quinta-feira, 8 de setembro de 2011

"Carta a Antínoo", texto recente e inédito.

Carta a Antínoo

Que me importam o império as vilas
as efígies nas moedas se o teu cheiro
ocupa ainda cada canto angular
da arquitetura
mas teu pescoço teus pés teu tórax
já não os habitam
e as águas do Nilo não permitem
que este teu cheiro
agora se evada se exale e me excite ou exalte
uns dizem suspeitar que eu ordenei tua morte
outros que tua influência se tornara indesejável
nunca houve lugar para Eros
entre as intrigas de corte
eu já não me lembro tua morte talvez
a tenha ordenado quiçá tenha sido
castigado por meus inimigos
os mais cruéis sugerem que o ato
fora uma fuga tua dos meus cafunés
das minhas mãos geriátricas
não sei não sei tua lembrança
ocupa o espaço de todo o resto
que eu poderia agora memorizar
ordens execuções missões diplomáticas
a fundação de cidades já não me alegra
se tu já não serás um dos cidadãos
as revoltas de bárbaros tão-só
me entediam
se tu não me acompanhas nas campanhas

divinizar-te é consequência lógica
doravante estarás no panteão
entre aqueles que agora
por um motivo a mais invejo

se teu exercício de natação sem volta
foi mesmo sacrifício ou autoimolação
eu me pergunto que deus te merecia
mais do que eu
dizem as boas bocas pelas ruas de Roma
que eu chorei por ti como uma mulher
como se eles pudessem distinguir o gênero
das águas salinizadas
Pancrates de Alexandria comparara
uma flor-de-lótus a ti e não o contrário
e com isso ganhou meus favores
tu eras o parâmetro
de todos os sistemas da simetria

Antínoo ainda que eu mandasse a Bitínia
ser varrida vasculhada
jamais outro com teu pescoço
teus pés teu tórax
tu eras o príncipe das belugas
Antínoo tu foste meu antinão



Ricardo Domeneck, Berlim - agosto de 2011.

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Antínoo (112 - 130) foi o favorito do imperador romano Adriano. Natural da Bitínia (norte da Ásia Menor, hoje na Turquia), é provável que Adriano o tenha conhecido durante uma visita à Bitínia e que o tenha levado consigo. Antínoo era membro do círculo mais próximo do imperador, que era 34 anos mais velho que o rapaz. Em outubro do ano 130, durante uma visita ao Egito, Antínoo morreu afogado no Nilo, mas as circunstâncias em que o evento ocorreu são pouco claras. O imperador mais tarde ordenou a divinização do jovem.

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5 comentários:

Marcio Junqueira disse...

Ricardo, gostei um bocado desses dois novos poemas. Das "aritméticas dolorosas" inclusive eu já fiz uso, tentando explicar meu comportamento, rs. Mas esse poema de hoje sobre o Antínoo, eu gostei ainda mais. Sou apaixonado pelo Antínoo desde que li as "Memorias de Adriano". Tem um poema bem bonito do Piva sobre o Adriano e o Antínoo, se não me engano está em "Coxas".

Ivan Fornerón disse...

É lindo. De verdade.

Saludos

Ricardo Domeneck disse...

Obrigado, Márcio.

Sim, o poema do Piva sobre Adriano e Antínoo está no "Coxas". É um daqueles poemas do Piva bem Piva mesmo, obviamente ele se concentra mais na potência encantatória do Antínoo, o jovem. É muito bonito o poema.

Quanto a mim, o que me obceca mais é a dor da perda de Adriano, o velho.

Para os que não conhecem o poema de Roberto Piva, aqui vai:


"Antínoo & Adriano"

Esta é a zona batida pelos afogados
Esta é a velocidade máxima de quem submerge
aqui as romãs romanas não crescerão mais
& duas águias de névoa orvalhando sandálias
adolescentes na grama de primavera escrevem
a palavra remenber
o doce Antínoo com seu arco carregando
corações maduros na aljava da fenda-essência
da história
os semáforos do tempo acendem seu sinal
verde por cima de sua
longa cabeleira
este doce garoto
patiu o coração do imperador
o Império adorando um deus adolescente afogado no nilo
sem esperar a Manhã egípcia chegar
Adriano chorou o resto de sua
vida na villa ao sul de Roma
as paredes rachavam pelas tardes
deixando entrar as lembranças
houve um tempo nas montanhas da
Bitínia quando as caçadas se prolongavam
até a hora do amor
o vinho de Falerno aderindo aos estômagos
enquanto os olhares se
cruzavam sobre o javali assado e rodeado
de frutas
este amor contruiu seu império na
memória & as escamas de
meu cérebro caem ao contato de seu dedo
os poetas latinos ouviram provaram
entenderam este tesouro afundado
nas tripas do tempo
resta o vento de verão nos caminhos
onde eles andaram

Roberto Piva, in "Coxas"(1979)

Ricardo Domeneck disse...

Obrigado, Ivan.

abraço

RD

Paulo Brás disse...

muito obrigado

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