sábado, 3 de dezembro de 2011

Pequena nota sobre uma tarde de quinta-feira em Antuérpia, com a minha descoberta do trabalho de Gerard Reve (1923 - 2006)

Gerard Reve (1923 - 2006)



A leitura que faríamos em Antuérpia na quinta-feira acabou sendo cancelada por alguns problemas da organização. Uma pena. No entanto, como um amigo meu alemão que vive em Amsterdã comprara já passagem de trem para vir a Antuérpia ver-me, decidi seguir de Bruxelas a Antuérpia mesmo assim e passar a tarde com ele. Meu querido Emanuel John, que deixou a Alemanha há mais de um ano para seguir seus estudos de filosofia na capital holandesa. Emanuel, que é filho de um teólogo alemão, é um oásis de diálogo para mim, com quem posso conversar sobre Simone Weil, Sören Kierkegaard, Miguel de Unamuno, sobre o misticismo em Ludwig Wittgenstein, sem que suas sobrancelhas ergam-se, como na maioria dos meus outros amigos alemães, em susto agnóstico horrorizado. Caía uma garoa fina em Antuérpia, caminhamos pelas ruas, conversando, parando em cafés, trocando leituras.

Foi nesta tarde que ele me falou de um escritor holandês que ele andava lendo após descobri-lo em Amsterdã, e me disse que acreditava que eu gostaria muito do senhor Gerard Reve (1923 - 2006), romancista e poeta. Tudo o que ele me disse sobre o escritor realmente me interessou muito. Ele tinha consigo uma cópia do livro Nader tot U (1966), algo como "Mais perto de ti", um romance epistolar que termina com uma série de poemas intitulada "Geestelijke Liederen", ou seja, canções espirituais.

Com meu alemão, que me permite arranhar a superfície do holandês, e a leitura do próprio Emanuel, sentamo-nos ao fim da tarde em um dos mil cafés que visitamos e nos lançamos a tentar traduzir algumas das "Geestelijke Liederen/Canções espirituais". Vocês verão de cara por que me apaixonei desde já pelo senhor Gerard Reve. Além disso, tudo o que pesquisei na Rede nestes dias aponta para um autor de misticismo e religiosidade extremamente carnais, que me lembram minha mestra Hilda Hilst, aquela que também misturava todos os gêneros literários no mesmo livro, assim como parecem ligá-lo ao grande Georges Bataille. Já estou procurando traduções para o alemão ou inglês para poder descobrir o universo deste que (sinto desde já) provavelmente entrará para o meu rol de obsessões, lá onde já estão Murilo Mendes, Hilda Hilst, Ludwig Wittgenstein, e outros. Abaixo, minhas traduções para algumas das "Canções espirituais" de Gerard Reve, com a assistência de Emanuel John e correções de Arnaud de Schaetzen.


POEMAS DE GERARD REVE

das Geestelijke Liederen / Canções espirituais,
incluídas ao final do romance Nader tot U (1966)


Canção da bebida

Agora é a hora de deixar de beber.
Parar de uma vez, é preciso.
Foi com certeza o bastante.
Consola-me então, ó Espírito,
nesta noite de 20 para 21 de julho de 1965,
em desespero profundo, e cercado de trevas.

:

Drinklied

Nu moet ik van de drank af.
Het moet maar eens uit zjin.
Het is wel genoeg geweest.
Troost mij toch, o Geest,
in de nacht van 20 op 21 juli 1965,
in diepe ontzetting, en omringd door Duisternis.



§

Poema para o Doutor Trimbos

"Vinho barato, masturbação e cinema,"
escreve Céline.
O vinho acabou, não há cinemas aqui.
A existência torna-se tão monocórdica.

:

Gedicht voor Dokter Trimbos

"Goedkope wijn, masturbatie, bioscoop,"
schrijft Céline.
De wijn is op, en bioscopen zijn hier niet.
Het bestaan wordt wel eenzijdig.

§

Confissão

Antes que eu siga para a noite que brilha eterna sem luz,
quero falar uma vez mais, e dizer isto:
Que eu nada mais busquei além
de Ti, de Ti, de Ti só.

(Nota: "U" é formal, e pode indicar que Reve esteja referindo-se a Deus, apontou-me alguém muito prestativo, sugerindo a opção "... além / do Senhor, do Senhor, do Senhor só." Minha ideia era de que não estava absolutamente claro sobre quem Reve ali falava. Talvez a maiúscula para "Ti" aproxime-se mais desta possibilidade, mantendo a ambiguidade. Manterei o "Ti", por ora, mas com maiúscula.

:

Bekentenis

Voordat ik in de Nacht ga die voor eeuwig lichtloos gloeit,
wil ik nog eenmaal spreken, en dit zeggen:
Dat ik nooit anders heb gezocht
dan U, dan U, dan U alleen.


§

Paraíso

Eu era um urso muito grande que era muito amável.
Deus era um burro que me tinha em alta conta.
E todo mundo era muito contente.

:

Paradijs

Ik was een heel erg grote beer die toch heel lief was.
God was een Ezel en hield veel van mij.
En iedereen was erg gelukkig.



§

Para o Anjo

Se me guiaste até o fundo do poço,
Volta, peço-te, e fica com O Moço.

:

Aan de Engel

Als gij mij tot het eind toe hebt geleid,
Keer dan terug, en blijf bij Teigetje.



(Nota do tradutor: "Teigetje" era a forma com que Gerard Reve se referia a seu namorado, o estilista holandês Willem Bruno van Albada. Tomei minha liberdade transcontextualizadora de traduzir "Teigetje" por "O Moço").



Cenas de um documentário sobre Gerard Reve

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2 comentários:

cadu disse...

obrigado por partilhar esta valiosa descoberta ! ;)

Bruno de Abreu disse...

caramba.

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