Na última postagem, citei Hilda Hilst com os versos: "Essa sou eu / Poeta e mula", de um dos poemas mais febris da década de 90, texto que foi publicado pela primeira vez no final de seu romance Estar Tendo. Ter Sido (1997). Eu havia acabado de chegar a São Paulo, tinha 19 anos. Deparei-me com uma resenha sobre o romance, na qual o jornalista reproduzia os versos: "Palha / Trapos / Uma só vez o musgo das fontes / O indizível casqueando o nada // Essa sou eu. // Poeta e mula". Em meio àquela cabralice exagerada, pedregulhosa e ressecuda da poesia da década de 90, eu, que estava já começando a sofrer de anemia emocional por conta de tanto antilirismo, me sobressaltei muito e pensei: "Evoé, um oásis!" Nos próximos dois anos, li tudo o que a mulher escreveu e passei a seguir seus passos, dizendo: com Murilo Mendes e Hilda Hilst, mestres, até o fim da carreira dos meus dias como poeta. Ô mestre de Juiz de Fora, ô mestra de Jaú! Comecei a passar os livros dela para meus amigos, criamos um pequeno culto em torno da mulher. Nós queríamos um matriarcado, Clarice Lispector de um lado, Hilda Hilst do outro. Um dia decidimos que iríamos a Campinas, encontrar a Casa do Sol e conhecê-la. Creio que já contei esta história aqui, mas se você está nesta página é porque você é meu amigo, mesmo que desconhecido, e como meu amigo você deve saber que eu sou meio compulsivo, obsessivo e repetitivo (perdoe). Protelamos por várias semanas. Quando estávamos preparados para a viagem, vem a notícia pela imprensa: Hilda Hilst morta, a 4 de fevereiro de 2004. Naquela tarde, desci a Avenida Brigadeiro Luís Antônio (em São Paulo) a pé, a caminho do Parque do Ibirapuera. Na cabeça, ia compondo o seguinte poema, que mais tarde se tornaria a primeira das "Seis canções óbvias", publicadas no meu livro de estreia, Carta aos anfíbios (2005):
das Seis canções óbvias
1.
Sair da cama, disse,
.....foi simplesmente
.....uma idéia incrível
.....e deliberada
De invernos frutíferos
.....construíram-se
.....muitos infernos na
.....primavera
A cama é um inferno pessoal
.....e intransferível
E a pele vestida à noite
.....desprega-se para acompanhar
.....outra calçada pela manhã
A transferência de corpo pratico-a
.....com diligência
É tudo tão simples, dizem
Hilda Hilst havia medo da morte
.....e morreu
.....assim como o MASP
.....é ao mesmo tempo
.....museu e mirante
Ergue-se o deliberado sobre
.....simples patas
(Carta aos anfíbios, Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2005)
Houve duas mortes de poetas brasileiros que me deixaram realmente de luto: a de Orides Fontela, em 1998, e a de Hilda Hilst, em 2004. Muitas outras me entristeceram muitíssimo, como a de João Cabral, a de Wally Salomão, a de Haroldo de Campos. Mas as mortes de Orides Fontela e Hilda Hilst foram como perdas pessoais, difíceis de explicar, pois eu jamais as conheci, infelizmente.
Deixo vocês abaixo com o poema completo de Hilda Hilst, "Mula de Deus". Desconheço poesia desta natureza mística na poesia principal brasileira, em geral dominada pelos machos agnósticos. Tal misticismo carnoso. É como a cena final da porca em A Obscena Senhora D (1982). Economia de meios será melhor como ato de ascese? Há o momento para o seco e para a pedra, e também o momento para o úmido, para o que incha? Tal força, que é ao mesmo tempo anti-inflamatória e inflamatória, eu creio encontrar em Clarice Lispector e Hilda Hilst, em Lúcio Cardoso e Arthur Bispo do Rosário. Em Murilo Mendes e Jorge de Lima. Na ascese violenta de José Leonilson, como no trabalho que usei para ilustrar esta postagem. A violência da ascese, da secura verdadeira, aquela que João Cabral de Melo Neto deu a conhecer em "Uma Faca Só Lâmina" (1955) e eu por vezes tenho a impressão que poucos seguiram, talvez por preferirem ver a secura como técnica para um estilo, quando ela era tão, tão est-É-tica (perdoe, mais uma vez, minhas obsessões). A ascese de uma pobreza, como a que Carlos Drummond de Andrade nomeava "Nudez". Mesmo os machos agnósticos sabiam que o melhor é "na secura nossa amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita." Orides Fontela a escrever:
...........A um passo
...........do pássaro
...........res
...........piro
Acabei de postar este texto com uma ilustração de José Leonilson e então percebo como é apropriado: "34 com cicatrizes". Amanhã completo 34 anos. Hoje é meu último dia na idade da crucificação. E este blogue só existe, às vezes eu penso, porque eu vivo, usando as palavras de Hilda Hilst, na busca de "ornejos de outras mulas (para) se juntarem aos meus." E então, quem sabe, "Escoiceando os ares, espumando de gozo / Assustando mercado e mercadores", cada um de nós possa dizer: "Alegrou-se de mim o coração".
Mula de Deus
Hilda Hilst
I
Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Alta, dourada, me pensei.
Não esta pardacim, o pelo fosco
Pois há de rir-se de mim O PRECIOSO.
Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Lavei com a língua os cascos
E as feridas. Sanguinolenta e viva
Esta do dorso
A cada dia se abre carmesim.
Se me vires, SENHOR, perdoa ainda.
É raro, em sendo mula, ter a chaga
E ao mesmo tempo
Aparência de limpa partitura
E perfume e frescor de terra arada.
II
Há nojosos olhares sobre mim.
Um rei que passa
E cidadãos do reino, príncipes do efêmero.
Agora é só de dor o flanco trêmulo.
Há nojosos olhares. Rústicos senhores.
Açoites, fardos, vozes, alvoroço.
E há em mim um sentir deleitoso
Um tempo onde fui ave, um outro
Onde fui tenra e haste.
Há alguém que foi luz e escureceu.
E dementado foi humano e cálido.
Há alguém que foi pai. E era meu.
III
Escrituras de pena (diria mais, de pelos)
De infinita tristura, encerrada em si mesma
Quem há de ouvir umas canções de mula?
Até das pedras lhes ouço a desventura.
Até dos porcos lhes ouço o cantochão.
E por que não de ti, poeta-mula?
E ornejos de outras mulas se juntaram aos meus.
Escoiceando os ares, espumando de gozo
Assustando mercado e mercadores
Alegrou-se de mim o coração.
IV
Um dia fui o asno de Apuléius.
Depois fui Lucius, Lucas, fui Roxana.
Fui mãe e meretriz e na Betânia
Toquei o intocado e vi Jeshua.
(Ele tocou-me o ombro aquele Jeshua pálido).
Um tempo fui ninguém: sussurro, hálito.
Alguém passou, diziam? Ninguém, ninguém.
Agora sou escombros de um alguém.
Só caminhada e estio. Carrego fardos
Aves, patos, esses que vão morrer.
Iguais a mim também.
V
Ditoso amor de mula, Te ouvi murmurando
Ó Amoroso! Ditoso amor de mim!
Poder amar a Ti com este corpo nojoso
Este de mim, pulsante de outras vidas
Mas tão triste e batido, tão crespo
De espessura e de feridas.
Ditoso amor de mim! Tão pressuroso
De amar! (E de deitar-se ao pé
De tuas alturas). Corpo acanhado de mula
Este de mim, mas tão festivo e doce
Neste Agora
Porque banhado de ti, ó FORMOSURA.
VI
Tu que me vês
Guarda de mim o olhar.
Guarda-me o flanco.
Há de custar tão pouco
Guardar o nada
E seus resíduos ocos.
Orelhas, ventas
O passo apressado sob o jugo
Casco, subidas
Isso é tudo de mim
Mas é tão pouco...
Tu que me vês
Guarda de mim, apenas
Minha demasiada coitadez.
VII
Que eu morra junto ao rio.
O caudaloso frescor das águas claras
Sobre o pelo e as chagas.
Que eu morra olhando os céus:
Mula que sou, esse impossível
Posso pedir a Deus. E entendendo nada
Como os homens da Terra
Como as mulas de Deus.
VIII
Palha
Trapos
Uma só vez o musgo das fontes
O indizível casqueando o nada
Essa sou eu.
Poeta e mula
(Aunque pueda parecer
Que del poeta es locura).
(Hilda Hilst, Estar sendo. Ter sido. São Paulo: Nankin, 1997)
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2 comentários:
"Kummer, sei lahm! Sorge, sei blind!
Es lebe das Geburtstagskind!
(Theodor Fontane)
Naja, fleissig habe ich bis 00.00 Uhr gewartet, um dem Geburtstagskind zu gratulieren ;-)), also, bin gar keine so üble Leserin, creo ;-)!
Muchas felicidades!!! Y que sean muchos, muchísisimos más.
Ich würde gerne wissen, was genau du mit est-É-tica meinst. Mehrmals habe ich es hier gelesen, aber klar ist es mir nie richtig geworden.
Und über "Nudez": ich weiss nicht, aber am meisten schätze ich deine Texte, die eher sehr konzentriert und geballt sind. Ich habe schon mal hier geschrieben, dass das Lakonische dir gut steht.
De nuevo, felicidades...;-)
ric, obrigada por nos educar.
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