Neste sábado, 23 de junho de 2012, é lançado em Lisboa o novo livro de Miguel Martins (n. 1969), intitulado fôlego sem folga (Lisboa: Língua Morta, 2012), com capa de Inês Dias. São apenas 150 exemplares. O lançamento começa por volta das 18:30, na galeria Câmara Lenta (Rua da Quintinha, 31), com apresentação de António Caeiro (Universidade Nova).
Descobri sua escrita em Lisboa, ao estar coincidentemente na cidade quando o poeta lançou Lérias (Lisboa: Averno, 2011). Impressionado com o livro e com sua leitura no lançamento, preparei com o auxílio de Changuito, da Livraria Poesia Incompleta, uma postagem com poemas de Martins para a Modo de Usar & Co., extraídos de vários livros. Dentre os poetas em atividade nesta nossa língua, obviamente aqueles a que tive acesso, considero-o um dos melhores. Ou, para evitar ferir sensibilidades, um dos que mais respeito.
Publico abaixo um poema que Martins postou recentemente em seu blogue (que ora ameaça encerrar - O Único Deus Vivo), e termino a postagem com a reprodução dos textos que publicamos na Modo de Usar & Co. a 11 de outubro de 2011.
A vida tarda
enquanto esta demonstração democrática do Demo
se demora entre ademanes e esgares,
como se tudo não passasse de uma farsa
velha e medíocre,
levada à cena, em sessões contínuas,
desde que uma salamandra se fez gente,
gente escondida
com o rabo de fora.
Resta-nos correr no sentido inverso
aos ponteiros do relógio e procurar,
inglórios, o pântano primordial
e, nele, nossos recantos de calor estagnado,
passar a borracha da noite sobre o carvão do vento,
correndo o risco de tudo esborratar,
e ter esperança ou, pelo menos, fé
nas propriedades curativas das folhas brancas.
Imaginem comigo:
o branco mais profundo
sugando-nos para dentro de si
como o olho de um furacão,
olho terrível e encantador
de répteis.
Antes de mergulhar, permitam-me apenas
um cálice de licor de ervas amargas
e o clangor lânguido de um oboé tibetano.
E depois - só depois - o abismo imenso,
antediluviano,
da nossa morte inteira e sem mentiras,
sem conta-gotas a dosearem tudo,
até a beira-mar
e até o medo.
Miguel Martins
Miguel Martins é um poeta contemporâneo português, nascido em 1969. Viveu quase sempre em Lisboa, com a exceção de uma temporada em Maputo, Moçambique. O poeta é formado em arqueologia. Sua primeira publicação é de 1995, uma pequena plaquete intitulada Seis poemas para uma morte. A ela seguiram-se os volumes Cirrose (editado pela Fenda), Atol (Clube dos Poetas Vivos), o livro de ensaios Jazz e Literatura (Campo das Letras), O taberneiro (Poesia Incompleta), Proibida a entrada a animais (excepto cães-guia) (Língua Morta), e seu mais recente, lançado este ano e intitulado Lérias (Lisboa: Averno, 2011). Prepara uma tradução para o português do livro Call It Sleep (1934), do romancista e contista norte-americano Henry Roth (1906 – 1995), que será lançado com o título Uma espécie de sono. O poeta vive e trabalha em Lisboa.
POEMAS
Uma caixa de cimento fresco. Deita-o
lá dentro. Mete-te na mota, arranca, não
penses mais nisso. A sul, há mulheres
cujo futuro é um avião que não deixa
traços no céu. A norte, se preferires,
... há-as engarrafadas, em decilitragens
as mais diversas. Com os homens
é a mesma coisa, dois dedos de conversa
e uns quantos cubos de gelo. Meia
hora chega para ir repondo o stock
de episódios com que fingir que estamos
vivos. Isso deve bastar-te, excepto
se te achares mais do que os outros
e Deus te livre de uma coisa dessas.
É isso: aprende a metafísica das
t-shirts brancas, das curvas apertadas,
da velocidade calma. O resto é
conversa de poetas, filósofos, historia-
dores, que fumam mais do que vêem
e lêem mais do que assobiam ao sair
à rua. O resto é uma perda de tempo
e não eras tu o tal que tanto nos
maçava com a iminência da
morte, com a falência da Sociedade
por quotas, com a genealogia
dos suínos? Aproveita agora esta
oportunidade de não ser nada
contigo; juro-te que ninguém
te vai levar a mal; envia, apenas,
um postal de Tânger e um contacto,
para o caso de o Emanuel ou a
Angelina quererem ir de férias e
precisarem de um sítio onde ficar.
Não é pedir muito em troca da
tua liberdade. Vá! Uma caixa de
cimento fresco. Deita-o lá dentro.
Sabes do que estou a falar. Ver-
melho escuro. Isso. O coração.
(publicado originalmente no jornal O Público, a 8 de outubro de 2011)
§
de O Taberneiro
Eu sou O TABERNEIRO-da-cintura-para-baixo e cara de cavalo relinchando aos pagodes, mijando nas traseiras de Notre Dame de Damn You, trombando uma defunta num sonho de luz branca. Vinde dizer-me agora que agora é que começa essa novíssima Volta a Portugal de que saireis vencedores-de-vozes-cristalinas-e-piscinas-nos-bolsos-resguardados...– do alto destas pirâmides, responde Napoleão, uma chuva de das Caldas vos contempla; e avoengos, trajando neve e medos, não hesitarão, sequer, no arremesso. E eis que entra um côro de gospel fumegante, ressaca bacanal já pronta para outra, e me embala menino-dos-ditos-saraivada-«tu sabes lá o que é que tás páí a dzer». «É verdade, não sei, eu sou O TABERNEIRO, li Stendhal, Sade, Camilo, Hugo e Zweig sentado numa pipa de mecha ainda acesa, pelo qu'é natural a pouca retenção; desculpem se me cago – almocei a correr e já bebi três litros de sobras clientelares.»
§
Ignis Fatuus
Vem a lume uma ideia luminosa
um chá de lúcia-lima fumegante
inalação de folhagem capitosa
num bule de feldspato crepitante
Disfarçada de paz fortificante
de miasma benigno, inspirativo
é a estultícia que naquele instante
rebrilha num fogacho transitivo
É o Futuro que pede, apreensivo
um cisma com as crenças abaladas
uma balada ao coração cativo
dos sismos e dos contos-de-fadas
que são suas madrastas desveladas
numa fumigação protelatória
da descoberta das portas encerradas
em chaleiras sem mago, sem memória
do aprisionamento nessa história
em que um afago acendia um fogo
que num segundo alcandorava à glória
uma vitória assegurada ao jogo
Mas na derrogatória a nosso rogo
restolha uma seara, seca a fonte
por se encontrar, apenas, muro e mogo
onde tanto aguardou o horizonte.
(O Taberneiro, Poesia Incompleta, 2010]
§
Seis poemas para uma morte
1
Que importa o que não temos
quando a vida leva tudo o que nos dá
e a morte restitui-nos ao silêncio.
2
Naquele dia choveu ao contrário
a chuva fina e o seu silvo subiam do chão
e eu caindo da janela
sem um raio de sol que me amparasse.
3
Na noite clara da tua morte Pai
parto de vez para a margem da brandura
Levo nos olhos esta luz de dor
feixes opacos medas de cansaço
(como as que carregavas)
seara que nasce no sonho condenada
quando na alma a chama esmoreceu
Chegou-me a mim: já nada perdura
Querias saber o que era aquele nada
contra o qual lutava – sou eu
vazio de ti. Poupámos o Futuro.
4
Nem umas palavras de despedida
nem “adeus”
Será que depois nos encontramos
na terra linda onde são as coisas que não são
sem medo do fim?
Já moras, Pai, com o teu Cristo
o Cristo que nos salvou a todos
por termos alguém como tu.
Nunca te disse bem quanto te amava
como te amo muito dentro de mim
na terra linda onde são as coisas que não são
com tanto medo de as perder.
Estar a fazer a barba, cair
e partir para o outro lado
sem dizer tudo o que é preciso.
Ou como tu ficar assim à espera
suspenso de nada
à porta de Deus como um pedinte
pedinte de Deus
que só nos pediste que fôssemos melhores
e talvez por isso nos dás ainda mais uns minutos
da tua eternidade.
Vai agora, parte por favor
vai viver com as estrelas e com a alma das flores.
Sei que todos os dias continuarás a madrugar
para colher os odores mais puros.
Já não são precisos sacrifícios
aí é tudo dado num natal perpétuo e permanente.
Até nós te nos vamos dar
como tu te nos deste, como te entregaste cada dia
de manhã à noite
a Mãe
a Paula
o Ricardo
e eu
(por outra ordem espero que não esta
que eu não aguento mais)
vamos voltar a tocar-te o cabelo
o cabelo mais lindo que conheço
e a beijar-te
(como é possível que beijos tão a medo
como os teus quisessem sempre dizer tanto?).
E olha que se eu aí chegar
a essa terra que não mereço
é mesmo só por ti
é para te ver e ficar espantado
como só nos espantamos com os anjos.
Adeus Pai
tem calma.
Eu pensarei em ti todos os dias.
5
Tinhas-nos a nós
como nos querias
não como nós somos
Partiste
olhando o ar
pensando o Vago
escutando o Ser
na boca o Fluido
a essência do Sangue
nós
em tudo isso nós
o imenso Amor
Em que pensaste, Pai, nessa semana
em que soubeste tudo isso
que dizias há tanto
e que os homens procuram?
O teu olhar tão calmo
as tuas mãos
só diziam Amor
e a respiração era a de que ele é feito:
com a Mãe
sabe Deus e o vosso Amor quando
connosco
dia a dia e a desoras
com tanta gente
que eu nem adivinho
na mudez superior de quem é grande
Toda a vida
só fizeste Amor
Perdeste a Palavra e o Movimento
usa o meu corpo se isso for possível
Nunca será a mesma coisa
mas vou portar-me bem
(a gente cá sabe o que isto quer dizer)
Há que roubar as flores ao abandono
6
Guardo o brilho baço dos teus olhos
de seres inteiro em cada coisa
o Ritual dos dias conhecidos
e a alegria desentranhada
do fundo da eternidade
que é a bruma de Deus.
Guardo a entrega funda de saber
que a revolta não tem princípio nem fim
e aquela altivez tão especial inapercebida
que pode haver na submissão
de estarmos à frente dos homens e do tempo
viver como quem morre cada dia
e estarmos mortos como quem está vivo.
Seis poemas para uma morte, Fábrica das Letras, 1995
§
Página 13 do livro Cirrose
Detesto toda a psicologia. Pelo menos tanto como o homem de trabalho e os escritores movidos a bons sentimentos, que o querem entreter ou melhorar ao módico preço dos direitos de autor. Para me sustentar tenho todas as loiras do mundo. E não são poucas. De ambos os sexos e qualquer côr de cabelo. É o que basta. A somar ao jogo. O jogo de sonhar acordado. Sou o chulo vigil dos pesadelos das mães. As nossas e as delas. A fera com mais inteligência que moral. Uma inteligência manipuladora. O abismo brilhante. Um falo que fosse vaso. Disputo corridas sem sair do lugar e, por isso, sou sempre o primeiro a alcançar a meta riscada no chão com o giz líquido do meu sémen. Os outros chegam estafados. Caem de borco. Matam a sede na fonte desse giz. E pagam o pecado. A minha religião indulgencia-me sempre. Sou o Papa Negro das Noites Brancas. O Papa Branco das Noites Negras. Sou cinzento. Como as balanças que aferem o peso para aferir o custo. Estou afinado. Não ranjo. Não sangro. Não choro. Não peço. Não morro. A não ser que me sobrevenha uma embolia ao baralho. Ao caralho. Por isso, conservo-me em álcool. Como os miúdos fazem às cobras. O formol é para os Deuses.
§
de Proibida a entrada a animais (excepto cães-guia)
O Caso da Fruta
I
Não ser marinheiro. Não ser coisa alguma. E, ainda assim, zarpar deste lugar de fama sem proveito. Aportar às quatro estações, simultâneamente, num único cachimbo (milho de cerejeira). Comer mar, beber sal, respirar resina, cobrir a pele de lâminas de vinho. Renegar renegar. (O tempo). Ressarcir a cinta do silêncio. Derrimir a porca rouquidão. Arrancar às costas a tareia, às pernas o balastro, às mãos as mãos, à voz a recaída. Arrancar o pensamento ao fígado e o fígado ao pensamento. Lamber, ininterruptamente, uma mulata estéril de olhos mais verdes que a maior escuridão. Calar. Sobretudo isso. Calar-me. Escutar o canto sinusoidal, elíptico, dos cactos quando levantam voo para se tornarem homens. Nesses breves segundos, em que os cactos são vermelhos e aveludados, Deus assobia, dizem, velhos ragtimes e eu gosto de ragtimes. Pelo menos tanto quanto gosto de nêsperas, de salivas que não a minha, de bicos-de-lacre, do toque da cortiça. Eu gosto de gostar. E ando esquecido disso.
§
Não-raciocínio acerca da auto-estima
para o Levi Condinho
Uma semana da minha vida é um ano
da vossa, disse Lou Reed, cheio de si
e de razão. "Caro ouvinte, o caminho
é o mesmo e o disco meu - anda cá
tu" - digo, para completar a ideia.
Alma noise, dir-se-ia neste tempo
de muita coisa e nada. "Ama-me ou
deixa-me ou ama-me e deixa-me,
desassossegado. Trémulo. Vazio. Toc
ando uma guitarra autónoma, como
o vento que me varre, mesmo quando
me resguardo da noite, das aves, das aves
da noite, da calma, que é o peixe com mais
tripa". Esqueci-me do que queria
dizer: há nisto um lodo; um lodo
desgraçadamente impossível.
in Proibida a entrada a animais (excepto cães-guia)
§
Do tempo
Todo o tempo passado a trabalhar. Todo o tempo passado a falar com gente cheia de aspirações concretas. A esgravatar caminhos alternativos ao caminho que desde sempre soube e é o meu. Todo o tempo sóbrio, bêbedo, acordado, aqui. Fora da minha nuvem, Britânia imaginária. Todo o tempo perdido. Tanto. Roseiras por enxertar. Trutas à deriva. Bibliotecas de couro. Cavernames. Oboés doidos na charneca fria. Nunca os tocarei. O Tempo, indemne, não indemniza. Não se desdobra. Não se recupera. Resta-me ronronar e gemer. Ser gato. Exprimir o inefável com um orgulho estóico mas envelhecido. Tardio. O pêlo caindo. A pele demasiado larga para a carne. Peritonite infecciosa felina. O fim a instalar-se por toda a parte. O olhar triste. A espera. A inevitabilidade. Não conseguir saltar, e saltar. O sonho. A sublime humanidade dos bichos. A redenção. Privada. Como uma cicatriz que torna a pele única e intransmissível e, por isso mesmo, mais bonita.
in Lérias (Lisboa: Averno, 2011)
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