"Forse un mattino andando in un'aria di vetro
Eugenio Montale
Moço, me ouça. Houve
aquele italiano que quis
virar-se e de repente ver
surpreso o nada às costas,
eu porém desde que você
fez-se fumaça vejo
constante o nada
diante do meu nariz
e só agora, não repentino,
mas gradual e lento volto
a notar a faca no chão e não
no pão, e o camundongo,
o gato e o cão pelas sarjetas,
e diferencio entre a margarina
e a manteiga, e vejo a diferença
antes ignorada entre a flor
viva no vaso ou seca, e sinto
ainda que insípida o flúor
n'água, e o copo já não tomba
e quebra, e olho à esquerda
e à direita ao cruzar as ruas,
e os meus ouvidos
registram as buzinas,
as conversas dos amigos,
e o prédio adiante
tem sua cor e difere
do prédio vizinho
em cor (e arquitetura!),
e este e aquele menino
percebo com susto
são na verdade indivíduos
também distintos
quando antes eram pedaços
de carne falante, falante,
mas agora, perplexo, até
os ouço, os escuto, os entendo,
memorizo seus nomes,
e árvores, casas e montes
voltam a compor a paisagem
e o ar de vidro da primavera
chega, mesmo depois
que houve você,
Moço. Me ouve?
§
Berlim, 19 de fevereiro de 2015.
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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015
M A U D - "Broken March" EP
Minha amiga irlandesa M A U D, baseada em Berlim, acaba de jogar na rede seu aguardado primeiro EP, intitulado Broken March. Ouçam!
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maud,
música para os meus ouvidos
sábado, 7 de fevereiro de 2015
Cinco lusófonos jovens
William Zeytounlian
William Zeytounlian (Brasil, 1988)
[tudo está às voltas]
tudo está às voltas
no lastro de teu gesto
tudo se repete
num fazer que
descortina:
compre
uma flor
no mercado
e sê Monet
jardinando em
Giverny –
refaça
no entulho
de uma casa
o dia que os
mesopotâmios
recensearam
seus deuses
mortos
não basta ao ato
bastar-se a si:
todo agir interpõe
teu agora e teu antes
voltei-me a mim
e parti mais além
fui-me aqui
e assim por diante
– toda tessitura
é a vela na
gávea de Cabral
e o trapo no
torso de
Zumbi –
sê olhar do rei cruel e indigesto
sê o olho que temeu a guilhotina
tudo se repete
num fazer que
descortina
tudo está às voltas
no lastro de teu gesto
§
Golgona Anghel (Romênia/Portugal, 1979)
COMODISTA HESITANTE,
protegido das cabeleireiras
e cliente frequente dos feriados nacionais,
acredita nos encontros fortuitos
assim como um relógio estragado
acredita aproximar-se de uma hora astral.
Estes hábitos podem até ser tolerados
Em contos naturalistas
E reality showers.
Nós, aqui, little stranger,
Degolamos pardais e fadas de porcelana.
Cobramos interesses à alegria
E vendemos suites com piscina na lua.
A batalha é nossa,
Já alugámos as trincheiras,
Mas custa tanto tirar os pijamas.
§
João Bosco da Silva (Portugal, 1985)
Ronco II
Um gajo esfarrapa-se todo por estes gajos e nada, esta gente toda,
Que vive e pensa e sonha e teme e deseja e fode, engole, fodia mais
Se lhe baixassem as calças por serem todos tão especiais, mas nada,
Um gajo pode ser grande, mesmo muito grande, mas não existe
Enquanto não entrar em alguém, precisámos de olhos como do corpo,
Com o tempo fala-se com árvores, pedras, deus até, a água
Engole-se , mas antes agradecemos-lhe a frescura, é isto, mas um gajo
Esfarrapa-se todo, arma-se em mutante dos nervos, nem um pássaro
Se levante, abre-se a janela, um frio terrível, nem dá vontade de grandes
Gritos, abre-se mais uma garrafa e grita-se ao contrário, engole-se pronto,
Não vale a pena, são todos umas putas armadas em santas,
Uns miseráveis gordos de fome e solidão, querem é beiça
E prepúcio retraído, nem é papel, é mesmo fome de um sovaco azedo
Que os abrace, anda um gajo a esfarrapar-se por isto,
Há fomes piores, o musgo seca, o menino jesus do presépio
Não tem mãos, os olhos parecem que enrugaram e o menino
Que não morreu, parece apodrecer no colo que rejeita
Porque agora é homem, anda um gajo neste negócio de pérolas,
Para os porcos dormirem sossegados nos palácios que os burros admiram.
§
Ederval Fernandes (Brasil, 1985)
Como quando
Como os dedos
que rasgaram
o papel do
presente.
Como o ausente
dos vários
segredos
que não
revelaram.
Como o café
que repousa
na mesa
e será bebido.
Como o livro
lido
duas, três
vezes até
ser amada
a sua beleza.
Como quando
entrei
em você
pela
primeira
vez e entendi.
Como, por uma
besteira, não sei,
minha vó chora
e depois ri.
Como os dias
em que Vivo
e não quando
estou morto
e respirando
feito verme.
Como a tua mão
procurou ver-me
no escuro
de mim e do quarto:
como quando um
coração
faz um Uivo.
Como quando
Como os dedos
que rasgaram
o papel do
presente.
Como o ausente
dos vários
segredos
que não
revelaram.
Como o café
que repousa
na mesa
e será bebido.
Como o livro
lido
duas, três
vezes até
ser amada
a sua beleza.
Como quando
entrei
em você
pela
primeira
vez e entendi.
Como, por uma
besteira, não sei,
minha vó chora
e depois ri.
Como os dias
em que Vivo
e não quando
estou morto
e respirando
feito verme.
Como a tua mão
procurou ver-me
no escuro
de mim e do quarto:
como quando um
coração
faz um Uivo.
§
Raquel Nobre Guerra (Portugal, 1979)
Se sorrio aos mortos e enterro os vivos
como um objecto escuro por que
rodaram mãos e jeitos de luz? Sim.
Vivo como se não estivesse aqui
roupa leve como acontece na vida.
E vou da primeira à última batida
na respiração de um pulmão vivido.
Lê assim.
Podia arder a uma pouca distância de ti
nessa praceta que é um poema teu
— e as coisas voltariam a mim, meras,
como o ser transportada pelos dias —
mas cairei por aqui.
Meu amor.
Porta no trinco e nada nas mãos.
Há muito que é tudo o que resta.
Podia arder a uma pouca distância de ti
nessa praceta que é um poema teu
— e as coisas voltariam a mim, meras,
como o ser transportada pelos dias —
mas cairei por aqui.
Meu amor.
Porta no trinco e nada nas mãos.
Há muito que é tudo o que resta.
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Fragmento encontrado num velho caderno de rascunhos
"Quisera fôssemos difíceis
de separar, feito
um punhado de cinzas
mesclado a mancheia
de pó. Ainda
que fáceis de coar"
(fragmento encontrado hoje num velho caderno de rascunhos, a ver se dá pro gasto.)
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de separar, feito
um punhado de cinzas
mesclado a mancheia
de pó. Ainda
que fáceis de coar"
(fragmento encontrado hoje num velho caderno de rascunhos, a ver se dá pro gasto.)
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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015
Lea Porcelain - "Similar Familiar"
Ouçam a estreia do novo duo alemão LEA PORCELAIN, formado por Markus Nikolaus (voz / guitarra) e Julien Bracht (bateria / sintetizadores).
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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015
Tradução de William Zeytounlian para poema vocal de Efrim Menuck & Godspeed You! Black Emperor
Efrim Menuck
Efrim Menuck é um poeta-músico canadense, nascido em Montreal, a 21 de novembro de 1970. É conhecido como membro fundador dos coletivos Godspeed You! Black Emperor e Thee Silver Mt. Zion Memorial Orchestra. O poema vocal abaixo, "The Dead Flag Blues", vem do álbum F♯ A♯ ∞ (1997), do Godspeed You! Black Emperor, e o texto é um monólogo que faz parte do roteiro de Menuck para seu Incomplete Movie About Jail, filme no qual vem trabalhando há alguns anos. A mim me parece um dos poems vocais mais fortes da década de 90, com o qual aprendi muito. Sua visão distópica de nossa sociedade seria profética se não demonstrasse já as mazelas do momento em que surgiu. Sempre que ouço os versos iniciais, penso no poema de William Carlos Williams intitulado "To Elsie" (também conhecido como "The pure products of America"), especialmente os últimos versos:
the stifling heat of September
somehow
it seems to destroy us
It is only in isolate flecks that
something
is given off
No one
to witness
and adjust, no one to drive the car
the stifling heat of September
somehow
it seems to destroy us
It is only in isolate flecks that
something
is given off
No one
to witness
and adjust, no one to drive the car
Sim, "ninguém / que testemunhe / e ajuste, ninguém que guie o carro", como no poema de Menuck, "O carro está em chamas e não há condutor ao volante", transcrito abaixo com a tradução de William Zeytounlian para o português.
POEMA DE EFRIM MENUCK
Blues das bandeiras mortas
I.
O carro está em chamas e não há condutor ao volante
E os esgotos se enlameiam de um milhar de suicidas sós
E um vento tenebroso sopra
O governo é corrupto
E nós doidos de drogas
Com o rádio ligado e a cortina levantada
Somos compelidos ao ventre dessa maquina atroz
e a máquina sangra fatalmente
o sol se pôs
os outdoors olham de esguelha
e as bandeiras estão todas mortas no cimo de seus mastros
II.
aconteceu assim:
os prédios caíram um sobre os outros
a mães agarraram os bebês
entre os escombros
puxando-os pelo cabelo
o horizonte estava lindo em chamas
o metal retorcido se alongando ao céu
tudo aquarelado em uma fina névoa laranja
eu disse, “Me beija, você é linda –
esses são mesmo os últimos dias”
você segurou a minha mão
e embrenhamos ali
como em um devaneio
ou numa febre
III.
acordamos numa manhã
e nos sentimos afundar um pouco mais
certamente é o vale da morte
eu abro a carteira
e está cheia de sangue
(tradução de William Zeytounlian)
The Dead Flag Blues
The car is on fire, and there's no driver at the wheel
And the sewers are all muddied with a thousand lonely suicides
And a dark wind blows
The government is corrupt
And we're on so many drugs
With the radio on and the curtains drawn
We're trapped in the belly of this horrible machine
And the machine is bleeding to death
The sun has fallen down
And the billboards are all leering
And the flags are all dead at the top of their poles
It went like this:
The buildings tumbled in on themselves
Mothers clutching babies
Picked through the rubble
And pulled out their hair
The skyline was beautiful on fire
All twisted metal stretching upwards
Everything washed in a thin orange haze
I said, "Kiss me, you're beautiful -
These are truly the last days"
You grabbed my hand
And we fell into it
Like a daydream
Or a fever
We woke up one morning
And fell a little further down
For sure it is the valley of death
I open up my wallet
And it's full of blood
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