seja perfeito ou divino maravilhoso. Acho que é um poeminhazinho bastante decente e apresentável.
Aqui está sua resposta pública, ainda que você não a tenha feito de maneira aberta. Você, ao que me parece, está entre os críticos da poesia contemporânea hoje mais interessados nas reputações poéticas contemporâneas que veramente na poesia contemporânea. Ler crítica de poesia contemporânea hoje no Brasil é como ler apreciações de carreiras, não de obras. Tenho me esforçado para não cair nesta armadilha, e, caso você acompanhe meus "reflexos" históricos intragáveis também na Modo de Usar & Co., a próxima postagem será sobre o trabalho recente do jovem e seu, meu, nosso contemporâneo Ismar Tirelli Neto.
Espero que a resposta o satisfaça. Volte sempre, se o seu gag reflex o permitir. Talvez tenhamos outras coisas em comum, mesmo que, diferentemente de você, não me falte hombridade.
do seu histórico-reflexivo intragável,
Ricardo Domeneck.
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3 comentários:
Rick, esse post me lembrou de uma discussão muito interessante que eu tive com a Talita tomando cerveja na rua dos Pinheiros que concluiu que:
- Feedback é a nova crítica
(porque crítica é um termo que as pessoas acham muito pesado, então é de bom tom vc dizer "vou te dar um feedback do seu trabalho, OK?")
- Eu não faço crítica, eu faço análise
(como se análise não fosse uma crítica, mais uma vez porque crítica é ligado a algo negativo e análise soa mais fofo, quase paternalista no sentido de soar como se uma pessoa que "sabe mais" fosse dar um FEEDBACK a uma pessoa que "sabe menos"... e vendo por esse lado, me parece que crítica é mais saudável que análise hahaha)
Mas o que importa mesmo é que meu novo namorado parece o Marcelo D2.
BJS!
Jorge,
é também que a internet virou o paraíso dos "opinionated", como se diria em inglês. Todo mundo tem sua opinião e é tão fácil dá-la!
Análise já seria ótimo, pois pelo menos obrigaria o dito-cujo a primeiro entender O QUE FOI FEITO e então criticar o que foi feito, não o que não foi feito, muitas vezes simplesmente porque o autor/produtor NÃO o quis fazer.
Mas, disso tudo o que me interessa mais é ver uma foto do teu novo namorado com cara de Marcelo D2!
beijo
R
fico ca marilena chauí quando ela fala da ausência de intelectuais engajados. só restaram m os "especialistas competentes" ("competentes"), que nao falam na verdade nada que preste.
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